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Sampa Mundi - Edicao 04

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ano 2 | número 4 - Edição especial | Abril 2021

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Tô chamando corêra. Grati. Tinta spray. Útero Urbe, residência artística. São Luís do Maranhão, 2015

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1SAMPA MUNDI ///Binho. Projeto Postesia. (Acervo do artista)

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FICHA TÉCNICASampa Mundi - Quebrada SulAno 2 / Número 4 - Edição especial / 2021Conselho Editorial: Diane Padial, Neide Almeida, Salloma Salomão e Silvia TavaresRevisão: Léia Guimarães e Maria Regina Figueiredo HortaTranscrições: Maria FerreiraProjeto Gráco e Diagramação: Rodrigo KenanArte da Capa: Carolina Itza Nushu. Tríptico (detalhe). Tinta acrílica sobre tela. Dimensão: 0,70m x 0,50m. Exposição Encruza. São Paulo, 2019.contatos: sampamundi@gmail.comfacebook.com/sampamundiinstagram.com/revistasampamundiwww.sampamundi.com.brQuebrada Sul, São Paulo/SPRealização:Parceria:Apoio:

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DIANE DE O. PADIAL Integrante do Sarau do Binho, psicóloga, gestora cultural, idealizadora da FELIZS – Feira Literária da Zona Sul. Atuou como gestora nas áreas de educação, cultura e no social desde os anos 1980. Coidealizadora do e-Bairro, plataforma digital para empreendedores.SILVIA TAVARES Pedagoga, mestra emEducação pela FE-USP.Coordenadora pedagógicada Rede Municipal deEducação do Municípiode São Paulo, na região deM’Boi Mirim. Pesquisadoraindependente, produtoracultural e membro daequipe de produção daFeira Literária da ZonaSul e da Escola FeministaAbya Yala.JERA POTY MIRĨ Liderança indígena naAldeia Tenonde Porâ,Parelheiros. Licenciadapela USP para professoresindígenas da EducaçãoInfantil, professora de Guarani na E. E. Indígena Guarani Gwyra Pepó. Coordenou os projetos premiados: Yvy Rypa (Visões Ainda Não Faladas), Nhanerembi’i Ete’i (Nosso Alimento Tradicional) e Xondaro ha’e Xondaria, em 2008; Nhande Ao (Nosso Vestimento) e Nhande Kuery Arandu (O Saber do Nosso Povo), em 2007; Xondaro, em 2010; e Nhanhoty Nhande eko, em 2014.IRENE MAESTRO S. DOS SANTOS GUIMARÃES Militante do movimento Luta Popular (movimento de auto-organização e luta de trabalhadoras e trabalhadores em territórios periféricos) e pesquisadora em Direitos Humanos na USP.HELÔ RIBEIRO Paulistana, escorpiana comascendente em leão, 46 anos.Escreve desde os 9 anos,quando ganhou de sua tiaNorma (in memoriam) umpequeno diário. Desde entãosoube que o papel se tornariaseu grande aliado na vidae para a vida! Diz que suamelhor poesia chama-seCayque, Gabriel e Heitor, seus lhos. É avó do Matteo e tia-madrinha do BB Ben!Rezadeira de poesia, lha deOyá, frequentadora assíduado Sarau da Cooperifa hámais de dez anos, escrevepor amor, desabafo, paixõesalucinantes, ns repentinos ecomeços eletrizantes!VIRGÍNIA SOUZA 44 anos, educadora, diretora de escola, poeta e frequentadora dos saraus e eventos culturais da zona Sul. Mãe da Carol e avó da Helena, lha de Dione, neta de Ione. Apaixonada por unicórnios, participa do podcast Boteco das Deusas. Dona de olhos curiosos e pés sedentos de caminhar.CAROLINA ITZÁGrateira, artista visual,educadora e dançarina.Apresentou trabalhosem exposições coletivase individuais. Já ilustroudiversas publicações, entreelas Sagrado sopro (RaquelAlmeida), O olho damulher (Gioconda Belli) ea revista digital Fir-Minas.Integra os coletivos PeriferiaSegue Sangrando, PungaCrew e Fala Guerreira.Mestre em Artes Visuais pelaUniversidade Federal doEspírito Santo (UFES).ELIS ARAÚJO 44 anos, capoeirista e professora de Educação Infantil desde 2003 na rede municipal de São Paulo. Participou na elaboração do Currículo da Cidade - Ed. Infantil (SME, 2019. Mestranda pelo Programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades FFLCH-USP. Pesquisa a relação das instituições de Educação Infantil do distrito do Jardim Ângela com as produções culturais periféricas.ANGELA QUINTO Artista caminhante, poeta, psicoterapeuta. Avó do Joca.

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SALLOMA SALOMÃO Letrista, autista ehistoriador, doutor pelaPUC-SP, com pesquisasnanciadas pela CAPESe CNPq. Pesquisadorvisitante do Institutode Ciências Sociais daUniversidade de Lisboa.Dedica-se à pesquisasobre culturas musicais,performance, teatro edramaturgias africanas eafro-brasileiras nos séculosXIX e XX. Possui 6 Cds, 4Dvds e 2 livros publicadospelo selo Aruanda Mundi.NEIDE ALMEIDA Escritora, poeta, educadora, gestora e produtora cultural. Socióloga, mestre em Linguística Aplicada e Especialista em Gestão Cultural Contemporânea. Docente, pesquisadora e consultora na área de leitura, escrita, literatura, direitos humanos e relações étnico-raciais. Publicou em 2017 a zine Nambuê (MoriZines), em 2018 o livro Nós: 20 poemas e uma Oferenda (Ciclo Contínuo Editorial). Participa da antologia Nossos poemas conjuram e gritam, org. Lubi Prates, Editora Quelônio (2019).RODRIGO KENAN Designer gráco, pós-graduado em Service Design. Sócio-fundador da Muvilab. Integrante da Cooperifa e do conselho editorial da revista Legítima defesa. STEPHANIE CATARINO 23 anos, formada em História, atualmente estuda Arqueologia. Moradora do Alto da Riviera ,Jardim Ângela, na zona Sul de SP, idealizadora e apresentadora do programa Aonde é o Rolê?, onde divulga via web a cena cultural e artística da periferia de São Paulo.ARLETE MENDES Plantadeira de sonhos, sudestina, afro-indígena, educadora, poeta. Integrante das coletivas: Escola Feminista Abya Yala e Elas contra Tebas.ANDRÉA ARRUDA Mulher periférica, mãe, educadora popular, psicóloga e pedagoga, professora universitária. Militante dos Direitos Humanos, participa de coletivas feministas periféricas, mediadora de conitos, facilitadora de processos circulares e constelações familiares.ZAINNE LIMA DA SILVA Filha de Nara (Bahia) e José (Pernambuco). Moradora de Taboão da Serra, SP. Formada em Letras pela FFLCH-USP, é professora, poeta e prosadora. Autora dePequenas cções de memória(Patuá, 2018). Publica, em 2020, mais dois livros: Canções para desacordar os homens(Ed. Patuá, SP) ePedra sobre pedra(Venas Abiertas).KÁTIA ALVES Educadora da rede pública, produtora da Brava Companhia de Teatro, integrante da Escola Feminista Abya Yala e articuladora do Movimento Cultural das Periferias e do Fórum de Culturas das zonas Sul e Sudeste.VAL ROCHA Atriz e Artista Plástica, criadora e diretora da Cia Teatral Artemanha há 20 anos. Mediadora de leitura, educadora social, integrante da Rede de Leitura LiteraSampa e gestora de projetos no Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário).

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6 \\\ SAMPA MUNDI“QUEM IA FAZER A MUDANÇA ERAM AQUELAS QUE FICAVAM AINDA DENTRO DE CASA” CLUBES DE MÃES, REDES FEMININAS E AÇÃO POLÍTICA NA ZONA SUL - ENTREVISTA COM ANA DIAS E NEIDE ABATI Entrevistadoras: Neide Almeida e Silvia Tavares Apoio técnico: Salloma SalomãoArte Carolina ItzáAUDIOVISUAL PERIFÉRICO, A QUEM INTERESSA? Por Stephanie CatarinoLIDERANÇAS INDÍGENAS:MULHERES / TERRITÓRIO / VITÓRIAPor Jerá Poty MiriESCOLA FEMINISTA ABYA YALA, MULHERES E INCENDIÁRIASPor Andréa Arruda, Angela Quinto, Arlete Mendes,Helena Silvestre, Kátia Alves e Silvia TavaresMILITÂNCIA DESENCASTELADA: ATUAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E MOBILIZAÇÃO NA PERIFERIA Por Irene Maestro GuimarãesÍNDICE

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7SAMPA MUNDI ///MINHA ORAÇÃO, ÀS RAINHAS YABÁSPor Helô RibeiroCOMPANHIA TEATRAL ARTEMANHA: 20 ANOS E UMA BAGAGEM DE HISTÓRIAS Por Valdirene RochaDO BARRO QUE SUJA AO BARRO QUE MOLDA: BRINQUEDOS INDÍGENAS, ANTICONSUMO E NATUREZA NUMA TURMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL PERIFÉRICA Por Elisângela Araújo IONE Por Virgínia SouzaMÃE DE QUEBRADAPor Helô RibeiroA EDUCAÇÃO PELA PEDRAOU A EDUCAÇÃO PELA NOITEPor Zainne Lima

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8 \\\ SAMPA MUNDIArte Carolina Itzá

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9SAMPA MUNDI ///EDITORIALAs mulheres que vivem nas periferias de nossa cidade têm sido, desde sem-pre, protagonistas da construção e preservação de espaços fundamentais nos/para os territórios. Mobilizando seus saberes, muitas vezes sem fazer alarde, principalmente as mais velhas, cumprem importante papel na conexão das comunidades com aspectos essenciais das ancestralidades que marcam a his-tória das regiões. É muito comum que essas mulheres não sejam ouvidas; com isso trajetórias reveladoras de percursos, práticas culturais que sobre-viveram e foram reinventadas em processos de migração, de deslocamentos dentro da própria cidade se perdem, são invisibilizadas.Atualmente tem sido possível identicar importantes ações orientadas para a escuta dessas mulheres, um movimento que prioriza diversos aspectos da vida dessas pessoas e que, de modo geral, prioriza alguma dimensão da memória.Desconstruir os padrões cristalizados que, até pouco tempo, deniam as pes-soas como “homens” ou “mulheres” é urgente. Os pers, ações e atuações pú-blicas em arte, cultura e política de mulheres trans, por exemplo, aqui escritas em primeira pessoa nos conduzem a uma escuta e fazem reverberar em nós o que conceituamos por identidade e gênero em nós e n@s outr@s.Essa tem sido uma prática, especialmente de coletivos de jovens cujas vidas se organizam a partir de “novos” paradigmas. Seus discursos, tanto quanto suas práticas, nos interpelam, nos tiram dos lugares de acomodação, nos desaam a construir olhares mais amplos, menos pré conceituosos, mais orientados pela percepção efetiva de que as existências são (e s empre foram) diversas. Esta edição especial da revista conta com três números. Você tem em mãos agora a Sampa Mundi 4.SAMPA MUNDI

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SAMPA MUNDI /// “QUEM IA FAZER A MUDANÇA ERAM AQUELAS QUE FICAVAM AINDA DENTRO DE CASA”Clubes de Mães, redes femininas e ação política na Zona Sulentrevista com Ana Dias e Neide Abati> Entrevistadoras Neide Almeida e Silvia Tavares> Apoio técnico Salloma SalomãoImagens extraídas do vídeo da entrevista

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12 \\\ SAMPA MUNDIAo pautarmos a participação das mulheres na constitui-ção do território da zona Sul paulistana, a equipe de edi-tores da Sampa Mundi, imediatamente lembrou os nomes de duas pioneiras dos movimentos sociais da região. Ana Maria do Carmo Silva, conhecida como Ana Dias, é vi-úva de Santo Dias da Silva, operário e líder sindical nos anos 1970, assassinado em 1979 em Santo Amaro. Ana acompanhou e liderou, como moradora do Jardim Santa Margarida (M’Boi Mirim) e participante dos Clubes de Mães, vários movimentos que ganharam projeção nacio-nal, como o Movimento do Custo de Vida, a luta pela re-abertura política ao nal da ditadura e a preservação da memória coletiva dos movimentos de trabalhadores e tra-balhadoras encarnados na atuação de seu companheiro. Neide Abati, por sua vez, herdou dos pais uma prática de mobilização que a levou a atuar como formadora popular de saúde e posteriormente motivou a criação de uma rede de mulheres com ações protetivas de justiça, saúde, educa-ção e geração de renda, a União Popular de Mulheres, com sede no Jardim Maria Sampaio, Campo Limpo. Havíamos pensado em realizar duas entrevistas. Ao saber disso, Ana Dias sugeriu que, ao invés de trabalharmos em paralelo, nós as convidássemos para um encontro juntas, para que ambas pudessem revisitar as memórias comuns e aproveitar para matar as saudades uma da outra. Assim, Ana deu o tom de afeto que talvez explique a força dos laços que vinculam as redes de mulheres, tão presentes nesse chão. Nos dias marcados para a realização deste en-contro, São Paulo teve decretada sua quarentena, devido à pandemia da COVID-19. Precisamos recombinar toda a conversa, que anal aconteceu entre abraços virtuais, apoios mútuos na tecnologia e muitas lembranças, em 14 de agosto de 2020, por via remota.

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13SAMPA MUNDI ///SM: Vocês podem contar pra gente quem são Ana Maria e Neide Abati?Ana Dias: Meu nome é Ana Maria do Carmo Silva, mas na época da luta eu quei sendo Ana Dias. Naquela época muita gente trocou o nome, não pôde continuar com o mesmo nome. Meu nome de guerra é Ana Dias. Olha, eu te-nho muito carinho, a Neide não é uma amiga, é uma irmã, uma professora. O Santo tinha muito carinho pelo Abel, pela Neide. Eu posso dizer de coração, a gente era uma família grande, um ensinava o outro, por mais simples que fosse. Então, tudo que eu aprendi foi uma escola, nem na escola de verdade, nem na igreja, mas na luta, nos encontros das periferias de São Paulo. E onde nasceram movimentos maravilhosos, lutas grandes e conquistas muito im-portantes na vida do povo e das mulheres.Neide Abati: Eu gosto muito de chamar a Ana de Aninha, porque tenho muitas imagens dela com os lhinhos ainda pequenininhos, com o Santo, aquele moço alegre que nunca estava de mau humor, sempre de bom humor. Toda essa conversa traz muita emoção para mim, porque a Aninha era aquela mãezinha simples, como são as mulheres da periferia, morando lá longe bem depois da Vila Remo. A gente não parava um minuto, corre daqui, dali, tem que cozinhar para a família, para as crianças, e acompanhar a formação que eles davam para as crianças... A gente trocava isso com outros casais amigos, como estavam nossos lhos. Quantas vezes Aninha sozinha, “o Santo não chega, o Santo não chega, o Santo demora, eu preciso dele”. Porque a nossa vida de mulher dona de casa e de luta precisa muito de companheiros assim como Santo, mas só que o Santo era tão solicitado que não podia car o tem-po necessário ali com os lhos, e aí dobrava o serviço da Aninha. A gente sentia isso e via no dia a dia, como a minha família também, os meus lhos. Eu corria muito pra poder estar no grupo das mulheres, nos Clubes de mães, e estar dentro da minha casa com meus quatro lhos; a Aninha também ti-nha a Luciana e o Santinho. A gente estava sempre animando a mulherada e isso era uma marca: nós éramos comprometidas e somos. Essa marca da do-ação, da dedicação, da vontade de ver o mundo diferente do que nós estamos vendo aí. A vontade de um mundo mais justo; isso nos unia muito, a gente tinha uma força, uma energia que vinha da força das mulheres que nos ama-

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14 \\\ SAMPA MUNDIvam e que amam até hoje. Algumas já se foram, mas a gente se amava muito porque a luta que nós estávamos fazendo era uma luta comum e de base, uma base que precisa acontecer para que a gente tenha um mundo diferente, um mundo e um Brasil não desse jeito que tá, de outro jeito.Neide Abati: Lembra quando nós fomos para o Rio de Janeiro, Aninha? Quando começou a violência no Rio de Janeiro, e lá nós enfrentamos aqueles milicianos que já existiam, isso há quase 40 anos. Que coisa! Fomos os casais, a Aninha com seu companheiro Santo e o Abel também. A gente prova que a luta da mulher tem que ser feita junto com os homens, mesmo a mulher sendo a mais oprimida. Nós já tínhamos essa ideia naqueles tempos, já fazía-mos ações, não cávamos só no nosso nichozinho fechado, íamos pra vários lugares que nos chamavam, com muito esforço, deixando as nossas crianças pequenas, às vezes numa insegurança danada porque nem sempre nós tínha-mos alguém que nos ajudasse para cuidar dos nossos pirralhinhos e essas coisas marcaram muito e contribuíram para o alicerce da resistência que até hoje ainda precisa ser feita. Ana Dias: O que eu acho muito importante é que era tudo muito novo para nós: conseguir tirar uma dona de casa de dentro de casa era muito difícil porque a nossa educação era que a mulher tinha que car dentro de casa, tomar conta do marido e dos lhos. E a partir dos nossos trabalhos, muita mulher conseguiu conciliar a panela, o marido, os lhos e aprendeu a dividir; era um trabalho pequeno iniciando com as mulheres mais simples: a dona Isabel, a Maria Saraiva, a Conceição, tinha inúmeras mulheres, Odete, a dona Pedrina… o importante é que essas mulheres não participavam, elas se doa-vam, elas esqueciam da casa, dos lhos, dos problemas. E o problema não era delas, tudo era comum, tudo era vivido junto. O que a gente mais aprendia de tudo aquilo é que cada dia, cada passo, cada reunião, a gente conseguia enxergar que quem ia fazer a mudança não era só aquela que estava lá; a nossa preocupação eram aquelas que cavam ainda dentro de casa. Como a gente ia fazer para que elas também começassem a ter uma atuação? Isso, para mim, é uma coisa que eu nunca vou esquecer. Eu aprendi muito e nunca vou esquecer.

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15SAMPA MUNDI ///SM: Comentem um pouco sobre a chegada de vocês na zona Sul. Como era esse lugar? E como vocês viveram essa chegada? Ana Dias: Eu vim do interior de São Paulo, trabalhava em fazenda, de boia-fria, de empregada doméstica, e casei em 65; o Santo também era trabalhador da roça. Veio expulso da roça, porque já era perseguido em 1960. Quanto tempo já faz? Sessenta anos, mais de meio século. Santo tinha 18 anos, mas já tinha uma cabeça, uma visão diferente. Viemos para São Paulo; primeiro moramos lá na Vila das Belezas, pagamos aluguel; aí zemos um quarto e uma cozinha, com muito sacrifício, mesmo sem terminar fomos morar lá na periferia da Vila Remo. A gente não tinha água, luz, asfalto, não tinha nada, sabe o que é um lugar deserto? E a partir dali, a gente começou a participar em movimentos. Teve um encontro em 1970, que era “Toda pessoa tem va-lor”. Até aquele momento a gente ia na igreja rezar. A partir daquele encontro de 1970 a gente começou a enxergar que a pessoa tinha que começar a ter outra visão do mundo. Só que essa outra visão faz a gente sofrer muito, por-que quando você ia na missa, rezava e falava: “ai que bom, já rezei, já estou salva”. E também, quanto mais se sofria, mais se estava salvo. Mas ali, depois de 1970, começou uma ideia de que a gente estava lá para acabar com o so-frimento, que éramos nós que íamos fazer isso, e aí multiplicava a tarefa da igreja, porque a gente via o sofrimento da vizinha, o nosso...Ana Maria e o Santo que eram só da igreja, ninguém enxergava, porque a gente ia na missa e voltava. A partir do momento que a gente começou a se organizar, aí enviaram a perseguição, os títulos, comunista e outros títulos. A gente começou a ser perseguido, eu, meu marido, meus lhos, minha vida. A vida de ir todo dia trabalhar e rezar no domingo acabou. Também não tinha dia, não tinha hora, não tinha sossego.A gente se encontrava na Vila Remo. O que eu achei mais interessante é que foi uma revolução na família, na casa, porque a mãe de família começou a dividir as tarefas com o marido, com os lhos, isso era muito importante. E o mais importante, a grande maioria de mulheres que saíam de casa não cavam mais tranquilas de só car dentro de casa; elas tinham necessida-

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16 \\\ SAMPA MUNDIde de participar, de ensinar o que elas aprenderam, então nada cava para elas sozinhas, era tudo em comum. A gente tentava mostrar pra mulher que quem ia fazer a mudança era ela, o marido junto. No Movimento do Custo de Vida1, que coisa maravilhosa, que movimento, gente! Vocês nem imaginam como era uma mobilização! Quando nós fomos à Praça da Sé, quando nós íamos falar com os deputados, falar com o prefeito, a gente aprendeu com toda aquela linguagem, sem estudo, a falar com as autoridades e nós erámos muito mais autoridade do que eles; eles temiam as mulheres, como tinham medo da gente! A gente era muito corajosa. A gente enfrentou cachorro, po-lícia, marido, briga. Neide Abati: Um pouquinho da minha vida: eu sou lha de um casal de imigrantes que vieram crianças lá de Portugal. Meu pai veio com 13 anos, com mais três primos no porão de um navio, clandestino; minha mãe veio com 8 anos, mas não veio como clandestina. E aqui eles se conheceram. Aqui começaram a vida trabalhando em serviços, meu pai trabalhando na terra, nos canaviais com os primos, onde adquiriu a malária. Não tinha nada de medicação naquela época, e eles se tratavam só com os chás que o povo en-sinava, então ele acabou morrendo muito cedo, com 49 anos, com o fígado todo corrompido porque precisava de um transplante de fígado e nessa épo-ca a ciência ainda não tinha essa visão, nem este crescimento. Mas meu pai e minha mãe tiveram treze lhos porque a minha mãe era de uma formação de que tinha que ter os lhos que Deus mandava, ela era muito el a isso e quando meu pai falava “vamos fazer uma laqueadura das trompas”, ela não 1O Movimento do Custo de Vida iniciou-se em 1973 com a escrita de uma carta por mulhe-res do Clube de Mães denunciando o aumento da inação e a necessidade de reajuste dos salários. Ela foi levada a Brasília e lida pelo deputado Freitas Nobre no Congresso Nacional. Por causa dela militantes da zona Sul como Aurélio Peres foram presos e torturados. O Mo-vimento continuou em 1975 e 1976, quando houve uma pesquisa independente feita por mulheres dos Clubes de Mães, culminando numa Assembleia de cinco mil pessoas no Colé-gio Santa Maria em 1976. O MCV furou o bloqueio da ditadura ao tema da inação, apontou a necessidade de reajustes salariais e legitimou o movimento sindical que se articulou nesta época. DIAS, LUCIANA; AZEVEDO, JÔ; BENEDICTO, NAIR. Santo Dias: quando o pas-sado se transforma em história. 2ª ed. São Paulo: Perseu Abramo/Expressão Popular, 2019.)

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17SAMPA MUNDI ///conseguiu tomar essa decisão. No ano de 1942 meus pais foram despejados de Pinheiros, onde eu nasci, onde não tinha uma rua asfaltada. Estavam com quatro lhas meninas, que foram as primeiras, uma tinha quinze dias. Foram despejados e tiveram que fugir pro mato. Fugiram num caminhão ajudado por um homem que estava se formando em Direito e que emprestou um dinheiro para que meu pai pudesse ter terra lá pro nal do Jardim Macedônia, Embu das Artes, mais o Pirajussara aqui na da região nossa, Lá ele foi plantar com aquelas crianças. Depois disso ainda nasceram mais lhos, e lá na terra a gente fez muita amizade com aquele povo caboclo. Meu pai passou a enterrar os mortos lá mesmo, porque não tinha onde enterrar. Minha mãe foi aprender um monte de receitas populares para ensinar as mulheres com toda aquelas crianças. A gente não tinha nem água, tinha que buscar longe. Lá a gente cou muitos anos, sem escola; meus pais lutaram muito, meu pai falava assim “se minha lha, o meu lho não tem e o lho do vizinho não tem, todos precisam ter o que comer e precisam ter o conhecimento”. Minha infância foi na terra. Meus irmãos hoje são todos engajados, cada um faz uma obra social, peque-nininha, mas faz; foi a herança que nossos pais deixaram. Meu pai ensinou a gente a lutar por educação principalmente e hoje tem uma escola com o nome dele, uma escola que é lá mesmo nesse território2. É uma história muito difícil; eu só pude estudar depois dos 12 anos, a Ana minha irmã, então, cou sem estudar, sofreu muito; todos sofreram lá na terra. A gente ia na casa de alguns amigos para estudar. Essa minha vida me ensinou que tudo que eu zesse, eu tinha que repartir, o conhecimento, até o alimento. Saímos de lá para as crian-ças estudarem, eu era uma, e nisso fui crescendo.2João e Victoria Martins eram respectivamente o pai e a mãe de Neide. A E. E. João Martins ca na Estrada Pirajussara a Valo Velho, em Embu das Artes, no terreno onde antes morava a família, doado para a construção da escola. (Nota das editoras)

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18 \\\ SAMPA MUNDISM: Como foi a saída desse ambiente e a entrada na “cidade”?Neide Abati: Fui doméstica, viu? Além da roça, igual a Aninha, olha quanta coisa comum. Também fui da roça, sei plantar até hoje, plantar tudo que se possa imaginar, até árvore eu sei plantar para reorestar, e meus irmãos, minhas irmãs também. Fui trabalhar como pajem de crianças, depois, numa fábrica como operária; com 12 anos fui aprender a costurar sapato, trabalhei quatro anos como pespontadeira de calçado. Nessa hora meu pai foi embora e a família passou muita necessidade, então todos costuravam sapato comigo. Mas o meu sonho era estudar e me dedicar à saúde, porque com 6 anos cui-dei de um velhinho abandonado no mato que meus pais levaram para casa. Nós naquela pobreza, numa casa de chão de terra, sem luz, sem água... meus pais trouxeram o velhinho, que cou com a gente mais de oito anos antes de morrer. Eu era a cuidadora dele, ainda criança.Eu lutava pra entrar na saúde. Comecei a trabalhar como atendente no Hos-pital das Clínicas. Fiz um concurso, passei, tentava estudar e quase não podia, porque chegou uma hora que eu tinha que trabalhar em dois empregos para levar a comida para os irmãos, que eram pequenos, o pai tinha morrido. Consegui fazer um curso de auxiliar de enfermagem, depois técnica. Aprendi muita coisa e acabei sendo a única mulher no corpo clínico do professor Zer-bini e fui eu que instrumentei o primeiro transplante de coração do Brasil, foi a vitória do Brasil porque o primeiro transplante foi nos Estados Unidos e o segundo aqui no Brasil com o professor Zerbini3. A partir daí, eu tinha uma coisa comigo: nunca parar de lutar para que não tivessem escola, não tivessem conhecimento, não tivessem comida. Eu era uma gotinha, mas com várias gotinhas podia-se crescer junto.3Este transplante aconteceu em 26 de maio de 1968, e o paciente chamava-se João Ferreira da Cunha, um lavrador matogrossense de 23 anos. Fonte: STOLFI, N. A. G.; BRAILLEL, D. M., Euryclides de Jesus Zerbini: uma biograa. Rev Bras Cir Cardiovasc, vol. 27, n. 1, São Josédo Rio Preto, jan./mar. 2012. Disponível em http://dx.doi.org/10.5935/1678-9741.20120020. Acesso em 6/1/2021.

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19SAMPA MUNDI ///SM: Você pode contar um pouco sobre sua infância?Ana Dias: A minha história é mais ou menos igual à de Neide. Minha mãe veio da Bahia, meu pai do norte de Minas, eles vieram naquele caminhão de candango, pau-de-arara, vieram com a cara e a coragem, sem nada, nada. Sem roupa, sem sapato. Minha mãe nunca usava sapato, pai também não, morava na roça, não tinha nem roupa para se trocar. Não tinha colher, não tinha prato, não tinha nada. A cama eles cortavam vara e faziam uma cama, chamada cama de varas. Não tinha nenhum lho, eles dois só. Eles passaram a trabalhar numa fazenda de café, na região de Campinas. Aí os fazendeiros que compravam fazenda na região do café, em Ribeirão Preto, levavam aquelas pessoas mais jovens e que trabalhavam melhor, no caso era o meu pai e a minha mãe. Meu pai foi trabalhar como retireiro numa fazenda dos barões de café, aqui da Avenida Paulista4, uma família muito poderosa. Eles tiveram oito lhos, desses oito, dois morreram de diarreia porque não tinha como tratar. Os outros seis, como os da Neide, todos batalharam, sofre-ram, tiveram lhos, casaram. Eu sou a quinta da família.SM: Conte um pouco do seu encontro com Santo Dias.Ana Dias: O patrão do Santo e o patrão do meu pai eram irmãos, eram donos de toda a terra. Os jagunços deles expulsavam todos os pequenos moradores de dentro da terra, pra car uma fazenda só, muito grande, só pra eles. Mui-tos morriam, mas essa época eu ainda nem era nascida. Estes fazendeiros en-traram naquelas terras. As terras nem eram compradas, eles tomavam a terra do povo e se tornavam grandes fazendeiros. Tinha grandes fazendas porque 4Os pais de Ana, José Antônio e Santa, trabalharam na Fazenda Iracema, de propriedade do coronel Joaquim Prudente Corrêa. “Este e seu irmão, coronel Prudente Roza Corrêa (...) eram os dois principais grandes proprietários de terras e cafeicultores em Terra Roxa, desde o início do século XX.”Ver DIAS, L.; AZEVEDO, J.; BENEDICTO, N., “Santo Dias: quando o passado se transforma em história”. 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular, 2019, p. 30.

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20 \\\ SAMPA MUNDIos pequenos que moravam dentro das fazendas eram expulsos e não podiam reclamar; se reclamasse, morria. Então, tinham que ir embora. E eram muitos casos. O Santo, em 1960, quando foi questionar junto com os trabalhadores, exigir seus direitos, foi expulso da fazenda. A gente nem era casado ainda. Só conseguimos casar em 1965, por causa dessa saída do Santo. O fazendeiro, quando soube que o Santo estava na organização das greves, pelo direito de assinar carteira, deu 24 horas pro Santo e a família saírem das terras. Foram expulsos para uma cidadezinha pequenininha, e ele foi trabalhar de bóia-fria. O meu sogro e a família inteira caram tuberculosos de tanto trabalhar na fazenda, sem se alimentar direito. Foram para Campos do Jordão se tratar. O Santo veio trabalhar em São Paulo; a vida da gente foi muito difícil e muito dura. A gente nunca parou de aprender com tudo isso. Meu sogro analfabeto, minha sogra, meu pai, minha mãe, ninguém aprendeu a ler e a escrever. Nós aprendemos pouco. Santo estudou até o terceiro ano primário na fazenda, meio período, o outro meio período ele ia pra roça. O meio período ele es-tudava numa escola que tinha primeira, segunda e terceira série tudo junto, mas ele era uma pessoa que gostava muito de ler. O Santo era uma pessoa tão inteligente! Tem hora que eu olhava... ele casou com 22 anos! Eu pensava, “gente, como é que esse homem sabe tanta coisa?” Ele era tão inteligente, tão inteligente, uma pena um rapaz com 37 anos ser assassinado brutalmente por exigir os direitos. Então, nós também temos uma coisa assim, muito tris-te, mas a gente sabe que a gente aprendeu muito na vida. SM: Como vocês duas se conheceram? Ana Dias: Lá na Vila Remo. A gente tinha os encontros de mulheres e as mulheres queriam saber como evitar lho e tinha uma tal de Neide que tra-balhava na SOF e ela foi lá dar orientação para nós. A gente se orientava com tanta alegria, né, Neide? A gente aprendeu tanto naqueles encontros, era umas aulas muito práticas. A gente não tinha água encanada, não tinha água ltrada… então a gente aprendeu com a Neide, nossa professora. Aqueles encontros eram tudo de bom; quando começou, o clube de mães era bem

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21SAMPA MUNDI ///pequenininho, e depois foi crescendo, aumentou muito. Toda região, toda São Paulo. Eu conheci a Neide nesse trabalho. Quantas pessoas ainda falam dela hoje, lá. Nós devemos muito a ela, muito trabalho e muita ajuda.SM: Conte um pouco desse saber que você foi desenvolvendo na área da saúde. Neide Abati: Nossa conversa me emociona porque nós estamos falando do nosso compromisso maior. Eu estava cansada de car dentro da sala de ci-rurgia. Na minha prossão, aprendi muito na saúde, aprendi a questionar, a me indignar. Acho que está faltando isso hoje em muita gente, se indignar e ir atrás. Com isso eu perguntava muito, vi que não adiantava aquele meu co-nhecimento. Por isso nunca parei. Nas minhas folgas principalmente, quando eu não trabalhava em dois empregos, eu ia para algum grupo aqui na região em que eu morava. Em muitos bairros fui dar essa orientação que a Aninha fala. As crianças morriam de desnutrição por conta da verminose, por falta do saneamento básico, e as mães sofriam demais porque nem tinha posto de saúde suciente, nem tinha luta pelo saneamento básico, e lá, do lado da Ani-nha, tinha o Aurélio e a Conceição, que estavam fazendo uma boa luta sobre esse saneamento básico. A água de poço toda era contaminada por conta da rede do lençol freático, que transmite por baixo. A água do poço passava por fossas, e toda a criançada morria cedo com desnutrição. Nossas aulas lá foram muito ricas, porque a gente não cou só no planejamento familiar, de lhos, a gente continuava discutindo o porquê. E veio uma organização, junto com os operários, os trabalhadores, que era o Santo, mais o Aurélio, mais outros tan-tos e a gente fez esses movimentos para canalizar a água, para ter saneamento básico. A gente aqui do Campo Limpo, o Capão também entrou. A gente fez muitos estudos sobre a questão da saúde, da verminose, descobrimos mui-tas doenças nas crianças, por isso que tinha muita mortalidade infantil. Eu era funcionária pública, mas nos anos 1970 pedi demissão lá do hospital, por-que eu queria fazer uma opção de distribuir o meu conhecimento, socializar o meu conhecimento, participar do nosso povo, e aí o SOF estava nascendo.

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22 \\\ SAMPA MUNDISM: O que era o SOF?Era uma clínica de controle de natalidade nos anos de 1968 e 1969, e o admi-nistrador que estava chegando era um amigo muito bom, que queria trans-formar aquela clínica numa clínica popular5. A gente conseguiu transformar esse serviço numa associação; de uma clínica apenas de controle, viramos uma clínica de planejamento com a ajuda de uma boa equipe de pessoas, prossionais, psicóloga, e nossa querida e amada Deise, psiquiatra. Nós está-vamos chegando numa época, vivendo uma vivência cruel da ditadura mili-tar. Nessa situação a gente começou a ir para os bairros lá. Como o William,que era o nosso secretário executivo, era muito aberto às questões do povo, ele liberou a gente, não só eu, mas também até a própria Deise, que era a psiquiatra, a assistente social, eu era apenas uma auxiliar de enfermagem, nem o técnico eu não tinha quando eu cheguei na Vila Remo. O grupo estava reunido, eu passei por uma seleção, fui selecionada também pelo padre Luís e pelas mulheres, pra saberem qual era a minha cabeça. Se eu tinha uma cabeça aberta, se eu era a favor de tudo que vem errado até hoje, ou se eu era dife-rente. Eu entrei no grupo e nunca mais me separei. Dali começou todo o mo-vimento de luta por creche, contra a carestia, contra o custo de vida. E uma coisa que eu quero dizer: estes movimentos só têm força se existem outros movimentos. Estava começando a existir todo esse sindicalismo verdadeiro, que estava o Aurélio, o Santo e outros. Estava se organizando em São Paulo e no Brasil a anistia, porque já havia um monte de pessoas. Acontece que se a gente abre a cabeça pra isso... por conta dessa ditadura, havia uma mulher aqui na região, Maria Nilde Mascellani6. Essa mulher me emociona. Eu tenho 5SOF - Serviço de Orientação à Família. Segundo Neide Abati, foi uma clínica iniciada com o objetivo de controle de natalidade, nanciada inicialmente pelo Conselho Mundial de Igre-jas e cuja atuação encaminhou-se, por orientação da equipe, para a intervenção em saúde bá-sica preventiva e fortalecimento das mulheres. Esta entidade atuou por catorze anos e chegou a ter um prédio em Santo Amaro. Sofreu várias transformações, posteriormente originando a ONG SOF - (Sempreviva Organização Feminista), cujo site é http://www.sof.org.br/.6Maria Nilde Mascellani (1931-1999) foi a educadora responsável pelo Serviço de Ensino Vocacio-nal, que acompanhou e implementou seis Ginásios vocacionais no estado de São Paulo, de 1961 a 1968, uma experiência de educação integral que sofreu intervenção do regime militar a partir de 1969. Em 1970, Maria Nilde passou a atuar no Escritório de Relações Educacionais e do Traba-lho (RENOV), uma entidade não governamental de projetos de educação popular. Segundo Neide Abati, foi por meio desta organização que Maria Nilde atuou na região do Campo Limpo. (N. da E.)

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23SAMPA MUNDI ///os livrinhos que nós construímos com ela, tem ainda gente viva, mulheres que participaram com ela no movimento de uma educação diferente, de uma educação livre. Há de se cuidar do broto, como fala a música de Milton Nas-cimento, e ela era essa seguidora. SM: Como vocês olham essa militância de hoje e especialmente a militância de mulheres?Ana Dias: Eu acho que cada momento é um momento. Hoje a gente per-cebe o uso da tecnologia, cada um fala da sua casa. Daqui a vinte anos isso vai estar ultrapassado, alguém vai estar perguntando para vocês “como foi?” Nós não vamos estar aqui, mas vocês vão dar continuidade. Minha lha hoje é uma pessoa muito comprometida. Eu acho que nada cai por terra. Então, a gente tem que ver o momento. Eu tô com mais de 70 anos e posso dar uma contribuição, a gente tá aqui, ainda, comprometido com essa luta. Hoje eu vejo as minhas netas interessadas pelo que eu z; onze anos atrás era indiferente para elas, hoje quando tem debate, tem encontro, elas estão sempre ligadas, elas promovem. A minha neta, a lha da Luciana, promoveu um encontro lá na faculdade em que ela está estudando, então, percebem que tudo que eu ensinei, que eu aprendi não está por terra, está vivo em meu nome, no nome da minha lha, em nome das minhas netas e eu agradeço que a luta continua.Neide Abati: Eu quero dar continuidade ao que a Aninha falou. Depois de todo este movimento, eu tive uma consciência muito forte de que eu não po-dia parar. Nós éramos movimento de luta por creche, movimento de luta por todas essas reivindicações, a gente precisava ter uma democracia verdadeira. Aninha também participou da luta pela Constituinte, das outras lutas. Os trabalhos têm que ser amplos e abertos, com a humildade de aceitar que ne-nhuma panelinha vai resolver o problema do país e nenhum partido sozinho. Aprendi isso lendo, vivendo e vendo. Tenho 82 anos. Não parei de ler, não pude voltar a estudar por conta da minha vida difícil, que continuou difícil para criar meus lhos, cuidar da minha mãe, que morreu com 97 anos, uma

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24 \\\ SAMPA MUNDIgrande mulher. E aí digo pra vocês, minhas amigas e amigos, que não dá pra parar mesmo, como a Aninha falou. É verdade que a gente deixa um legado, mas se a gente continua, se sente ativa, não se acomoda e ninguém manda em nós. Nós temos nossa autonomia, podemos morrer com 100 anos, mas temos que ter nossa autonomia. Então eu consegui, não sozinha. Me apoiei num grupo de mulheres aqui da região. Organizamos em 1986 uma entidade, que agora tem 33 anos, vai fazer 347.SM: Você pode contar um pouco a respeito de como essa entidade funciona?Neide Abati: Temos convênios com a Prefeitura, mas não é este o principal objetivo. O principal objetivo da entidade é tirar a mulher da exclusão, tirar essa criança oprimida, que não é respeitada, da violência, que está grande; lu-tar contra as discriminações raciais, negros, negras, índios, pobres. Essa nossa entidade cresceu, hoje nós temos uma sede muito pobre, alugada, não conse-guimos ter ainda nossa sede própria. Realizamos vários tipos de trabalho para mulheres, principalmente para prossionalizá-las e para orientar. Porque essa entidade nasceu antes do movimento contra a carestia, nós dávamos aulas de alfabetização nos anos 1960, 1961, 1959, quando fomos perseguidos, muitos de nós fomos presos por conta de dar aula do Paulo Freire. Agora nós temos então essa entidade, com uma casa de acolhida de mulheres vítimas de violên-cia, um centro de defesa da mulher, que demorou 25 anos para que o governo assinasse, núcleos de idosos e cinco salas de alfabetização Paulo Freire, que é a nossa menina dos olhos. Tudo isso que me dá forças e energia ,porque ain-da tem muita gente que não pôde ser alfabetizada, muita mulher violentada, muita discriminação racial, muitos outros problemas. É difícil, mas nós não podemos perder a esperança. Vamos ter que conscientizar muitas famílias e as mulheres do seu valor, porque a partir do valor da educação, da formação, 7União Popular de Mulheres do Campo Limpo e Adjacências, fundada em 1987. A história detalhada desta e de outras mobilizações no Campo Limpo, voltadas à educação popular, economia solidária, segurança alimentar e proteção das mulheres está contada no livro Redes periféricas: juventudes, mulheres e arranjos culturais, organizado pela UPM, Gabriela Iglesias e Rafael Mesquita e editado pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP) em 2016.

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25SAMPA MUNDI ///da prossionalização, a nossa juventude vai ter que ajudar a mudar isso, mas misturado com nós, velhos, que nós, velhos, temos também a nossa sabedoria. Não tem opções grandes, nem tenho opções de ser uma grande estrela, quero ser uma misturada com todos e contribuir no que posso. Que-ro agradecer muito a vocês e tenho muita alegria de ser uma grande amiga da Aninha desde tantos anos, né, Aninha? E de tantas mulheres que zeram história. Temos que trabalhar unido para dar continuidade nessa nossa vida. Nessa nossa vida de ver dias melhores. Acabar com esse racismo malvado que não vai acabar fácil, que é a pior doença que tá aí. Toda hora a gente vê mulher agredida e não vê o povo se levantar. Por que não vamos nos levantar? Temos que nos levantar contra isso, não só contra o corona, porque o corona é peque-no diante do que acontece com o racismo, com a discriminação dos meninos, das meninas, contra os estupros, contra toda essa violência em cima das meni-nas negras e das mulheres negras, dos homens também que são mortos aqui, muitos meninos. Isso nos indigna e deixa a gente sofrer demais.SM: Queria que vocês falassem um pouco para a gente como é que vocês estão olhando para este momento presente, para que a gente possa, de fato, incidir nesse futuro, o que virá para essas gerações. Como é que a gente pode atuar nesse momento?Ana Dias: É como a Neide Abati falou “ninguém faz nada sozinho e nin-guém pode cruzar os braços porque nunca termina, a luta é constante”. Cada decepção desse massacre com os jovens, com negro, com a mulher, com uma política que a gente vê que enoja nosso momento, mas que a gente não pode cruzar os braços em nenhum momento. Olha aqui, a Neide com essa idade, eu com essa idade, mas a gente ainda tem voz e vez. O que eu tô falando aqui hoje não é para car dentro de uma caixinha ou dentro de um livro. A gente tenta aprender e passar para o outro, dizer para o outro “você faz parte dessa sociedade, se você também não descruzar o braço, não tentar se envolver ou conhecer o que você pode fazer, o que que eu estou fazendo aqui, eu e a Neide? Você não imagina a dor de ter um pai, um amigo, um lutador e de repente ele morrer brutalmente e você cruzar os braços: “Quem matou?” Eu fui contra minha família, meus irmãos, a mãe

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26 \\\ SAMPA MUNDIdo Santo, o pai, a família; eu acreditei que era por esse caminho difícil. Nós estamos hoje por outro caminho, mas estamos na mesma luta. Eu tenho que agradecer essa oportunidade de estar deixando essa pequena mensa-gem pra continuar a luta.Neide Abati: É isso mesmo. Eu acho que o que vocês estão fazendo já é algu-ma coisa, mas tem que ser feito muito mais, muito mais. Nós que temos essa história precisamos de novas histórias, precisamos de outras mulheres hoje, trazendo novas histórias, mas pra que tenha outras mulheres trazendo novas histórias, é preciso ter um foco, e a educação é um dos focos. Mas a educação que liberta, educação Paulo Freire, a educação dos oprimidos, essa educação que valoriza aquela criança que está desabrochando aqui bem longe. Então nós precisamos de ter professores, professoras, com uma consciência des-ses problemas muito diferentes, não car no seu comodismo. Uma coisa que atrapalha é o comodismo: “Eu me formei, eu tenho o meu emprego, eu vou cuidar da minha vida”. Mas eu acho que esse sentido social, que o pãozinho que eu ponho na minha mesa, para eu comer todo dia, ele deu muito traba-lho para lavrar a terra. Essa comidinha, esse arroz, esse feijão que chega, que tem todo um processo social, isso para mim é Paulo Freire. Isso, gente, se à medida do possível, eu saio do meu egoísmo, e vejo que na minha mesa tem arroz e feijão, mas que eu tive que dar um dinheiro sim, eu tive que comprar, mas o caminho que essa comida fez para chegar à mesa envolveu muita gen-te, muitas relações. Essa consciência não chega de uma hora pra outra; tem que ter pessoas comprometidas com esse trabalho. Eu estou muito preocupada, minhas amigas e meus amigos. Quanta criança nossa precisando de carinho, de uma roupinha, e a sociedade está cando acomodada. Eu estou vendo isso hoje, muita acomodação, mas pra romper isso não é fácil, precisa ter o pé na estrada e qual vai ser esse pé na estrada? Não é só “a minha” história, é este nosso povo ver. Se eu hoje me formei, se eu fui para uma faculdade pública, vamos segurar ela porque vai fazer falta. Meu lho se formou numa faculdade pública, na UNESP, não existia o PROUNI. Quando que a nossa sociedade sabe o que que é o PROUNI? Eu co indig-nada. Quando que a nossa sociedade sabe que pode estudar, ter cursos como

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27SAMPA MUNDI ///Medicina, que meu lho estudou com o PROUNI, que foi dado aí? Temos que exigir a responsabilidade deste governo, nós pagamos impostos. Será que o nosso povo tem essa consciência? Eu pago, o atendimento na saúde não é de graça, o SUS não é de graça, foi uma conquista suada por nós. Nós estávamos lá em Brasília, lutando pelo SUS. O SUS é fruto de nossa luta, precisamos jun-tar de novo o povo. Quando que nós sabemos o que que é o Mais Médicos? Cadê as lives para explicar o que que é Mais Médicos? Como nós deixamos perder isso? Gente, eu estou cobrando isso de quem lá estava. Estou cobran-do, quero morrer cobrando. Por que vocês não gritam “vamos defender os Mais Médicos”? Por que não gritam “vamos defender o PROUNI”? Por que não gritamos quando mata uma criança ou machuca por conta do racismo? Vamos correndo com todo o povo lá. Não precisa pegar em arma, temos que lutar contra essa compra de arma pra todo mundo, que só traz o mal e isso vai afastando a gente desses princípios. O povo cresce quando essa luta ca orga-nizada com unidade. As mulheres, os grupos LGBT, vamos nos unir, vamos respeitar todas as opções sexuais, mas vamos unir. Tem os grupos feministas que falam aí “nenhum homem presta”... não, não falem isso, os homens são nossos pais, nossos irmãos, porque a cabeça deles virou por falta de trabalho decente, de formação, de carinho, de amor, de justiça. Vamos unir. SM: Vocês podem comentar sobre a importância de uma utopia de vida comuni-tária, de não aceitação da desigualdade e do individualismo, na ação de vocês?Ana Dias: Todas nós temos uma visão de mudança, compromisso e esse compromisso não pode car na palavra, tem que ir pra ação. E como a gente aprendeu que foi através desses movimentos, dessa luta que nós crescemos e nos comprometemos de assumir tudo o que nós vimos hoje e que vamos vendo, a luta é uma continuidade. Eu imagino nós num rio que desce e que ele não para, e que nós somos esse rio. E Como a gente vai mudar essas pes-soas que ainda a gente não atingiu. Como naquela época nós atingimos tanta Maria, tanta Isabel, tantas mulheres que estão dentro de casa, hoje, tomara, também tentando fazer alguma coisa. É isso que eu tenho a dizer e agradecer esta oportunidade.

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28 \\\ SAMPA MUNDINeide Abati: Vocês veem como nós andamos para trás. Quando nós começa-mos nossos clubes de mães, nós tínhamos uma orientação do Leonardo Bo, que tinha a teologia da libertação. Vocês veem como é, hoje, na nossa região aqui, com os nossos grupos, se a gente fala “vamos discutir um pouquinho como está a política” todo mundo quer ir embora, ninguém quer car. Por-que essa onda do mal, o que cou aí, do ódio, essa onda prejudicou o nosso povão, nós não temos uma imprensa que tenha sintonia conosco, muito pou-cas. Então o nosso povo hoje, pra você falar de política, você tem que entrar por outro caminho. Você tem que entrar pela democracia, ainda bem que podemos, cidadania, outros caminhos. E o nosso povo não está politizado. Esse é um trabalho que nós precisamos fazer. Nós precisamos ter outra política, como se tudo passasse uma borracha no que aconteceu, começar tudo de novo. Porque eu sinto aqui com as nossas mulheres, nossas famí-lias que não querem falar de política...SM: Por que as pessoas não querem falar de política, na opinião de vocês?Neide Abati: Porque foi impregnada a palavra do ódio e isso, quando começa uma coisa negativa na imprensa, na fala, quando a gente elege alguém nega-tivo no nosso lado, como temos aí, a negatividade continua, e é muito difícil você ver uma pessoa enxergar do outro lado. Se a gente não tiver outra po-lítica, nós vamos perder todos esses valores. Precisa ter uma dinâmica, uma pedagogia diferente, que eu acho que a pedagogia do Paulo Freire, para o nosso povo, temos que defender. Nós temos que voltar a fazer este miudinho, Aninha, que nós fazíamos de casa em casa. E lá não é conversar muito, é falar “eu quero pra essas crianças outra vida”. Nós temos que sair do comodismo, temos que sair do individualismo, mas nós temos que ir mesmo, andar, dar os passos, mudar essa política, e está difícil, não está fácil. Para isso tem que descobrir qual é o caminho da unidade, quem falar em unidade pra mim eu estou correndo atrás. É aí que eu quero ir, com as mulheres, com os jovens, com as crianças, com todo mundo. Quero sair dessa quarentena que eu estou presa dentro de casa, não aguento mais.

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Ana Dias: Gente, como volta à escola se não tem higiene, não tem água, não tem sala de aula, não tem nada. Oh senhor, nós estamos falando para um grupo, nós temos que falar para o país. Quem que está enxergando isso, quem? E como? E aonde? Com quem? Qual seria a saída para isso? Vocês nem imaginam como isso me deixa sem sono, sem fome e sem ação. Eu me sinto pequena, sem poder fazer nada, mas eu me pergunto o que fazer, como fazer e onde fazer. Precisamos fazer, fazer muito, porque a educação não tem mais professores. Eles têm culpa? Não. E as mães da favela como que vão ensinar os lhos a fazer uma lição, se ele não tem nada, gente? Não só lá, mas como lá na periferia, na roça, como essas crianças vão aprender, gente? Esse futuro, onde vai ter futuro? Olha, gente, desculpa eu falar demais, mas acho que as minhas preocupações são as mesmas de vocês.SM: Gostaríamos que vocês deixassem um recado nal.Ana Dias: Muito obrigada por essa oportunidade. Enquanto a gente tiver a cabeça boa e a gente puder falar, a idade não vai importar. O importante é a gente se comprometer e estar juntos. Neide Abati: Estou muito feliz que vocês estão nos resgatando do passado porque isso também está em crise, valorizar o que foi feito no passado para não cair nos erros do futuro. E co muito agradecida aqui de me encontrar com a querida Aninha e com vocês. Que esse trabalho nosso possa multiplicar como multiplica a pipoca. Esse símbolo da pipoca mostra para a gente muita coisa, um pouquinho de pipoca que cresce tanto, é um símbolo muito educativo.Ana Dias: Viu, Neide, tem da vara também: você pega uma vara, você que-bra, mas se você conta todos num fecho grande de vara, você não vai quebrar e nós não vamos quebrar. Como a vara, a pipoca, o nosso grupo não vai mor-rer, ele vai nascer como sementinha.PARA SABER MAIS: DIAS, Luciana; AZEVEDO, Jô; BENEDICTO, Nair. Santo Dias: quando o passado se transforma em história. 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2019.UNIÃO Popular de Mulheres do Campo Limpo e Adjacências (UPM); IGLESIAS, Gabriela; MESQUITA, Ra-fael. Redes periféricas: juventudes, mulheres e arranjos culturais. São Paulo: ITCP-USP, 2016.

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30 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI /// > Por Stephanie CatarinoAUDIOVISUAL PERIFÉRICO, A QUEM INTERESSA?

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31SAMPA MUNDI ///Após um século de ver e ouvir, o que o pri-meiro lme falado (1927), o cinema colori-do (1935), a chegada da televisão ao Brasil (1950), as câmeras portáteis (1950), a primei-ra transmissão a cores (1970) e a criação do YouTube (2005) têm a ver com a gente?Esses são apenas os dados do que vemos, ou-vimos e temos. Eles representam o salto his-tórico do audiovisual no Brasil. E nós, popu-lação periférica, o que temos com isso?Vivemos ainda o fenômeno de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, que é como se faz cinema segundo o cineasta Glauber Rocha, embora tenha se referido ao merca-do cinematográco. Contudo, tão profundo quanto seus ideais são as produções audiovi-suais das periferias.AUDIOVISUAL PERIFÉRICO, A QUEM INTERESSA?

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32 \\\ SAMPA MUNDISe “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” signica dispor dos meios de produção artística para a transformação social, então tem tudo a ver com a gente.A comunicação popular num todo signicou um instrumento polí-tico a partir dos anos 1970 e 1980 e acompanhou os saltos históricos, os movimentos sociais, as articulações, as políticas culturais, e o de-senvolvimento das tecnologias que garantiram o acesso às produções. Sendo assim, a periferia sai do lugar de receptora para o lugar de emis-sora/protagonista.No audiovisual, especicamente, esse instrumento, além de manifes-tar concepções de mundo, é uma forte arma de luta na ampliação e ou criação de representatividade em setores historicamente compos-tos para negar a existência das minorias.Esse movimento, que inclui o cinema e o jornalismo, aposta em uma estética, em um marco no movimento da comunicação popular, e a real possibilidade de contar histórias sob a ótica da periferia é quan-do a periferia acessa os meios de produção.Exemplo disso são os canais de convergência cultural, como o Aonde é o Rolê?. Um programa que existe há quatro anos, contextualizado e hoje independente, que apareceu como o lugar que a maior parte da população sempre buscou, a saída das insistências de caber em espa-ços padronizados em que a cultura é tudo aquilo que a classe média branca produz e reproduz no processo de apropriação cultural.Não se trata só de um canal contextualizado que mostra as artes nas periferias da zona Sul, mas tornou-se um lugar de fala política em que a população periférica se reconhece, se valoriza e enaltece o canal como um espaço de representatividade feito pela periferia para a periferia.Sendo fruto do VAI, um dos programas de fomento à arte na peri-feria, o canal encontrou diculdades e ainda encontra em toda área

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33SAMPA MUNDI ///burocrática que envolve recursos nanceiros, de apoio e patrocínio, justamente por ser uma ideia desinteressada do mercado cinemato-gráco, uma vez que não há ambições em concorrer com grandes prêmios televisivos, mas sim fazer cumprir com o trabalho dos pro-ssionais de audiovisual que estão envolvidos nesta ideia. Cabe aqui salientar que o canal também cresceu devido à ampliação desses programas de fomento e à valorização das artes periféricas, um movimento feito pela população.Hoje, como dito, o programa segue independente de grandes produ-toras, ou nomes do meio audiovisual e ou jornalístico, mas segue de-pendente de parceiros, artistas, espectadores e do espaço que a TVT, a TV dos trabalhadores, cede para a exibição do conteúdo do canal duas vezes por semana, ampliando a potência dos artistas, que alcan-çam muitos olhos, ouvidos e corações. Tendo em vista tudo isso é impossível não perceber a força desse movimento pela crescente da comunicação periférica. Os acessos chegam a quebrada junto da consciência de que os veículos de co-municação em massa difundem uma comunicação repetitiva, o tó-pico, o estereotipado. Esse programa certamente faz parte, assim como outros, de um mo-vimento que se dedica a uma perspectiva positiva e rica do cotidiário periférico. Exemplo disso são os projetos Alma preta Jornalismo e a Periferia em Movimento, aqui de São Paulo. No Rio de Janeiro o programa de entrevista Nu Barraco tem uma ideia bem semelhante ao Aonde é o Rolê?, com bastante visibilidade.A tendência e a expectativa é que as articulações se intensiquem, que a quebrada possa construir sua própria comunicação, pois o ob-jetivo é investir na produção de conteúdo e no engajamento.

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SAMPA MUNDI ///

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> Por Jerá Poty Miri1MULHERES / TERRITÓRIO / VITÓRIA

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36 \\\ SAMPA MUNDI A aldeia indígena, o território indígena Tenondé Porã, que hoje tem 15.997 hectares, quase 16 mil hectares, quase 16 mil é sempre mais interessante, porque eu nunca sei exato os últimos números, mas, enm, esse território por muito tempo viveu com dois espaços: aldeia Tenondé Porã, que já foi chamada de Vila Guarani, Morro da Saudade, e a aldeia Krukutu, a 7 km depois, ambos com 26 hectares, território que foi demarcado numa época de um governo mais agressivo contra os povos indígenas ou contra os direitos originários dos povos indígenas.Ele foi demarcado junto com outras aldeias do Rio de Janeiro e do litoral Norte na década de 1980 em 1987, e então a comunidade das duas aldeias teve um crescimento muito, muito notável em pouco tempo, porque em meados de 1980, ainda no Sul, no Paraná, todas as aldeias Guarani viviam de forma muito criminalizadas. Os indígenas tiveram suas terras roubadas, esta-vam sendo muito judiados ainda, que tinham passado pelas mãos do SPI, que era Serviço de Proteção ao Índio e que era um braço do Estado nas aldeias e no Sul. Isto foi muito forte, roubaram todas as terras, cortaram todos os pé de pinhos, que eram originário do território indígena, zeram mão de obra escrava dos Guarani, castigavam os Guarani como castigavam os escravos negros, colocava os Guarani no tronco.E foi deixada uma desordem nas pequenas terras, nas aldeias Guarani e isto trou-xe a fome, muita fome. E aí então a violência de indígena contra indígena mes-mo cresceu absurdamente porque os caras ensinaram os Guarani a usar bebida alcoólica e etc. E aí então os Guarani, que por sua vez culturalmente tinham o costume de andar por quilômetros e quilômetros por áreas grandes, para visitar os parentes, isso desde a Argentina, Brasil e Paraguai, saíram fugindo, para eles buscarem uma vida mais calma, mais tranquila, do Paraná para São Paulo. Então era muito fácil, porque já era um território conhecido também.As duas aldeias da capital de São Paulo tiveram um crescimento populacional muito grande e isso implicou em perda também do conhecimento da cultura 1Este depoimento foi gravado em áudio e enviado à editoria da SM por Jerá, em agosto de 2020, durante o período de pandemia da Covid-19, que atingiu dura-mente as aldeias indígenas de São Paulo e Paraná. Posteriormente, foi transcrito e adaptado para a linguagem escrita.

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37SAMPA MUNDI ///tradicional, as pessoas começaram a perder espaço de plantio, espaço ade-quado para uma vida digna na aldeia, e por saber das diculdades da aldeias do sul do Paraná, os Guarani também não expulsaram os parentes que se achegavam, se achegavam e se achegavam. E então as pessoas foram se jun-tando nestes dois territórios, principalmente na aldeia Tenondé Porã, que na época ainda era chamada de Morro da Saudade. E com a perda do espaço de plantio, novamente você vê um campo de muita miséria, porque os Guarani. por sua vez, somos muito da cultura de agricultura. E por sua vez os Guaranis da capital até os meados dos anos 1990 era muito pouco falado pelos braços do governo, nem o posto da Funai de Bauru conhecia as aldeias da capital como como aldeias indígenas, como Guarani. Então não se tinha assistência na saúde, na educação, na moradia, encanação de água, oferta de suprimen-tos, nada, nenhum projeto de desenvolvimento social, de sustentabilidade, nada. Os Guarani eram invisíveis na capital de São Paulo.E então passando por muitos momentos de tristeza, de muita fome, de muita violência, e os Guarani que chegavam com esse vício do álcool, sofrimento de mulheres, de crianças, enm. E nesta história toda, como sempre, o que gesta-va a aldeia, as lideranças da aldeia, sempre foram os homens, porque era uma coisa também que o povo juruá2 tinha fortalecido nas aldeias. Porque esses juruá que invadiram nossos territórios com certeza não eram feministas, eram sempre todos muito machistas. Então as mulheres indígenas só serviam para eles estuprarem. Eles pegavam os Guarani homens para chamá-los de cabo, capitão e cacique, e esses eram escolhidos a dedo por sua falta de coragem, ou por observar sua falha de caráter, eram colocados para dominar a comunidade. E esse processo de indução na cabeça dos Guarani existe muito fortemente até hoje. A maioria das aldeias Guarani em seis estados são sediados, são gestados por homens, por lideranças de homens, e então o território Tenondé Porã pas-sou por vários anos, por mãos de homens na questão política.Em 2008, eu, Jerá, que era professora da aldeia, que tinha toda uma história e que é muito comprida para contar, me tornei uma das professoras da aldeia. E no meu processo de formação, de estudo e de particularidades, as pessoas da Vila sempre perguntavam se o meu pai era o cacique, porque todas as 2Juruá: modo pelo qual os Guarani nomeiam os não índígenas, ou “os brancos”. (N. da Ed.)

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38 \\\ SAMPA MUNDIpessoas que se destacam, ou que vêm a fazer alguma coisa na aldeia, eram parentes, lhos de cacique.E eu sempre falava com muito orgulho “não, eu não sou lha de cacique, que meu pai é o José Lima”, que era um cara da agricultura, que era um cara que também tinha problema com álcool, enm, nunca tinha sido cacique, no má-ximo havia passado aí pela mão dos caciques também como capacho, como dizem, como alguém ordenado a fazer coisas para eles.E a minha mãe, por sua vez, era uma mulher extremamente forte, mas muito sofrida na vida, porque perdeu a mãe muito cedo, então por conta disso tinha um pai que tinha contato com juruá, havia aprendido a falar um pouco de juruá, então tinha passado por algumas experiências diferentes dos demais Guarani. Então eles moraram com a família de japoneses nesse território. Minha mãe falava um pouco de português e tinha umas coisas diferentes, foi uma das que me inuenciou para entrar nessa vida de escola de juruá, de escolarização não indígena, mas também nunca tinha sido uma grande lide-rança, nem nada nesse aspecto.Então eu, Jerá, em 2008, a partir da minha própria experiência, da minha própria visão, dos meus próprios questionamentos em relação à questão de como a aldeia era gestada, eu, sutilmente, omitindo algumas intenções reais, chamei e pedi uma reunião com os mais velhos e com as lideranças locais da aldeia. Colocando para eles que eles tinham muito trabalho e que o trabalho deles era muito árduo, então que poderia, de repente, pensar numa forma-ção de um conselho Guarani, que teria homens e mulheres e que ás vezes, quando eles sairam para a cidade, para resolver coisas, para resolver questões políticas, eles não precisavam chegar na aldeia e fazer reuniões, por exemplo, com um casal que brigou, com um casal que estava tendo problema, coisas do tipo, e que esse conselho poderia aconselhar essas pessoas.E então, em 2008 eu iniciei tudo. Um dos mais velhos super apoiou a ideia, falando que era legal, mas que eu é que tinha que organizar isso, chamar as pessoas, vericar quem queria fazer essa função na aldeia etc. Minha organi-zação inicial começou com trinta pessoas, mas em menos de oito meses esse grupo se desfez e eu continuei sozinha com cinco homens. Então aí foram os quatro anos da minha vida muito pesado, onde eu tive que engolir muitos

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39SAMPA MUNDI ///sapos, onde eu perdi, durante quatro anos, perdi muitas noites de sono, por-que eu tinha que dormir chorando, tinha que dormir com o coração doendo, porque via e sabia de coisas que era errado, que não era o correto, mas que no momento não teria força ainda para lutar contra isso. Passei por muitas questões, e algumas vezes, confesso, quis desistir, mas sabia, que se desistis-se, aí que eu não ia ajudar ninguém mesmo, e que nenhuma mulher teria realmente, nunca, jamais, o espaço para fala, que nenhuma mulher nunca, jamais, teria coragem de denunciar qualquer tipo de violência só para lide-ranças homens e que eu tinha que continuar.Daí passando por todas essas questões, um monte de história e que é impos-sível contar tudo nessa forma, hoje em dia eu posso dizer muito fortemente que duas aldeias pequenininhas que tiveram sempre lideranças homens e que sempre existiu essa luta, essa vontade, essa necessidade de ter uma demarcação mais justa, de ter um território maior, sempre teve, mas nunca se teve a glória disso, a vitória disso, então a partir de 2012 a situação da equipe de liderança começou a se congurar de forma mais certa, da forma que eu sempre desejei, que é de ter uma equipe de liderança homens e mulheres jovens, dos dois gêne-ros e que realmente a gente estava tendo um protagonismo muito forte.E a questão da nossa luta pela terra se congurou de uma forma diferente, que foi a atuação efetiva de mulheres, de ideias de mulheres serem ouvidas, e aí isso somando, então, com a força dos homens na liderança atual, com um olhar mais sensível, um olhar mais de respeito, a compreensão de que na aldeia todos estamos juntos e que ninguém é melhor do que ninguém, com o apoio dos nossos parceiros juruá, não indígenas, de movimentos sociais, a gente come-çou levantar uma luta diferente. Não era pegar a assinatura de todo mundo na aldeia, que não era pegar um documento e ir pra Brasília e conversar com não sei quem, de partes de jurídicas de braços do governo, mas sim levantar todo mundo junto, ir parar rodovias, fazer manifestos na internet, gritar por parce-rias gritando “demarcação já”, fazer atos, invadir a prefeitura de São Bernardo, de invadir a casa da presidência na Avenida Paulista, e aí nessa pressão só duas pessoas irem em Brasília para ter uma conversa com o ministro Eugênio Ara-gão, um pouco antes do golpe, enm. Daí, então, eu acho que uma história muito bonita, que pode-se contar, é o quanto, de fato, um território pequenininho, duas aldeias pequenininhas,

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40 \\\ SAMPA MUNDIque teve foi uma longa espera de uma demarcação maior para o território, só conseguiu quando as pessoas puderam se unir, se juntar. Quando 300 Gua-rani puderam sair da sua aldeia para ir para a cidade, que é onde está o me-canismo do funcionamento da política em suas esferas especícas, gritar na porta deles, pressionar eles, mostrar pra eles o quanto a gente estava ansioso para ter a nossa vitória de uma luta muito antiga. A gente tem vídeos, tem fotos que, claramente, não gosto dessa palavra, na verdade, que certamente mostra a participação efetiva de mulheres na luta, na questão da luta pela Terra, que é uma das coisas absolutamente primordiais para a preservação da cultura, do conhecimento do povo Guarani. Que ali, nessas imagens, aparece o protagonismo da luta real da competência e da capa-cidade da mulher. Então nas fotos é possível ver mulheres pequenininhas, pin-tadas, fumando cachimbo, falando com homens gigantes que são os policiais, que são os guardas, brigando, gritando, sabe? É uma coisa muito bonita. Eu particularmente acho que essa luta do povo indígena da capital de São Paulo retratou, perpassou e inuenciou outras comunidades também pra fa-zer esse mecanismo de luta, que é de sair mulher e homem juntos na luta, e que isso, por sua vez, traz pra base um outro olhar também de possibilidade real de voltarmos, de fortalecermos a cultura Guarani, de que homem, mu-lher, ninguém é melhor do que ninguém. Que antes da invasão do juruá, antes da TV, antes da cultura do juruá inuenciar essa cultura tradicional, as mulheres Guarani eram muito, sim, respeitadas, e que homens desde pe-quenos aprendiam a cozinhar, a varrer, a fazer cantigas de ninar para seus lhos, suas lhas dormirem, que os homens lavavam os cobertores e que as mulheres lavavam peças menores, e que a mulher menstruada não podia fa-zer nada, tinha que car em repouso e nesses dias os homens que faziam as coisas, eu consegui ver esse mundo ainda quando criança, eu vi isso com os meus próprios olhos, então não é uma coisa do passado, passado de 300 anos. Quando entrou a cultura do juruá mais forte na aldeia, bagunçou muito isso e hoje a gente tem que lidar com situações muito diferentes e que as comuni-dades não sabem às vezes lidar com isso, como estupro, violência doméstica, violência contra criança, desordem social por conta de bebidas alcóolicas e de drogas, e muitas vezes, dependendo da aldeia, dependendo das lideranças, o mais forte, que no caso é homem, sempre sai por cima.

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41SAMPA MUNDI ///Acho que a questão da participação efetiva das mulheres indígenas Guarani como lideranças na aldeia, no território Tenondé Porã, é muito, muito po-sitiva mesmo, não só para nós, mas para todas as outras Guarani de outras aldeias. A partir daí, até hoje, já conseguimos desenvolver muitas coisas di-ferentes no nosso Território. Uma dessas coisas é que, a partir de um mode-lo diferencial da equipe de liderança, se consegue, nesse ano de 2020, estar vivendo a nossa política interna no formato de lideranças sem a gura do cacique, há quase cinco anos.Então aqui no território Tenondé Porã atualmente a gente tem nove aldeias e cinco delas não têm cacique; têm lideranças e essas lideranças possibilitaram um encontro de mulheres Guarani, por exemplo, algo que nunca existiu no nosso mundo aqui. Daí 220 mulheres poderem conversar, poderem relatar umas para as outras suas coisas. Elas puderam chorar, puderam denunciar várias questões. A gente conseguiu fazer um encontro de lésbicas não indíge-nas na aldeia, para discutir isso, para pensar isso, para conhecer isso. Porque então as aldeias estão também com essa realidade das pessoas falarem ou viverem com orientações sexuais diferentes, o que até há pouco tempo não era nem pensado.Esta é a aldeia, um território que já expulsou do emprego e da aldeia um pajé, que, pela tradição e pela cultura, é um dos caras que mais têm que cuidar do povo indígena, da sua aldeia, da sua comunidade; foi expulso por assédio sexual a meninas. Quem fez isso foi o território Tenondé Porã, talvez tenha sido o primeiro território a fazer isso.Demitimos um Guarani de uma família política forte, do emprego, por as-sédio a uma outra funcionária. Conseguimos encaminhar para a lei jurídica de fora um feminicídio que aconteceu na aldeia, em que um dos próprios irmãos da mulher foi acusado e espera julgamento na cadeia.Todas essas questões são super impactantes para muitas aldeias Guarani. A gente já fez, a gente está vivendo principalmente essa história de tirar a gura de cacique da aldeia, para fortalecer uma equipe de homens e de mulheres juntos na luta pelo bem-estar de todo mundo. Isso apenas foi possível e é possível por conta do protagonismo real, do trabalho efetivo de mulheres na equipe de liderança.

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SAMPA MUNDI /// ESCOLA FEMINISTA ABYA YALAMULHERES E INCENDIÁRIAS> Por Andréa Arruda, Angela Quinto, Arlete Mendes, Helena Silvestre, Kátia Alves e Silvia Tavares(Escola Feminista Abya Yala)

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Logo da Escola Feminista Abya Yala

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44 \\\ SAMPA MUNDIDe onde vem tanta fome de mudar a si e o entorno? Olhando para as mulheres que integram a Escola Feminista Abya Yala1, o que ca evidente, à primeira vista, é que o território de Campo Limpo tem permitido a conuência de vontades e ideias que fazem desse espaço um lugar propício ao sonho, ao novo, a um caminhar mais autêntico rumo a um estado de liberdade. Nosso percurso começou quando olhamos para o nosso círculo e nos reconhecemos como mulheres que enredam narrativas de resistência às opressões materiais e simbólicas engendradas violentamente no tecido social. A despeito de todas as estatísticas, não nos reduzimos ao simples ato de sobreviver. Estamos empenhadas em ressignicar e tecer conjuntamente nossas trajetórias de luta dentro desse vasto ter-ritório de Abya Yala, e fortalecer uma rede ampla, vívida e colorida.Demoramos até acertar a escrita desse nome, Abya Yala, que perma-neceu variando em diferentes lugares e registros. Vogais que ressoam e se apoiam em apenas duas consoantes. O corpo fônico evoca em nós uma memória sonora estranhamente familiar. Sabemos, ao ouvi--la, que se trata de um nome indígena. O acesso às línguas ancestrais, marca desse território nomeado além-mar de “América”, nos foi his-toricamente negado. Ainda assim, resistimos simbolicamente.Este texto foi construído conjuntamente por um grupo de integrantes da Escola Feminis-ta Abya Yala, a partir de algumas questões lançadas para resposta voluntária em Assem-bleia da mesma. As questões foram: 1) Como você se percebeu feminista?2) Qual sua per-cepção do ser mulher dentro desse espaço múltiplo e diversicado que é nosso território? 3) Qual a importância desses ajuntamentos de mulheres para pensar um feminismo com a nossa cara, levando em consideração nossas potências e diculdades? 4)Qual ou quais das ações e modos de fazer propostos pela Escola te zeram/fazem sentir-se bem/atuante/integrada à Escola, às mulheres e ao seu território? Cinco de nós responderam por escrito e as respostas foram compiladas por Arlete Mendes em forma de texto costurando os depoimentos. Posteriormente, acrescentamos fotos e um box com a cronologia das ações diretas da Escola em 2019 e 2020, e o nalizamos com a contribuição das psicólogas vo-luntárias que atenderam mulheres gratuitamente durante a pandemia.1Abya Yala é o nome dado ao continente hoje conhecido como América, em sua extensão do Alasca à Patagônia, pelo povo Kuna do Panamá e da Colômbia antes da chegada de Cristóvão Colombo e dos europeus.Literalmente signicaria “Terra em Plena Madurez”, ou “Terra de Sangue Vital”. (Postagem no Facebook da Escola Feminista Abya Yala)

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45SAMPA MUNDI ///Quando olhamos para o signicante da palavra, somos remetidas ao próprio tempo intrauterino, que um dia nos permitiu a vida. A terra e a mulher são fontes de riqueza, elementos da luta, de poder, de resistência à dominação e exploração, símbolos que se entrelaçam sinuosamente num ciclo entre a vida e a morte. Abya Yala não se faz apenas com uma marcação do léxico no campo político, mas com um reapropriar-se da Terra. Entre América e Abya Yala se revela uma ten-são de territorialidades, e estamos em franco posicionamento a favor do pensamento anticolonial, já que o pensamento colonial construiu historicamente redes de signicado de expropriação e apartamento do nosso bem maior, a Terra, com o qual nos relacionamos tanto em seu aspecto material, quanto no espiritual.Daí a ideia de trazer a público os nossos relatos, para que possam ser desveladas as conuências de vida, história e pensamento. Fomos provocadas a nos percebermos mulheres, periféricas, indígenas ou afro-brasileiras, feministas, faveladas e a pensar como esse ser e estar no mundo nos integra, nos entrelaça e nos fortalece, apesar da necro-política2 e das mortes crescentes dentro do nosso território, sobretu-do nesse longo período de travessia pandêmica.2Necropolítica: termo criado pelo lósofo camaronês Achille Mbembe, designan-do o poder que os Estados contemporâneos usam para delimitar inimigos internos a partir de critérios racistas e instituir o discurso de seu extermínio como forma de combater a violência.Assembleia Abya Yala, nov. 2019. Foto: acervo Abya Yala

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46 \\\ SAMPA MUNDIFEMINISMO FAVELADO“Eu z um caminho bem torto pra chegar ao feminismo. Na verdade, a pobre-za foi tão grande em alguns territórios que o que mais saltava aos olhos é que éramos pobres e até o gênero cava ofuscado por isso. Ofuscado, mas latente e oprimido com muita violência. Violência contra as mulheres que também cava um pouco ofuscada sob a violência generalizada que era o traço. Mes-mo militando desde cedo, essa palavra demorou pra chegar até mim e quando chegou foi através, geralmente, de companheiras que não se pareciam nada comigo ou com as mulheres de onde eu vinha. Um jeito de pensar mulher que não fazia sentido nas nossas vidas. Fui mesmo muito arredia com o femi-nismo até que as quedas na vida me empurraram a olhar, com seriedade, a perceber o mal que eu fazia a mim e a outras mulheres, a força da qual estava privando a luta que fazemos.Isso me pegou a fundo quando eu comecei a pensar sobre colonização e, como meus estudos são muito bagunçados, foi outro caminho torto que me levou a essa abertura. Eu passei a re-olhar as coisas com o olhar do feminismo e da anticolonização. Muitas amigas minhas se sentiam sempre como eu em relação ao feminismo e achei que podia dividir com elas o caminho de pen-samentos que z, pra ser mais rápido, menos cheio de quedas. Organizei um curso que se chama Descolonizando o feminismo desde Abya Yala e nos en-contramos durante três sábados. A cada sábado chegavam mais mulheres e a dinâmica ia se transformando: com crianças, com mulheres indígenas, com comida, com mutirão de trabalho, com rodas de terapia contando da surra que levou na noite anterior, da falta de auxílio e da sobrecarga que nos deixa enlouquecidas equilibrando comunidades famintas no o da navalha.Decidimos nunca mais parar de nos encontrar a cada último domingo do mês nós nos víamos. Um dia inteiro, de estudos, cozinhar juntas, chorar e, nas três horas nais, instituímos nossa assembleia feminista favelada, onde deliberamos sobre as coisas que compartilhamos no encontro e agimos no território (...)” (Helena Silvestre, militante do movimento de moradia, estudante de Saúde Pública, escritora, compositora e educadora popular, idealizadora da Escola Abya Yala.)

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47SAMPA MUNDI ///Nosso feminismo favelado quer levar em conta singularidades den-tro do território, dentro do recorte classe/etnia, bater às portas das comunidades; e ser feito pelas mulheres que mais sofrem com a vio-lência e o machismo estrutural. A carta de orientação para o curso mencionado por Helena, realizado em março de 2019, já traduz um acordo tácito no modo como nos ajuntamos, de lá pra cá. Quem che-ga entra com a disposição de aprender a:“(...) construir um ambiente fraterno, de mãos dadas, de muita ajuda e res-peito à maneira que cada uma leva a vida e interfere nela para transformá-la em vida digna, justa e feliz.(...) Algumas mulheres vão trazer suas crianças e nós, mulheres que não temos ou não levaremos crias, nos desaamos a ser solidárias e nos ajudar pra que todas estejamos em condição igual para aprender, nos despindo de nossos privilégios.Assim como as mulheres brancas vão se despir dos seus, assim como as mulheres hétero vão se despir dos seus, assim como as cristãs vão se despir dos seus e assim como as que possuem melhor condição econômica que as outras vão se despir dos seus.Os HOMENS que vierem a este espaço para compartilhar conosco serão recebidos de braços abertos, com o desejo de que possam colher disso ele-mentos para reconstruir a sua masculinidade – tantas vezes tóxica para nós – e encontrar dentro de si as energias femininas que quase sempre opri-mem, dentro e fora. Pensem que é lugar de fala prioritária das mulheres e que sua fala é bem-vinda DESDE que vocês se dispam também de seus privilégios de homem, tirem as sandálias e pisem com cuidado em cada palavra que dizem.Que possam também ajudar com as crianças e com tudo o mais que recai sempre sobre as nossas costas de mulher.Nenhuma leitura prévia é necessária e é possível que tenhamos entre nós companheiras de pouca leitura ou mesmo que não saibam ler. Assim, os textos compartilhados serão sempre leituras que alimentarão a discussão que já começamos no encontro presencial. (...)” (Orientações para a primei-ra aula, março de 2019.)

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48 \\\ SAMPA MUNDICLASSE, RAÇA E GÊNERO“Essa percepção de ser feminista ainda vem sendo construída dentro de mim, justamente por não me identicar com o feminismo branco e eurocêntrico. Bem antes da consciência de gênero atrelada à exploração e à desigualdade, me che-gou a consciência de classe. Me perceber pobre e favelada me levou a questionar as estruturas de desigualdades muito cedo. A “fragilidade” atribuída à mulher nunca teve espaço na minha casa e na minha vida. Minha mãe teve que apren-der a ser forte desde muito cedo, perdeu sua mãe aos 9 anos de idade, e sua maior preocupação era morrer e “deixar lhos fracos para o mundo fazer o que quiser”. Seu mantra era “seja forte amanhã; eu posso não estar aqui e você vai precisar se defender”. Felizmente, ela não nos faltou. Fui forjada com essa força feminina e com uma autonomia de quem precisa se virar desde cedo. A percepção que tenho de ser mulher parda/negra e pobre, não apenas nos nossos territórios periféricos, é que estamos em estado constante de alerta para que não ´façam o que quiserem com a gente´. Precisamos provar que somos mulheres capazes o tempo todo, e isso é demasiadamente exaustivo.A importância destes ajuntamentos, para pensarmos coletivamente um femi-nismo insurgente, com a nossa cara, é termos um espaço de onde possamos sair deste estado de constante defesa para um lugar de acolhimento das nossas fragi-lidades. É poder compartilhar o ´mundo das costas´ e perceber que não precisa-mos carregá-lo sozinhas e que, inclusive, podemos jogá-lo longe. Os momentos de formações e ações da escola são combustíveis essenciais para acender a fogueira da mudança em cada uma de nós. A ação de auxiliar mulheres com alimentos e outros afetos também me alimentou e trouxe a per-cepção de que existem muitas mulheres em brasa, apenas precisando de mais combustão para colocar fogo nesse mundo velho que nos colocaram nas costas. Sejamos incendiárias!” (Kátia Alves, professora e produtora cultural da Bra-va Companhia de Teatro, sede física da Escola Abya Yala.)Tanto na fala de Helena como na de Kátia ca claro que não enfren-tamos o machismo isoladamente, porque ele chega até nós multifa-cetado e apoiado por outros sistemas de dominação que o projetam e o retroalimentam. O capitalismo, o racismo, a política neoliberal e

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49SAMPA MUNDI ///as ameaças constantes ao estado laico, democrático e de direito são também nossos opressores. Queremos um feminismo que leve em conta toda a complexidade dos sistemas de opressão, e nos permita construir um novo modelo de sociedade, menos excludente, menos opressora, mais plural e mais igualitária.CORPO-TERRITÓRIO EM DISPUTA“Me percebi feminista num dos momentos mais difíceis e de muita dor na minha vida. Tive minha segunda gestação aos 39 anos, 12 anos após a primeira. Senti vergonha de engravidar com essa idade. Vivia um relacio-namento de cinco anos. Quando contei para o boy que estava grávida ele respondeu: ´Tem certeza que quer ter um lho a essa altura da sua vida? Minha vida não vai mudar em nada, já a sua...´. Permanecemos juntos durante a gestação, mas quando Soa fez 4 meses nos separamos. Quando voltei da licença gestante, fui demitida. Adoeci. Tristeza profunda, raiva, vergonha, culpa eram os sentimentos predominantes. Precisei de apoio psi-cológico e psiquiátrico. Não conseguia entender que tudo que estava vivendo era a expressão do machismo, atravessando minha carne e subjetividade. Segui sem acessar essa reexão e reconhecimento. Nem no espaço terapêuti-co fui capaz de nomear isso e nem minha psicóloga deu conta de me ajudar. A dor foi tão grande que não me lembro da Soa bebê. Perdi essa fase, pois minha energia vital era sugada por tanta dor. O ápice do adoecimento acon-teceu quando minha lha Mariana, com apenas 15 anos, sofreu violência física e psicológica do namorado. Ao levá-la para fazer BO, exame de corpo de delito, fomos massacradas por todos os homens que nos atenderam. Fui culpabilizada por todos, por deixar minha lha de 15 anos namorar. Ódio percorria minha carne que tremia. Depois desses episódios, percebi como o machismo mata as mulheres cotidianamente. Muitas ´amigas´ se afastaram de mim e de minhas lhas, fomos julgadas. Foi aí que percebi o que era femi-nismo, essa força de reconhecimento, cuidado e luta que encontrei em mim e em outras mulheres que me ajudaram a cuidar das feridas que sangravam e me deram força pra seguir em frente e fazer dessa dor uma luta para mim e por todas nós que morremos todos os dias.” (Andréa Arruda, psicóloga e professora universitária, idealizadora do voluntariado em atendimento psi-cológico na pandemia e integrante da escola)Entrega decestas Natal 2020.

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Andréa relata o quanto nossos corpos estão sujeitos a um controle externo, que se dá em discurso e práticas. Uma adolescente ou mu-lher madura são ambas recriminadas pela gravidez, por namorar, são entendidas como culpadas pela violência que sofrem. A gestação não nos pertence, pois passa pelo crivo da produção para o acúmulo do capital. Quando desvelamos o que vivemos a partir desta leitura é raro o dia em que não nos envolvamos em conitos. É para que essas estruturas se modiquem que seguimos juntas.“Ser mulher periférica é doído demais. Um desao constante. Muitas vivem o abandono, são chefes de família, quase não dão conta delas mesmas, pois precisam dar de comer, pagar aluguel, comprar roupa, cuidar dos/as lhas/os. Sobre elas recai o cuidado das crianças e inclusive dos homens, e nin-guém cuida delas. Nem todas têm o direito que temos de sermos cuidadas por outras companheiras, de reetir sobre nosso lugar no mundo. Há um olhar culpabilizante, e autoculpabilizante. As mulheres estão cansadas, sobrecarre-gadas, adoecidas. Não conhecem seus corpos, não vivem sua sexualidade, não gozam. Tá difícil ser mulher na quebrada. Lógico que tem um movimento pra romper esse ciclo, mas não atinge a maioria dessas companheiras.Os ajuntamentos de mulheres fazem toda a diferença. Consegui respirar me-lhor quando me encontrei com outras mulheres, [nas coletivas] Somos to-das Atlântico,8M na quebrada, Periferia Segue Sangrando e Escola Feminista Abya Yala3. Mulheres que oferecem uma escuta menos culpabilizante, que conseguem relacionar toda essa dor às violências estruturais que permeiam as relações e formam nossa subjetividade. Precisamos alcançar mais mulheres. Inclusive as próximas a nós, irmãs, mães, lhas (...)” (Andréa Arruda)Sobre a mulher periférica recai toda a gana e fúria do capital, toda a crueldade e violência do machismo, todo o julgamento e abandono do Estado. Por isso a luta se dá também no amparo e no cuidado desse corpo feminino espoliado de seus próprios dons, potências e riquezas. Andréa atravessa seus desertos, mas não segue sozinha. Ar-rasta consigo mais mulheres, que estão aprendendo a transformar dor em luta, construindo uma prática de psicologia periférica, atenta ao comunitário, ao feminino, ao antirracismo.3Nomes de coletivas ou manifestações feministas periféricas.

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CHEGANÇAS E TRANSIÇÕES“Feminismo aconteceu para mim no percurso de descobrir-me mulher, deu-se no processo, um femear-se. Por muito tempo fui bem parecida com Carolina Maria de Jesus em Diário de Bitita. Queria achar um arco da velha para me tornar homem, já que, segundo minhas observações infantis, era muito me-lhor ser macho do que ser fêmea. Nasci dentro de uma família paradoxalmente matriarcal e machista. As mu-lheres exerciam o poder, inclusive nanceiro, mas não tinham o poder político. Dobravam-se nos momentos cruciais de decisão para a vontade dos homens. Até que um dia eles vão embora ou morrem, como é o caso do meu pai e avôs, e as mulheres tomam para si o seu próprio destino. Foi assim com minha avó, foi assim com minha mãe, e da mesma forma comigo. Olhar para a trajetória delas em conuência com a minha é que me deu for-ças para o engajamento nessa pauta. Minha gota d’água contra o machismo se deu após o rompimento de um relacionamento abusivo, um casamento de doze tortuosos anos. Iniciamos num grupo de amigas muito próximas um ci-clo de debates, com intuito formativo e de ter espaço para dividir as agruras da vida, e nele prosseguimos por nove anos.Helena deu as bases para a Escola Feminista Abya Yala, e minhas amigas Eli-sabete Melo e Kátia Alves começaram a participar. Insistentemente me convida-ram, mas eu tinha me mudado da zona Sul, e a distância havia se tornado um grande entrave; mas, como parte do nosso grupo intimista de discussão sobre o feminismo estava lá, movida à vontade de ajuntamento, resolvi participar.4Foi um dia intenso, de muitas emoções, compartilhamento de aprendizagens, sem perder de vista o aspecto formativo, com a notória ampliação do debate e do repertório de saberes sobre o feminismo periférico afro-indígena, pautado em bases teóricas decoloniais. A Escola estava organizada num nível muito mais prossional se comparado ao nosso feminismo ‘caseiro’. Senti-me impactada por conta de depoimentos de lutos e tristezas, a dor da outra nos atravessa. Muito diferente do grupo no qual eu participava há mais de nove anos, estava diante de um grupo grande, bem diversicado, em que 4Arlete começou a participar dos encontros em fevereiro de 2020.

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conhecia poucas pessoas, num espaço que não era nossas casas, mas saí de lá com a certeza que voltaria e que o melhor a fazer era nos ajuntarmos.” (Arlete Mendes, professora, escritora, integrante da coletiva Elas contra Tebas).Arlete traz em seu depoimento o poder das matriarcas de sua família, e a expropriação dele pelas convenções do casamento. Segundo ela, o alerta de mãe e avó era para que as novas gerações de mulheres (como ela) se zessem e fossem reconhecidas como pessoas antes de se casarem, para que esse poder nunca lhes fosse tomado. Ainda as-sim, a vida vai construindo tortuosos caminhos e reencontros, como o que a levou do feminismo “caseiro” entre amigas ao feminismo fa-velado da Escola.Sarau no metrô Capão, 6/fev/2020. Foto: divulgaçãoAtividade de corpocom Débora Marçal. 2020Foto: divulgação

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“NÓS DE REDES”As formas de apoio individuais são válidas porque garantem a sobre-vivência de muitas, mas, quando estamos organizadas e pensamos coletivamente estratégias de resistência, o alcance torna-se muito maior. Nesta rede, que estamos começando a tecer, queremos que mais mulheres possam se perceber como potência dentro de suas famílias e comunidades, fazendo com que as histórias se cruzem e reverberem dentro de nós e, consequentemente, dentro do território em que vivemos e atuamos prossionalmente.“Após ter meu quarto lho, com 41 anos, voltei da licença-maternidade para a escola em que trabalhava me dizendo que não dava mais pra desperdiçar tempo fazendo coisas para obedecer aos outros. Essa sensação de que a hora é agora, no meu caso, tem a ver com a consciência do envelhecimento, mas também com a necessidade de armar determinadas propostas, modos de trabalho e projetos com mais coragem.Fui também me percebendo feminista através dos olhos de outras mulheres, e no contexto de outras aprendizagens empreendidas em grupo. Em 2014, uma das primeiras ações de Marilu Cardoso à frente da Divisão Pedagógica da Diretoria de Educação do Campo Limpo (DRE Campo Limpo) foi lançar uma exposição em que mulheres indicavam companheiras de referência, chamada “Mulheres que Lutam”. Alguém me indicou, e quando vi estava numa exposição que rodou vários CEUs e a própria Diretoria, compondo roda com algumas matriarcas do meu bairro (que honra!). Poder nomear a admiração por uma outra mulher já é um ato revolucionário, quando fomos educadas para nos compararmos e competirmos incessantemente. Agora, bem recentemente, Marilu me disse que essa exposição tinha a intenção de mapear e captar, para a articulação com a equipe pedagógica da DRE, quem eram as forças e pessoas-chave com quem po-deriam contar (pois ela e sua equipe sabiam que encontrariam resistência para a implementação de uma formação antirracista, antissexista, questionadora de padrões, aguerrida). É dessa visão estratégica e corajosa que falo quando digo que quero aprender a ser como elas. Essa mesma visão e poder de convocação eu consigo perceber na Escola Feminista Abya Yala, que junta mulheres (e também convocou homens...) com atuações fundamentais na defesa das gentes do nosso território periférico da Zona Sul, para se olharem, apoiarem, fortalecerem, es-tudarem, e principalmente para se sentirem juntas. Ser mulher nesse território é como o nome da exposição de 2014, ser mulher de luta. Um exemplo na área da

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55SAMPA MUNDI ///cultura: há uns vinte e poucos anos, os movimentos culturais da zona Sul foram desenhando possibilidades de encontro para além do terminal e da igreja pra gente que mora aqui. Dos encontros, surgiram vozes expressivas, nas artes, na política, na mobilização, que permitiram inclusive o desenho de políticas públi-cas com a participação de pessoas daqui pautando critérios e prioridades. Hoje, vejo que na rede que cria a possibilidade desses encontros estão mulheres e, na maioria das vezes mulheres pretas, que sempre estiveram: provendo, pedindo ajuda, trocando, possibilitando o local, a comida, chamando gente, escreven-do, compondo, incentivando outras e outros a também se expressarem... E no entanto faz muito pouco tempo que práticas como o assédio moral e sexual, a difamação, o roubo da autoria passaram a ser explicitamente nomeados nestes espaços. Lembro da hashtag #nãopoetizeoseumachismo#, puxada por mulheres, e que levantou um sem-m de casos de abuso cometidos por pessoas que se no-meiam progressistas e desconstruídas em seus preconceitos. Em 2020 continua-mos presenciando práticas como estas, tanto mais talvez em espaços sem tanta visibilidade, no espaço privado... Haveria outros (muitos) exemplos se eu fosse puxar estatísticas de feminicídio e violência, abandono parental, ganho desigual de salários, que se somam às outras mazelas que passamos aqui como popula-ção excluída e que nos fazem sentir muito peso para carregar...” (Silvia Tavares, educadora da rede pública e produtora cultural)Tivemos ao longo dos encontros a presença de mulheres chamadas a partir de sua atuação prossional como educadoras, psicólogas, ativistas, e talvez tivéssemos mais ainda não fosse a pandemia. Essa possibilidade de quebrar barreiras e construir laços de afeto e corres-ponsabilização faz com que estejamos, todas, na ação de cada uma em seu local, e dá uma potência enorme para nos comunicarmos e agirmos em grupo. Um corpo coletivo.Fomos envolvidas por ações que acolhem, apoiam e dividem o fardo de sermos estes corpos julgados e violados física e simbolicamente, mas que não se resignam a essa condição. Realizamos estudos que são compartilhados, sempre de forma inclusiva, inspirados nas me-todologias de educação popular. Esses nos fazem reetir sobre o ca-Assembleia virtual.Novembro/2020

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pitalismo, a expropriação de culturas, sobre nosso corpo, sobre eco-nomia e quem a sustenta; nos corresponsabilizamos pelo ambiente e condições dos encontros, que é uma forma prática de aprender em convivência com as mulheres mais novas e com as mais velhas, trans-pondo barreiras geográcas, geracionais e identitárias. Isso tem nos permitido considerar as diferenças, mas também nelas construir uma percepção mais ampla da condição comum que enfrentamos. Nesses encontros nos dispomos a práticas e vivências generosas e cui-dadosas, que nos permitem desaguar coisas que nem suspeitávamos que estivessem ali. Realizamos mobilizações em prol de outras mu-lheres que (ainda) não estão conosco, que nos ensinam sobre a vida e sobre o diálogo, e nos mostram o quanto ainda temos que avançar.Terminamos este relato, construído a muitas mãos, com um poema escrito pelas terapeutas que realizaram acolhimentos gratuitos a mu-lheres que precisaram de ajuda psicológica por via remota, de maio a dezembro de 2020, como exercício de síntese das vivências regis-tradas nos atendimentos. A escrita-exercício foi proposta por Angela Quinto e Andréa Arruda no encontro nal das terapeutas. A provo-cação para o poema veio, segundo Angela, do texto de Michel Fou-cault, A vida dos homens infames e do livro Pensar Nagô, de Muniz Sodré. Que notícias de sufocamentos foram ouvidas nos atendimen-tos? O que acontece quando essas vozes consideradas insignicantes cessam de pertencer ao silêncio e a vida do dia a dia se torna dizível? Os corpos dessas mulheres vibram somente na dor e violências vivi-das? Na prática da escuta e acolhimento observamos a existência de uma certa alavanca, um estar positivamente aberto às condições de se realizar. A despeito de todo o vivido percebe-se que as alegrias (ala-cridade, para Sodré) podem se tornar uma regência de vida. Entre notícias de sufocamentos e alegrias, esse registro de nossas compa-nheiras colhe e revela dores e microrrevoluções das mulheres de um território em movimento. São nós, somos nós. Somos.

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No entanto estamos aquinão caibo nesse corpo fêmeada polícia quero distânciatenho força porque aqui tem fomea vida toda trancadapara eles a loucura não bastaaqui não é meu lugarbebo por vingançaser sagaz me excluiminhas crises não são frescurasum inferno essa minha casabati no meu lho que chorava de fomeco só com o que é meufalei nãodescobri uma prossãoagora posso ser lhameu salário mantém a famíliahoje sou reconhecida no trabalhopercebo minhas capacidadesbusco as origens da famíliaabro mão de padrões antigosnão quero aprisionamentosfaço uma nova história

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58 \\\ SAMPA MUNDICRONOLOGIA DOS ENCONTROS DA ESCOLA FEMINISTA ABYA YALAMarço/19 - Curso “Descolonizando: Feminismo desde Abya Yala”16/03 Eixo 1 O pensamento que chegou com as caravelas dos colonizadores: hierarquia, ho-mogeneização, opressão, binarismo; Como o pensamento colonizador vive na cabeça da gente?; Não pode existir um discurso descolonizador sem uma prática de descolonização; Ref bibliográca principal: Silvia Rivera Cusicanqui e Lorena Cabral23/03 O corpo e o território colonizados; os povos que pariram o Brasil – território e nature-za; corpo, saúde e o lugar das mulheres; Bruxas, Xamãs e Yalorixás; o que é poder? Ref bibliográca principal: Beatriz Nascimento, Feminismo Comunitário e Silvia Federici30/03 Insurgência e rebeldia do corpo-territórioConstruir o feminismo desde Abya Yala ; Um projeto de revolução não apenas para as mulheres; as lutas das feministas na América Latina; a resistência dos povos: negras, indígenas e afroindígenas desterradas; ecofemi-nismo, agroecologia, permacultura e outras práticas de relação com não humanosRef bibliográca principal Movimento feminista na América Latina, Rosa Luxemburgo, Isabelle Stengers, Yayo Herrero27/04 - Reunião de organização dos encontros e compartilhamento dos objetivos27/05 – Espaço CITA - Reunião conjunta com Coletiva Camomila e Coletivo Permaperifa; vivência de medi-cina ancestral – ginecologia natural; lançamento do livro “Notas sobre a Fome” (Helena Silvestre);30/06 – Brava Cia – Leitura: “Couro Imperial – raça, gênero e sexualidade no embate colonial” (Anne McClin-tock). Cap. 5 – “O império do sabonete”/ vivência de plantas medicinais – Paulo Sem Vulgo e Dayane28/07 – casa da Michele Correa; Leitura: “O que é um corpo?” Tânia Stolze Lima/ dinâmica de corpo10/08 - Ação direta: mutirão na EMEI Chácara Sonho Azul – parceria com Rede Permaperifa e coletivo Ter-ritorialidades31/08 –SESC Santo Amaro; Leitura: “O nascimento da medicina social” – Michel Foulcault; dinâmica de corpo29/09 – Brava Cia.; Leitura: “Sobre o trabalho afetivo” – livro O ponto zero da Revolução (Silvia Federici).

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59SAMPA MUNDI ///Presença da Coletiva Sycorax; Trabalho de corpo – escalda-pés; Assembleia – escrita de manifesto-denúncia da violência sofrida por mulheres/acolhimento de companheira/apoio legal.27/10 – Brava Cia; Leitura: “Uma leitura feminista da dívida” – Verônica Gago e Luci Cavallero”24/11 – Brava Cia; Avaliação e planejamentoDez/ 2019 – mutirão de pintura e acabamento na Brava Cia de Teatro.2020Fevereiro – Brava Cia (Vila Prel); Leitura: Beatriz Nascimento;ocina: Ciclos femininos – ciclos lunares e menstruais; trabalho de corpo : Débora Marçal; Assembleia.Março1/3 – SESC Campo Limpo; Leitura: “Couro Imperial” –A situação da Terra: genealogias do Imperialismo; Or-ganização do sarau Pela Vida das Mulheres (Metrô Capão Redondo, 6/3/20)6/3 – Sarau “Pela Vida das Mulheres” – Metrô Capão Redondo – 19hAbril: construção da campanha de arrecadações – escrita para crowdfunding “Enfrente” (Fundação Tide Setúbal) - cadastro de 100 famílias cheadas por mulheres para recebimento de cesta básica e produtos de higiene e envio de cestas básicas, livros e outros itens a famílias de quatro escolas públicas da Zona Sul e ocupações. Organização do atendimento psicológico gratuito às mulheres; Parcerias: Agência Solano Trindade/Bloco do Beco/Sarau do Binho/UNEAFRO/Fundação Tide Setúbal/Ação Educativa/confecção “Clamarroca”/doações individuais.Entregas: maio /junho/julho/agostoSetembro: 23 de Setembro a 27 de outubro/2020: Curso no SESC Interlagos (12 encontros): “Construção de redes de apoio focadas na conexão, mobilização e fortalecimento de mulheres periféricas, trabalhadoras e também daquelas que são vítimas de violências diversas”Novembro e dezembroParticipação no evento “Estéticas das Periferias” – Coletiva “Elas contra Tebas”; organização de entrega nal de cestas básicas e cesta de Natal.

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Meu nome é Irene. Sou militante do Luta Popular, um movimento de trabalhadoras e trabalhadores que se organizam nos territó-rios periféricos; atuamos na luta por moradia e contra despejos, na cultura popular de re-sistência, nas brigas por melhorias nas con-dições de vida nos bairros (esgoto, creche, coleta de lixo, urbanização, contra a violên-cia policial etc.), e ajudando a “isqueirar” as batalhas para mudar esse mundo.Sou mulher, sou jovem e sou do movimento há mais de oito anos. Não sou sem teto. Tive casa, condições e a possibilidade de estudar. Na fa-culdade, fui militante do movimento estudan-til, onde me descobri feminista, antirracista, contra o imperialismo e querendo pôr abaixo o capitalismo! SAMPA MUNDI /// Militância desencastelada: atuação, organização e mobilização na periferia> Por Irene Maestro Guimarães

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61SAMPA MUNDI ///Minha militância era intensa, mas não dava para ser realmente consequente com nada disso sem ultrapassar os muros que encaste-lam a universidade. A vida me mostra, se abro os olhos para ela, que não posso ser uma mu-lher “livre” à custas de explorar outras mulhe-res, que não posso ter uma vida de verdade enquanto houver negras e negros e indígenas sendo exterminados, que não adianta ter um teto e car pensando na revolução enquanto milhares padecem da falta de tudo por conta da existência da propriedade privada. Por isso, fui caçar formas de destruir todo esse sistema que se alimenta de uma lógica em que um punhadinho dos que estão em cima vivem à custas da exploração da maioria.Participei de movimentos contra a tarifa do transporte, de comunas urbanas na luta pela terra, de ba-tucadas populares na periferia da metrópole, de mobilizações de denúncia contra ameaças de morte a lideranças de movimentos sociais, de articulações com grupos que constroem a luta territorial contra o sistema capitalista, de expedições aos territórios guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul para conhecer e forta-lecer suas lutas contra o genocídio, de cursi-nhos populares na zona Leste, até me deparar com o sarau no fundão do Capão e com as lutas de bairro da zona Sul.Foram muitos aprendizados, tentativas, ex-periências e pontes, ao lado de pessoas muito valorosas. Mas, na minha cabeça, ainda era preciso denir uma estratégia para a luta, que se expressasse em um espaço coletivo constante para permitir construções de lon-go prazo. Com a última turma que conhe-ci, meu ponto de chegada e começo de uma nova caminhada, cava cada vez mais claro que isso se daria através do trabalho na base e da reexão sobre ele, tendo isso como “força motriz”. Isso daria força, coragem, segurança e... muuuuito trampo! Mas é o que ajuda a mim e ao meu coletivo para tentar respon-der aos questionamentos que realmente im-portam sobre as coisas e é o que nos dá uma certa rmeza para nos movimentarmos e nos arriscarmos a fazer mil coisas malucas e/ou ousadas e/ou incertas (a política é sempre um ato arriscado, sem nada garantido), sem esquecer aonde queremos chegar. A partir das experiências de gente que veio do movimento de moradia, da cultura ou da luta de bairro, construímos o Luta Popular, que, juntando os aprendizados que cada um carregava nessas três dimensões, se fundou com base nos seguintes princípios de atua-ção, organização e mobilização, sintetizados mais ou menos assim: quem decide é o povo; quem faz decide e quem decide faz (não tem essa de um que manda e os outros fazem, ou gente com a “mão na massa” que não partici-pa da elaboração do que fazer); as coisas são feitas coletivamente; não acreditamos que as instituições vão resolver nossos problemas; então, embora não descartemos também ações institucionais, nossa aposta é na luta direta; somos independentes de governos e patrões e temos autonomia perante os par-tidos; combatemos no nosso fazer o machis-mo, o racismo, a LGBTfobia, a xenofobia e toda forma de opressão.

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62 \\\ SAMPA MUNDIAprendi essas coisas, na prática, principal-mente com uma inestimável companheira da zona Sul, mulher, preta, favelada e um tanto “bruxona”. Ela também me ajudou a enten-der que a gente só começa a conseguir saber o que uma pessoa almeja, como pensa e o que lhe mobiliza as esperanças, quando nos vemos submetidos a viver como ela vive. Isso não quer dizer que tenhamos que viver na rua para lutar por moradia, mas signica, por exemplo, no caso das ocupações, que quan-do marchamos juntos para exigir do governo permanecer no terreno, sentimos o mesmo cansaço, a mesma sede; que quando apanha-mos juntos da polícia numa manifestação contra um despejo, sentimos a mesma raiva e ódio de classe contra os de cima; que quando temos uma pequena vitória juntos, comparti-lhamos ao mesmo tempo e sem palavras um profundo sentimento de sermos companhei-ras e companheiros de batalha.Disse-me ela uma vez: “Depois que viven-ciamos essa percepção (e digo vivenciamos porque ela começa com uma vivência), se aguça no nosso caráter e na nossa sensibili-dade a potência para reconhecer os elos que produzem uma mínima e elementar identi-dade coletiva entre os diferentes setores que compõem a classe”. Isso é fundamental na luta para “ORGANIZAR OS DE BAIXO PRA DERRUBAR OS DE CIMA” (lema do nosso movimento). Dentro da nossa diversidade (inclusive a “di-versidade” de eu não ter nascido na quebrada e ter tido condições de vida diferentes das mi-nhas companheiras e companheiros de luta), tudo que sabemos fazer e todos os nossos conhecimentos, estando dentro dos nossos princípios, podem ser úteis, válidos e aprovei-tados, desde que tenhamos clareza e rmeza na nossa estratégia. Foi desse jeito que o Luta Popular me acolheu como militante.Comecei explicando do começo, para mos-trar de onde escrevo (tanto do ponto de vista da trajetória individual quanto das práticas coletivas junto de quem generosamente me formou) e para deixar claro que não preten-do aqui falar em nome ou “representar” nin-guém, nem pretendo protagonizar o uso da palavra ou da “fala por si” (historicamente negada) de quem me acompanha nessa cami-nhada. O objetivo desse texto é compartilhar algumas vivências de trabalhos desenvolvi-dos a partir das mulheres nos territórios de luta que o movimento constrói e dos quais fui e sou parte. Entendo que são experiên-cias muito ricas e que vale a pena partilhá-las para estimular as lutas feministas na periferia e fortalecer a troca entre quem está envolvido nos diversos processos existentes!

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63SAMPA MUNDI ///A sociedade em que a gente vive arranca nos-so couro na hora de nos explorar em troca de algum dinheiro que é preciso ter na mão se você quiser comer, pegar busão ou ter teto para morar, porque tudo é mercadoria que temos que comprar se quisermos acessar o necessário para poder reproduzir nossa vida e sobreviver. É na periferia que a miséria que se ganha para enricar algum patrão é maior, e é onde falta tudo (em quantidade e qua-lidade), como transporte, saúde, educação, moradia digna e muitas vezes comida. Só o braço armado da polícia é que não falta, já que o genocídio é ocontrole da população preta, pobre e periférica.Historicamente, há mais de 500 anos, e go-verno após governo, desde que se constituiu o que chamamos de Estado, nada nos será garantido; sempre foi necessário nos organi-zar e lutar para arrancar as coisas de que pre-cisamos. É por isso que movimentos como o nosso ocupam terra diante dos altos aluguéis e salários que não dão para o mínimo; diante de grandes terras vazias e concentradas em poucas mãos, enquanto muitos e muitos vi-vem apinhados sem moradia digna. Ocupa-mos para retomar aquilo que foi – e segue sendo todo dia – arrancado de nós!Por isso é que, para a gente, a ocupação não é só para conquistar e arrancar na marra a moradia, mas é também uma pequena expe-riência do povo de ser seu próprio “governo”, porque poder é algo que também nos é rou-bado. É decidir e “fazer acontecer” coletiva-mente o território: os espaços coletivos e as casas, as dinâmicas de convivência, a reso-lução de conitos e diculdades, o enfrenta-mento contra os governos, a luta direta em atos e manifestações...A participação das mulheres é sempre mui-to expressiva na luta por moradia, provavel-mente porque a casa é socialmente conside-rada uma responsabilidade sua. Elas também têm uma contribuição de destaque na luta na hora da mobilização para os atos, nos mo-mentos de pressão da polícia, ajudando na organização interna do acampamento. Mas, ainda assim, as desigualdades de gênero não deixam de ser reproduzidas nesse processo.TODO PODER AO POVO = MULHERES TRABALHADORAS, POBRES E PRETAS NO PODER!Manifestação da Ocupação Esperança. Foto: Gabi Moncau

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64 \\\ SAMPA MUNDIPor exemplo, se existe a responsabilidade/imposição social do cuidado das tarefas do-mésticas e dos cuidados com crianças e ido-sos, a mulher não vai poder ir a uma reu-nião de negociação ou assembleia se for no horário em que ela está fazendo o almoço. Se o marido a agride e a controla, e ela não sai do barraco, vamos deixar de ter mais uma lutadora num protesto pela permanência no terreno, e a ocupação ca mais fragilizada. Se a mulher se sente insegura para falar nos espaços coletivos, a opinião dela não vai con-tar na tomada de decisão. Se as mulheres têm sua participação efetiva interditada pelo ma-chismo (de variadas formas), a experiência de “poder popular” está limitada.Então, se queremos que tudo seja decidido e feito por todas e todos na luta, num verdadei-ro exercício de “democracia direta”, é preciso enfrentar o fato de que as mulheres se encon-tram em condição de desigualdade, mesmo entre os “de baixo”. Por tudo isso, o feminis-mo é um princípio para o Luta Popular.Conseguir conectar a perspectiva feminista com a nossa prática política não é nada sim-ples. Nos deparamos o tempo todo com con-tradições: as pressões objetivas da realidade, que está estruturada com base nessa opres-são que permeia nosso cotidiano, e as ideias machistas reproduzidas por todos nós e que são difíceis de identicar e de romper, inclu-sive por parte de quem já é “militante” e tem algum debate e reexão acumulado sobre o tema. Então, estamos falando de um verda-deiro desao de educação popular coletiva e de enfrentamento por meio de proposições práticas nada fáceis de “bolar” perante as si-tuações em que estamos inseridos na luta.A Ocupação Esperança, localizada em Osasco, começou em agosto de 2013 e, até hoje, quase 500 famílias seguem na luta por moradia. Nos processos de preparação da ocupação, a ques-tão do respeito nas relações e da igualdade na luta sempre foi trabalhada com as famílias, e, logo no começo, quando ainda estávamos em barracos de lona, sem energia, nem água, de-batemos nas assembleias diárias a importân-cia de incorporar as mulheres em outras tare-fas além da cozinha comunitária, mutirão de limpeza, cuidado com as crianças e do papel de “secretariar” as listas e cadastros. Algumas mulheres se dispuseram a ajudar a organizar as vigílias de segurança à noite, pen-sar a prevenção de ameaças externas (jagun-ços e polícia), dialogar com moradores para a A EXPERIÊNCIA DAS “MULHERES DA ESPERANÇA”

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65SAMPA MUNDI ///resolução de conitos como brigas ou algum caso de violência, coordenar as atividades de infraestrutura coletiva do acampamento etc., tarefas majoritariamente assumidas por ho-mens. Também estimulamos que mulheres se propusessem a ser coordenadoras de “setor” (que foi uma forma de delimitação do espaço para organizar os trabalhos coletivos entre as moradoras e moradores). Isso foi importan-te para os homens compreenderem as iguais capacidades que as mulheres tinham perante eles, para que elas se desenvolvessem e para que dessem sua contribuição para a forma como as coisas iam sendo feitas. Mas ainda havia insegurança ou um entendimento (de-las próprias e dos demais) de que seu papel era apenas de “apoio”.A partir daí, pensamos que era preciso for-talecer ainda mais as mulheres diante das diculdades colocadas pelo machismo no âmbito doméstico e diante do conjunto da comunidade. A ideia era criar um espaço para compartilhar e construir ferramen-tas para que elas pudessem elaborar sobre a opressão em que vivem e sobre as lutas que fazem. O desao era trazê-las para dirigir a luta e ajudar a desenvolver outras formas de relação na ocupação. Assim, começamos um trabalho mais direcionado com as mulheres, a partir de reuniões.A primeira reunião foi chamada dentro da cozinha comunitária para, por um lado, valo-rizar este importante trabalho feito pelas mu-lheres, sem o qual a ocupação simplesmente não conseguiria existir, mas também para questionar o fardo de serem as mulheres que têm de garantir tudo aquilo que é fundamen-tal para o ser humano sobreviver, à custa de serem tolhidas em diversas outras dimensões de suas próprias vidas. A partir das primeiras prosas, elaboramos a Cartilha de Mulheres do Luta Popular para distribuirmos e discutir-mos com as demais moradoras.A reunião foi se desenvolvendo, se amplian-do, incorporando várias formas de fazer os debates, especialmente a partir do teatro, que se tornou importante meio de expressão de ideias, de dar vazão ao compartilhamento de situações vivenciadas em casa, de integração, e de construção de laços de conança. Com periodicidade semanal, a Reunião das Mulhe-res se tornou espaço reconhecido e consolida-do da ocupação.Nesse decorrer, também era preciso conectar, de forma mais profunda, as perspectivas polí-ticas feministas que iam sendo desenvolvidas e amadurecidas nos debates com o conjunto da ocupação. Muitos homens, no início, ca-vam muito incomodados com “suas mulhe-res” indo a uma reunião sozinhas. Queriam saber o que se discutia, por que elas começa-vam a questionar certas coisas antes “naturali-zadas”, sentiam-se desconfortáveis com o fato de elas terem um espaço próprio sobre o qual eles não tinham qualquer domínio e indaga-vam se era só “tricotagem” ou o começo de uma rebelião contra eles.Como o objetivo do debate sobre a questão das mulheres era proporcionar uma relação

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66 \\\ SAMPA MUNDIde maior igualdade entre homens e mulhe-res na luta e com isso fortalecer o conjunto da ocupação, começamos a divulgar mais o sentido desse processo. O cordel que zemos deixa bem claro: Lava, passa, cuida e limpa / Arruma tempo pra lutar / E ainda vem o marido / Encheção lhe arrumar / Acha ruim quando a mulher / Passa a ser linha de fren-te / Toma as rédeas da sua vida / Quer um mundo diferente / Deixe, hômi, de bobagem / Nessa luta por direitos / Tem que ter cama-radagem / Tudo com muito respeito / Femi-nismo é ideia louca / Que todos somos iguais / Sinto muito se isso implica / Em tirá um pouco sua paz / Vô dizê o que as muié qué / Porque a gente não mente / É juntar a nossa luta / Co´a luta da nossa gente!Então, organizamos ciclos de discussões com temas mensais, culminando em uma reunião aberta ou alguma atividade comunitária para socializar os debates e envolver a todos no debate feminista. Começamos com “violên-cia contra a mulher”. No nal do mês, tira-mos alguns entendimentos de como tratar dos casos que ocorressem na ocupação e -zemos uma campanha em defesa da vida e da autonomia das mulheres na ocupação com panetagens, discussões em assembleia, con-versas de porta em porta, e uma peça de tea-tro sobre o assunto para toda a comunidade.Depois passamos para outros temas como saúde, questões étnico-raciais, sexualidade, cuidados com lhos, educação, trabalho, história da luta das mulheres, trajetórias de vida, sabedorias medicinais, padrão de beleza, luta por creche e escola, geração de renda, acolhida e cuidado entre mulheres, autodefesa... Além de debater a participação das mulheres nos processos gerais da luta da ocupação e fora da ocupação, da luta das trabalhadoras e trabalhadores contra os go-vernos e contra o sistema. Tudo feito através de várias formas (debates, vídeos, teatro, ela-boração de materiais, músicas, intervenções, ocinas, ajuda mútua, troca com outros es-paços de luta de fora da ocupação), e com periodicidades que foram se transformando ao longo desses quase sete anos, conforme a realidade de cada momento.Dona Josefa recitando música de sua autoria sobre as Mulheres da Esperança, na festa de seis anos da comunidade. Foto: Sérgio Koei

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67SAMPA MUNDI ///As contradições são muitas, mas posso armar que essa experiência foi e segue sendo muito importan-te para a luta coletiva. Com ela, evidenciou-se que são fundamentais os espaços de socialização entre mulheres para a descoberta de si mesmas e para a construção de relações de companheirismo, lazer e amizade (desenvolvimento pessoal e político que o connamento doméstico tolhe!); evidenciou-se que é fundamental a existência de espaços de apoio para as diculdades relativas à violência, sobrecar-ga doméstica, autoestima, preconceitos, inseguran-ças (nenhuma mulher está sozinha!); evidenciou-se o papel e a importância das mulheres na luta (sair da invisibilidade!), e, nalmente, evidenciou-se na comunidade que o machismo não é um problema individual, mas um problema estrutural e que, por-tanto, só pode ser superado com a transformação da sociedade e que isso é tarefa dos “de baixo” (respei-tando o protagonismo das mulheres!).Todo ano, as Mulheres da Esperança fazem uma apresentação cultural na festa de aniversário da ocu-pação; elas são fundamentais na Associação de Mo-radores, no desenvolvimento dos projetos da comu-nidade (como o “projeto popular de regularização urbanística” do bairro), nas manifestações, reuniões de planejamento ou de negociação... em tudo o que acontece na ocupação! Ao tecerem juntas a descoberta de sua força, desco-brem a força da classe trabalhadora: compreendem que a vida melhor que buscamos só acontecerá com a união entre os “de baixo” (superando a cisão que o machismo constitui) contra a exploração dos “de cima”. Firmam a certeza de que a revolução que queremos também será feita pelas mulheres, ou ela não acontecerá!

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68 \\\ SAMPA MUNDIA sociedade em que vivemos junta todas as opressões, violências e discriminações e as direciona sobre o corpo das mulheres negras, trabalhadoras, pobres, faveladas, sem-teto, subordinando-as e inferiorizando-as. O Manifesto de uma das iniciativas que sur-giram a partir das Mulheres da Esperança diz: “Nosso feminismo é aquele que pisa no chão de barro, que sai de dentro das cozinhas dos barracos, nas vielas das periferias; que se con-trapõe ao peso do cartão de ponto da mulher que trabalha para sobreviver; que sai da boca das mulheres que nunca foram consideradas ‘sexo frágil’ porque sempre suportaram a car-ga da exploração dos poderosos; que fala com aquelas que não se encaixam nos padrões de beleza que imperam e que sabem que ruim não é nosso cabelo, nem a cor da nossa pele, mas o racismo e o machismo que nos subju-gam; que sentem o tão antigo aprisionamento não apenas ao próprio lar, mas também ao da patroa rica, que se liberta das tarefas domésti-cas à custa da nossa liberdade”.Nessa realidade, os companheiros homens também estão sendo oprimidos e explorados (anal, eles não são o homem branco, rico, proprietário que exerce o poder e que é con-siderado hierarquicamente superior), mas eles também oprimem suas companheiras. Nesse caso, igualdade entre homens e mulhe-res signicaria apenas que as mulheres (“de baixo”) sejam “igualmente” exploradas como os homens de sua classe o são hoje.Por isso, pensar na superação do machismo implica fazer uma revolução para que tenha-mos relações de igualdade e camaradagem entre os “de baixo” e para que não mais exista essa relação em que há os “de cima”. Ou seja, fazer com que, a partir da luta feminista sob essa perspectiva (que é a que o Luta Popu-lar busca desenvolver em suas lutas no e pelo território), possamos libertar tanto as mulhe-res quanto homens da exploração do capita-lismo e da opressão do racismo, machismo, imperialismo, e de todos os “ismos” a partir dos quais a sociedade atual se estrutura, nos esmagando.ORGANIZAR AS MULHERES CÁ EMBAIXO PARA DERRUBAR OS DE CIMA!

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Comecei a militar no Luta Popular em 2011, na zona Sul de São Paulo. Em 2013 me “jo-guei de cabeça” na construção da Ocupação Esperança, onde estive a maior parte dos dias de mais de cinco anos. Nesse caminho rola-ram novas ocupações e várias lutas. No ano passado, 2019, voltei a vir para os lados da zona Sul, ajudar a reconstruir alguns traba-lhos do movimento e começar outros novos “VOLTANDO PARA O COMEÇO PRA CHEGAR NO FIM”Donha “Tonha” fazendo fala em assembleia da Ocupação dos Queixadas, Cajamar. Foto: Sérgio Koeiem algumas ocupações e bairros da região. Logo de cara – como era de se esperar – me deparei com mulheres “puxando o bonde” das lutas de suas comunidades, com as quais estou tendo o privilégio de aprender, dividir e elaborar novas experiências, que espero que possamos compartilhar e somar com outras lutadoras e outros lutadores.

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70 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI /// Foto: arquivo Artemanha

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71SAMPA MUNDI ///Companhia Teatral Artemanha:20 anos e uma bagagem de histórias> Por Valdirene Rocha

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72 \\\ SAMPA MUNDIMeu nome é Valdirene Rocha, sou atriz e artista plástica, criadora e diretora da Cia Teatral Artemanha, que leva arte, cultura e literatura para a comunidade na periferia da zona Sul da cidade de São Paulo, mais especicamente à Vila São José. Nossa ação cultural acontece por meio de projetos-espetáculos que envolvem concepção, monta-gem e apresentação de peças literárias e temáticas sociais, além da criação de espaços de discussão e formação de jovens.Neste relato me proponho a reetir a respeito dos vinte anos de existência desse gru-po que construiu o seu fazer artístico com muita dedicação, afeto, trabalho e força de vontade. Duas questões orientam meu olhar nesse momento: o que levava (e ainda leva) meninos e meninas tão jovens a dedicarem sábados e domingos inteiros ao te-atro? A partilhar suas histórias, sonhos e desejos de estar juntos, de trocar, aprender com o outro, descobrir seus caminhos? Constato que a Cia Teatral Artemanha compartilha do desejo de estar no mundo para fazer a diferença, para existir e resistir, para abraçar o diferente, para acolher os sonhos e transformar a realidade. Meninas e meninos que decidem criar, fazer arte; logo as-sumem o nome Mensageiros da Arte e o compromisso de partilhar essa vivência com outras crianças, adolescentes e jovens. Desde o início, começaram a ler peças, estudar.O lugar da arte na vida desses meninos tomou uma proporção tão grande que a ideia de se constituir enquanto grupo, “trabalhar” e dedicar mais tempo a essa atividade mudou a vida de todos, inclusive a minha. Desde sua criação, o grupo sempre conviveu num espaço de democracia, de autono-mia. As peças escolhidas, o jeito de fazer, a produção do espetáculo, tudo a partir de decisão coletiva. Abro aqui um parênteses para citar o nosso mestre Paulo Freire, que sempre inspirou minha prática. “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.” O processo de busca citado por Paulo Freire acompanha a trajetória do Artemanha, que não se satisfaz com a primeira ideia, a primeira possibilidade. A reexão-prática--reexão, esse círculo regado de tantas ideias, possibilidades e jeitos é a identidade do grupo. É uma procura constante do indivíduo, da sua identidade, da sua história.

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73SAMPA MUNDI ///O lugar da boniteza – o cuidado com a estética, cenário, gurino, maquia-gem, atuação, tudo digno de prossionais. Encher os olhos e o coração com cada coisa que é pensada, para fazer o melhor, para se sentir realizado. Conhecer os grandes mestres da Dramaturgia e da Literatura contribuiu na formação, no pensamento crítico, no diálogo. O contato com o método de Constantin Stanislavski, de Bertold Brecht foi essencial: entendê-los na práti-ca, experimentando, em contato com as emoções, com a plateia, com o corpo em cena. William Shakespeare, que encantou e possibilitou o desao com o desconhecido da linguagem. Machado de Assis, Ariano Suassuna, Maria Cla-ra Machado, Jandira Martini, Manoel de Barros, Antoine de Saint-Exupéry, Cecília Meireles, L. Frank Baum, Lewis Carroll, Eça de Queiroz, entre tantos outros da literatura infantil.Mas o divisor de águas aconteceu ao encontrarmos Carolina Maria de Jesus. Conhecer a vida e a obra dessa mulher tão importante, de sua literatura tão rica, que diz sobre nós, dialoga com a gente, fez um movimento enorme em nossa história. Não só na história do grupo, mas na identidade de cada um/a, na representatividade. Perceber o espaço da arte como oportunidade para dialogar, questionar, inquietar, movimentar quem assiste, se aproximar, falar com os nossos. Carolina nos revolucionou e depois dela outras foram che-gando: Angela Davis, Audre Lorde, Conceição Evaristo, Cora Coralina. Rosas de Carolina. Fotos: arquivo pessoal

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74 \\\ SAMPA MUNDIE tantas mulheres, sempre ali pertinho, ajudaram-nos nesse movimento e são inspiração para o grupo: Neide Almeida, Bel Santos, Angela Lima, Vera Lion, Flávia Kolchraiber, Laniela Feitosa, assim como as mulheres da nossa vida: nossas mães, irmãs. Não só no espaço da literatura, mas no cuidado e autocuidado, na arte, nas reexões. MAS QUEM É ARTEMANHA?Em 2009, os adolescentes participavam das atividades da ONG Programa Co-munitário da Reconciliação; eu era educadora social. A ocina que deu origem ao Artemanha acontecia aos sábados para que houvesse mais tempo de encontro. A ONG está localizada em Vila São José, no Grajaú, extremo sul da cidade de São Paulo, longe das atividades culturais que na época só aconteciam no centro. Ao longo de vinte anos passaram pelo grupo mais de oitenta adolescentes e jovens; em cada rosto uma contribuição para tudo o que Artemanha é hoje. Uns seguiram carreira na arte, outros constituíram família, alguns trilharam outros caminhos. Alguns caram mais de dez anos no grupo, outros meses, alguns ainda estão. Para todos Artemanha permanece um lugar de afeto, de acolhida, de construção coletiva, de amizade, de encontros e reencontros. Muitos parceiros da área contribuíram nessa história: professores/as de te-atro, música, dança, capoeira, literatura. Serão sempre lembrados com cari-nho.Completar vinte anos é um marco importante na nossa história. Conta muito sobre nós e os sonhos que ainda desejamos alcançar. Na celebração, reencon-tramos as várias gerações que zeram parte do grupo. Como costumamos dizer: “Uma vez Artemanha, sempre Artemanha”.OCUPANDO ESPAÇOS: ARTE PARA TODOSDos palcos dos teatros fomos para as ruas, praças, vagões de trem e metrô, ônibus, casas, eventos literários. A arte precisa estar onde as pessoas estão; fomos reinventando e descobrindo jeitos de fazer e estar. A emoção, o choro embargado, a tensão, a responsabilidade da representação, do texto, do mo-vimento do corpo e do canto ocuparam esses espaços. O riso, a brincadeira, o olho no olho com o público, a participação nas cenas. O palco ao ar livre ou Rosas de Carolina, Parque da Água Branca. Foto: arquivo Artemanha

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75SAMPA MUNDI ///nos espaços inusitados fez com que chegássemos em mais pessoas.Brecht fala da importância da dimensão pedagógica do teatro, apresentando os acontecimentos sociais, entretendo e fazendo reetir. Estivemos nesses es-paços não só levando diversão mas também reetindo sobre temáticas essen-ciais como racismo, violência de gênero, etc.EU E O GRUPO:Me emociono todos os dias. Fazer parte dessa companhia me faz melhor, di-ferente. Sempre fui muito tímida, comecei a fazer teatro na escola, tive amigas que me ensinaram muito e me incentivaram. Não sabia que era capaz. Mas fui. E como sou feliz por isso. Essa experiência abriu portas para outras formações, possibilidades e desaos. Comecei a valorizar quem sou e o que faço.Desde pequena sonhava em ser professora, brincava com as crianças que mi-nha mãe cuidava, ensinando a ler e a escrever, gostava de desenhar. A timidez me fazia car quieta, desenhando, criando. A convivência com os adolescentes e jovens que passaram ou que estão no grupo me ajudou a construir a mulher que sou: essa fazedora de cultura. A investir em mim, na minha prossão. A ser a educadora inspirada em Paulo Freire, aquela que escuta com atenção e afeto, que constrói junto, que está na roda, com olho no olho, em pé de igualdade. Metade da minha vida foi com-Cia Artemanha - Foto: Edson Feitosa

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76 \\\ SAMPA MUNDIpartilhada com os saberes dessa turma.SONHOVivemos de sonhos e realizações, o movimento que a arte traz, que a litera-tura proporciona nos transporta para outro universo, para outra realidade. Vemos, muitas vezes, o que outros não veem, sentimos com mais intensida-de, queremos transformar a realidade em algo mais belo, mais justo, mais hu-mano. Queremos continuar existindo, trazer outros para existir com a gente e ter um espaço cultural onde os jovens possam compartilhar o que aprende-ram com outras crianças e jovens, que a comunidade possa frequentar e fazer arte, que seja um espaço de encontros e afetos, de acolhida.Manoel de Barros também tem sido referência para esse nosso lugar de pé no chão, de olhar o simples com poesia, da infância, da natureza. Ela nos inspira todos os dias. BAGAGEM DE HISTÓRIAS – TRAJETÓRIA DA CIA TEATRAL ARTEMANHADestacamos alguns momentos marcantes da Bagagem de Histórias da Com-panhia, começando pelo evento mais recente:2020 – Aniversário de vinte anos da Cia. Apresentação de Davis: a voz da li-berdade no Instituto Vera Cruz, estudo de dramaturgia, realização e participação em saraus online. Em 2019, o espetáculo foi apresentado na USP, FMU, Instituto Vera Cruz, Sindicato dos Jornalistas, seminários, bibliotecas comunitárias.2019 – Criação do projeto Pelos olhos de Carol: sementes, com o objetivo de apresentar Carolina Maria de Jesus para as crianças, resgate da identidade, valorização, ações antirracistas.2018 – Montagem e apresentação de Davis: a voz da liberdade no Sarau Mu-lher Negra Presente, na Biblioteca Caminhos da Leitura, Instituto Vera Cruz, seminários e eventos literários. Apresentação de Teatro de Barros e Faz de Conta que é real.

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2017 - Teatro de Barros: apresentação no evento Trajetórias, narrativas e po-éticas do Programa Jovem Monitor Cultural e participação dos jovens como mestres de cerimônias na Conferência de Assistência Social. 2016 – apresentação de Rosas de Carolina e Teatro de Barros no 5º Salão do Livro de Guarulhos; bibliotecas comunitárias, praças, parques, universidades; participação no projeto Outra Parada – Brazil Foundation, Museu Afro Brasil;2015 – participação na 6ª Carreata Poética em Parelheiros, realizada pelo CAPS, com a peça Rosas de Carolina: Intervenção cênica da obra de Carolina Maria de Jesus. Participação em diversos eventos literários e apoio à criação do PMLLLB – SP (Plano Municipal do Livro Leitura e Literatura e Biblioteca da Cidade São Paulo)Apresentação do Teatro de Barros para a FLIP.(1) Teatro de Barros. Foto: arquivo Artemanha(2) Pelos olhos de Carol. Foto: arquivo Artemanha(3) Davis, a voz da liberdade. Foto: Luana Rocha(2)(3)(1)

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78 \\\ SAMPA MUNDILINHA DO TEMPO: CIA TEATRAL ARTEMANHA2014 – criação do projeto Teatro de Barros. Apresentações em abrigos, saraus, eventos li-terários, etc.2013 – Apresentações da peça Faz de conta que é real e participação em saraus literários. 2012 – Bar’temanha: Cinema e Cultura Lati-na. Pesquisa e montagem da peça Faz de con-ta que é real. 2011 – Bar’temanha e tarde cultural.2010 – participação no projeto Conexões do Cultura Inglesa, com a peça Maledicência, de Jandira Martini, e realização do Bar’temanha: Juventude e Arte.2009 – Sonho de uma noite de verão – Shakespeare; participação no Projeto Cone-xões do Cultura Inglesa com a peça Lindo de Morrer, do britânico C. William Hill.2008 – Montagem de A Pena e a lei, de Ariano Suassuna, para a inauguração de bi-blioteca comunitária. Participação no Proje-to Vocacional, com Dom Casmurro2007 – Inspirados nos textos de Guimarães Rosa, criamos Tudo é e não é e a peça infantil: Baby Princesa e o Sapo-Beleza.

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79SAMPA MUNDI ///2006 – Segunda ida à Alemanha com a peça: O medo nosso de cada dia e com o mu-sical A gente que ia buscar o dia. Criação da peça Universo das histórias.2005 – Montagem da peça: Eu, adolescen-te?... e agora?, de autoria dos jovens do grupo. Montagem de Romeu e Julieta.2004 – Realização de Tarde Cultural, apre-sentando textos de vários autores e participa-ção na Mostra Cultural em Monte Azul, com apresentação de danças brasileiras.2003 – Produção da peça Dom Casmur-ro, de Machado de Assis, e Pequenos Atos, Grandes Resultados (sobre os cuidados no local de trabalho)2002 – Alemanha –um mês levando a arte brasileira, participando de debates, rodas de conversa e workshop, apresentação de dança, capoeira e teatro2001 – Um convite marca a história do gru-po, que desenvolve o projeto de produção para a ida à Alemanha: Entre Paredes –“uma áudio-cênica que traz a temática do abando-no e violência contra a criança” 2000 – Pretinho: meu boneco querido, pri-meira peça montada pelo grupo. Adaptação do livro de mesmo nome.Apresentação de teatro na Alemanha, 2006. Foto: arquivo Artemanha

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80 \\\ SAMPA MUNDIO LUGAR DA ARTE NA VIDA (Depoimentos dos integrantes da Cia Artemanha)“Quando iniciamos o processo de criação do espetáculo Davis, a voz da liberdade, o gru-po vinha de um caminho de busca pelo resgate do lúdico e da infância, aliado a temas sociais como miséria, fome, trabalho infantil, como foi o caso da peça Entre paredes ou até mesmo de Rosas de Carolina.Talvez o caminho trilhado na época desses dois espetáculos, respectivamente, tenha sido o que nos preparou de fato, para a escolha da abordagem que usaríamos. Iríamos nos apresentar no ‘Sarau Mulher Negra Presente’, homenageando Angela Davis. (...) Tenta-mos fazer uma construção poética da luta das mulheres em âmbito geral e especicamen-te das mulheres pretas. (...)Foi também na preparação que pude enxergar como a vivência daquelas mulheres se parecia com a minha em diversos pontos.” (Clarissa Roberta – 21 anos)“Dez anos de Artemanha, um pouco mais talvez... E sem dúvida foram os anos da época em que mais precisava viver e fazer parte do grupo. Meu separador de águas para de fato viver esse lado humano e de mais respeito com o outro veio a partir de um trabalho feito em 2015, quando zemos Rosas de Carolina, contando um pouco da vida na favela, vista e vivida pelos olhos de Carolina Maria de Jesus, muito bem retratada em seu diário Quarto de despejo. A partir daí, foi uma sede, uma chama acesa para olhar mais ainda o lado social, do preconceito, das mu-lheres, das mulheres pretas. Não só as que viveram, mas também para que as meninas/mulheres do grupo pu-dessem de fato se reconhecer e resistir a todo tipo de negatividade que viesse a nos atingir na vida fora dos palcos.”(Juliana Parreira – 24 anos)“Como mulher posso dizer que o grupo Artemanha me fez pensar mais sobre os meus direitos, em como a mulher é importante, como devemos nos empoderar e correr atrás de nossos sonhos e objetivos, e que ainda precisamos melhorar muito o convívio e res-peito em sociedade.Daqui pouco tempo vou completar dois anos no grupo, parece pouco, mas esse pe-queno grande período já me fez evoluir muito, ainda tenho muito a aprender com essa família incrível, e espero que esses dois anos vividos possam se multiplicar muito.” (Sol – 17 anos)

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81SAMPA MUNDI ///“Eu vejo a Cia teatral Artemanha como minha família; eles me ensinaram bem mais que ‘coisas de teatro’. Entrar no grupo há quatro anos, me fez ver uma outra maneira de usar a arte. Pensar na arte como um veículo para denunciar, apontar, questionar... Eu olhei para a arte de uma forma mais “política”, de lutar pelos nossos direitos, e buscar o respeito de todos. Eles me zeram ter um olhar de empatia maior e acho que todos deveriam ter um “Artemanha” em suas vidas. Foi me apresentando com eles que eu conheci os palcos e sei que sempre carregarei essa bagagem de histórias.” (Marcelo Jesus – 23 anos)“(...) Dentro do grupo tive a oportunidade de realizar várias manifestações artísticas, como atuar, cantar, dançar e produzir coletivamente. O teatro me ajudou a perceber quem eu era, que poderia escrever uma música, um poema, ser uma pessoa mais solidária, questionar, despertar sentimentos em outras pessoas. Fazer arte me alegra e fazer arte com a Cia Teatral Artemanha é uma alegria gigante. O processo de esco-lha de texto, de criar uma coreograa, o formato democrático que o grupo leva para denir quaisquer assuntos é muito importante, pois todos têm o direito de opinar e conduzir o grupo.” (Alexandre Ferreira – 24 anos)“Aos 10 anos eu entrei na Companhia Teatral Artemanha. É bonito como ressigni-camos as coisas o tempo todo. Aos 10, tímida, um pouco introvertida, vi no teatro um espaço para me descobrir.Aos 15, ainda no teatro, abracei minhas potencialidades. Sabia atuar, contracenar, que-brar a quarta parede, lidar com o público.Aos 18, maior de idade e ainda no teatro, passei a perceber o espaço que ocupo enquan-to mulher e como o teatro servia de ferramenta e inspiração para sobreviver ao caos.Aos 20 e poucos anos, ainda estou/sou/vivo de arte. Agora bato no peito junto de um co-letivo, e grito as urgências de ser mulher, negra, brasileira, professora, atriz e muito mais.Ressignicar a arte em mim. É assim que o teatro vem permeando a minha vida.” (Day Moraes – 22 anos)A partir daqui convido leitoras e leitores para que conheçam os outros trabalhos reali-zados pelo grupo desde 2000, clicando no link abaixo e visitando nossas redes sociais.Facebook: companhia teatral Artemanha@ciateatralartemanhaYouTube: Artemanha Cia Teatral

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MAE DE QUEBRADA SAMPA MUNDI /// > Por Helô RibeiroIlustração: Carolina Itzá

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83SAMPA MUNDI ///Acorda cedo, faz uma reza ao se levantar. Água no fogo, café ralo pois o pó está no mArruma menino, ajeita o cabelo, menino quase dormindo nas ancas, sabe assim quando se encaixa no quadril deixa na casa de amiga, outra preta que cuida dos seus e de suas iguais para um trocado salvar e ao menos algumas irmãs como ela ajudarSobe a rua de casa, correndo para a condução não perderpro patrão não humilhar, nem desconto de dinheiro num sofrerNe fácil não, ser mulher, mãe solo, mãe preta , comprar o pão e ter sempre arroz e feijãoSorriso no rosto é sempre presente, ainda que a dor seja latentemas ca feliz em comprar o sonho da padaria o Danone pros lhos cume em dia de do-mingo, que pra ela quase não temClara Nunes toca alto na vitrola, ela quer ser concorrente dos alto-falantes já estourados, canta como se fosse a back vocal do coralSeu coração se alegra, quando vê que os meninos correndo no quintal, boca suja de açú-car, dizendo mãe como você não tem igual, nossa mãe é a maioralAnos se passaram e a maioral comprou casa própria, lutou e os meninos cresceu, todos eles estudaram, e tem um até que doutor virouMulher forte e guerreira, nenhum macho sustentouAté hoje se emociona com bigode de Danone, beiço com açúcar de doce, os meninos tudo uns homi grande que só a gota,ela ainda canta Clara, agora sem muito gritar, a voz tá meio fraca, ouve mais baixo senta-dinha com a capa do LP na mãoa reza é sempre agradecendo a DEUS e seus Orixá,sussurra baixinho Oxalá meu pai e Oya minha minha mãe, agradeço pelo zelo por me proteger e comigo das crias cuidar.

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84 \\\ SAMPA MUNDIMINHA ORAÇÃO, ÀS RAINHAS YABÁS> Por Helô Ribeiro SAMPA MUNDI /// Ilustração: Rodrigo Kenan

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85SAMPA MUNDI ///Ago ago, peço licença para chegar curvar me e agradecer a meus ancestraisAgo ago, peço licença pra chegar e Rainhas Yabás reverenciar, pois suas forças me energizam ajudando a levantarAmor próprio é fácil dizer, difícil muitas vezes é viverQuero fazer uma prece para nossa autoestima elevar, pois o sorriso nem sempre pela manhã vem estampado ao acordar,E quanto quando isso ocorre, não se culpe pois não me culpo. Pego minhas mãos nem tão macias, nem tão serenasPonho coladinha, uma na outraElevo minha cabeça e clamo força e positividade. No meio da prece o sorri-so começa a brotarSe os olhos são janelas da alma não tenha medo de chorar,Janelas sujas e embaçadas nos turvam a visão, não conseguiremos ver o horizonte que nos aguardaChore Limpe as Hidrate as

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86 \\\ SAMPA MUNDIE veja além… Toque-se, veja quão formosa és, olhe-se no espelho, olhe-seVês... olhe dentro de si pela janela da alma, xe no seu olharOlhe suas mãos, e com ela toque o coração... Ouça, tá ouvindo, tá ouvindo essas são as batidas de seu coraçãoTu estás viva! Sinta os braços, as pernas, cada dedinho, toque seu cabelo, sua boca seu nariz ... solte um sorriso pra você na frente do espelhoPercebes? quantas lutas travastes e estás viva, às vezes nem sempre inteira mas em pé!Ago ago minha prece a Divinas Rainhas YabásEparrey mae Oya, que a nós mulheres nos cede sua força de guerreira, caminha conosco nas pelejas dessa vida, traz brisa leve e serena, mas nos ensina a ser fogo e ventania, se preciso for sua força de búfalo ajuda suas lhas encontrarOra iê iê oxum rainha de águas doces de pele formosa me ajuda a me por bonita quando a baixa autoestima teima chegar, a lua nova que traz contigo me deixa formosa e ponho novamente a me amar,mãe do ouro, sabe me mostrar o valor que tenho, e o amor mais sereno emmim faz ressaltar, ensina-me a sua sensualidade, doçura e leveza, e com tuaenergia, olha só Ora iê iê Oxum me ponho outra vez me apreciar

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87SAMPA MUNDI ///Odoya rainha das águas, nossa Mãe Yemoja, limpa nossos maus pensamen-tos, o mau querer que o coração humano e enganoso às vezes teima em se hospedar, essa energia que pode ser nefasta, mãe Yemoja a ti eu peço carre-gue para o fundo do marSalve salve doce Odoya com sua inteligência e seu amor de mãe não me permita naufragarMãezinha o seu canto e acalanto sinto no teu colo as cicatrizes sendo cura-das com sal grosso e as dores que o mundo deixo pra láSaluba nana saluba nanaA nossa vó sua bencão por Oxala me dá Ex memoria ancestral, vistes o bar-ro se moldar e as águas se separar Saluba nana que com a sua sabedoria me ensina ontem hoje e todo dia Ensina-meQue sou linda demais para não me amar, forte demais para fraquejar, Saluba vovó nana que meu peito tem zelo amor e sempre vai respeitar. Limpa de mim o peso que posso teimar em carregarAgo ago peço licença para me retirar, curvando-me e agradecendo aos meus ancestraisAgo ago, peço licença pra retirar e a todas yabas, obrigada por me cuidar e me ajudar a caminhar !!!

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88 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI ///

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89SAMPA MUNDI ///Do Barro que suja ao barro que molda:> Por Elisângela AraújoBRINQUEDOS INDÍGENAS,ANTICONSUMO E NATUREZA NUMA TURMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL PERIFÉRICA

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90 \\\ SAMPA MUNDI A maneira de acessar conhecimentonas tradições indígenas é vivendo, e não estudando. As histórias só podem ser contadas por quem as viveu.Ailton KrenakA conexão das crianças com os elementos naturais, numa construção de novos saberes, muito dependerá do acesso que tiverem a estes elementos. Compreendemos que as descober-tas iniciais delas acontecerão dentro das ins-tituições de educação infantil comprometidas com a valorização de uma cultura ecológica e de relações mais orgânicas, que busquem os saberes ancestrais, o que demanda pesquisas e aprofundamento na cultura dos povos ori-ginários. Inquietações como essas diante do silenciamento que atravessei em minha jorna-da como estudante e professora, em que os pa-péis ganhavam mais destaque do que brincar de escalar ou mesmo brincar com as folhas de uma árvore, zeram com que me debruçasse sobre a necessidade de tornar o currículo vivo. Costumo achar um desatino pedagógico valo-rizar mais os elementos processados, tal como a folha de papel, do que as ores, frutos, fo-lhas, tronco, sombra, balanço na copa da pró-pria fonte primária – a árvore.Descobrir as possibilidades de nos conec-tarmos a esta fonte inesgotável de brincares tem um ponto de partida. As observações me carregaram para dentro do meu interior e me encontraram uma adulta obrigada a sossegar e controlar por ofício as vontades de brincar. Habitava também em mim uma criança que precisava sentir-se livre e coabitar festejos na Um grupo cava a terra e mistura elementos como água, pedra e folhas. Foto: acervo pessoal

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91SAMPA MUNDI ///BRINQUEDOS INDUSTRIALIZADOSlama, na árvore, no morro, na areia, nas fo-lhas caídas e no gramado. De fato, as crianças (da minha turma, na es-cola EMEI Câmara Cascudo) se tornaram pesquisadoras da cultura indígena e por elas vamos contar histórias. Os brinquedos indí-genas foram apresentados à turma de crianças de 5 anos durante um processo árduo de práti-cas anticonsumistas. Um desao alcançado foi contar com o apoio das famílias, que se depa-ravam com uma valorização do que antes era só barro que sujava as roupas, mas que agora era matéria-prima dos brinquedos da nossa loja de criações.Antes de contar brevemente este relato ocor-rido em 2019, levantamos algumas reexões necessárias para as práticas pedagógicas. Que importância têm os brinquedos e quais suas referências no cotidiano das crianças? Como a escola se posiciona diante das aquisições pe-dagógicas na educação infantil? Como pensar a decolonialidade, não repetindo o ensina-mento jesuítico?Inseridos em todas as culturas infantis estão os brinquedos e as brincadeiras. A dimen-são lúdica em geral ca determinada cultu-ralmente para um período ou fase da vida, considerando suas utilidades e funcionalida-des no crescimento do sujeito. Os brinque-dos, nesta perspectiva, ainda podem assumir um papel de meros passatempos e perder o seu sentido de benefícios na brincadeira, tais como conhecer o funcionamento do próprio corpo, dividir brinquedos com o próximo, criar regras e solucionar problemas. A di-mensão lúdica do brincar ainda encontra ou-tros fatores temporais, como lemos:Em sociedades industriais, nas quais nos in-cluímos, a organização da vida social e indi-vidual está marcada pela disciplina do traba-lho, e a dimensão lúdica engendrada pelos jogos e brincadeiras está, de certa forma, restrita aos tempos de não trabalho julgados mais adequados: tempo livre das obrigações para o lazer, tempo extraescolar na infância

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92 \\\ SAMPA MUNDIe na juventude, tempo de descanso na apo-sentadoria, entre outros (MIRANDA, 2010, p. 9-12).A oferta do brincar em diferentes tempos e com os brinquedos de diferentes culturas im-plica a ação humana de interagir com seus corpos, espaços e inventividades. No entanto, os incansáveis apelos mercadológicos e a rela-ção de consumo industrial, na qual as crianças são diariamente expostas, podem ser vistos com frequência nos brinquedos, materiais e vestuários de personagens globalizados.O Programa Criança e Consumo da Organi-zação Alana, criada em 2006, nos alerta que para o mercado, antes de tudo, a criança é um consumidor em formação, consumidor de hoje e do amanhã, e uma poderosa inu-ência nos processos de escolha de produtos ou serviços. Primeiras observações: brinquedos de casa: super-heróis. Foro: acervo pessoal

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93SAMPA MUNDI ///A ESCOLA NÃO É NEUTRA O DESAFIO DA DECOLONIALIDADE Problematizar as referências constituídas cul-turalmente nos espaços educacionais compe-te inicialmente ao Projeto Político-Pedagógi-co. Promover a formação e o fortalecimento da identidade individual e coletiva das crian-ças na sua relação histórica com guerreiros e guerreiras ancestrais dos povos originários se faz na proposta política de valorizar e man-ter viva a herança imaterial de um povo que vive e carrega tanto histórias de seus antepas-sados, quanto as suas contemporâneas, de lutas e resistência. São narrativas de saberes que o colonizador não registrou. Pensar a escola de educação infantil como o lugar onde se aprende a conduzir a existên-cia, considerando os interesses coletivos de investigação, descobertas e conhecimento de mundo pressupõe compromisso. A proposta de trabalho pedagógico parte da certeza de que estas crianças estarão mais motivadas a utilizar diferentes materiais para a criação de seus brinquedos e brincadeiras, promovendo o rompimento do ciclo consumista.Amparados pelas pesquisas e parcerias, de-cidimos desbravar este caminho criativo do brincar. Os brinquedos indígenas, a literatura Guarani e o grasmo foram norteando a am-pliação do repertório criativo de um grupo de crianças de 5 anos da turma Infantil IID na EMEI Luís da Câmara Cascudo pelo perí-odo de cinco meses.Como educadora da turma, z leituras de diferentes narrativas indígenas disponíveis em registros literários, pesquisei a etnologia Guarani e z visitas à comunidade Guarani de Tenondé Porã e Krukutu. A colaboração nesse estudo veio do gestor ambiental Pas-saty, que atuou com os Guarani M’Bya em 2002 e que compôs o Grupo de Trabalho das implementações das escolas CECIs atuan-do também como indigenista. Em sua fala, Passaty relembra as palavras de KRENAK (1999): “a maneira de acessar conhecimento nas tradições indígenas é vivendo, e não es-tudando. As histórias só podem ser contadas por quem as viveu”.A partir destas descobertas foi possível pla-nejar através de diferentes linguagens as ex-periências interculturais como, por exemplo, a plasticidade da modelagem com diferentes suportes e objetos variados para furar, cortar, enrolar, amarrar, costurar, pendurar e articu-lar. Ações de fomento cultural na produção de brinquedos aproximaram as infâncias não indígenas das indígenas. As leituras, experi-mentações culinárias, vídeos da Fundação Catitu, a música Guarani incluindo o rap, as artes/artesanatos e telas fortaleceram a pes-quisa temática com a turma.O parque de terra e gramado localizado na parte de trás da escola ganhou espaço para brincadeiras com lama, gravetos, folhas, pe-drinhas, numa espécie de quintal, fazendo re-cordar os poemas de Manoel de Barros (2015).

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94 \\\ SAMPA MUNDIAs histórias indígenas sobre a cultura de dife-rentes etnias costuraram toda a proposta de pes-quisa. O livro de grande repercussão nos diálo-gos da turma foi Kunumi Guarani, o primeiro livro do menino guarani Werá Jeguaka Mirim. Ele conta, numa linguagem de infância, onde ca a aldeia, como é sua casa, suas brincadei-ras preferidas e como é seu dia a dia, rompendo através do texto e das imagens com os estereó-tipos sobre sua cultura. A turma cria um afeto particular pelo escritor e pela sua obra.O professor Passaty em visita à turma apre-senta seu acervo de mais de cem brinquedos e objetos indígenas para as crianças. Seu lugar de fala atuante nas comunidades guaranis lhe dá um repertório extenso da cultura e propor-ciona uma interação lúdica ao intermediar os brincares das diferentes infânciasProvoca e desaa as crianças a interagirem com as bonecas Guarani e Karajá, promoven-do encantamento, curiosidades, levantamen-tos de hipóteses e envolvimento das famílias. Kauan, uma das crianças da turma, diz “mas não é boneca não, é coco”, propondo desaos de construção do pensamento imaginativo. A boneca da etnia Karajá é observada por al-gumas crianças que, curiosas, questionam a pintura em vermelho e referem-se a ela como “tatuagem de boneca”. É proposto em outra etapa que pesquisem nos livros expostos na sala a temática grasmo indígena.LITERATURA GUARANI E SEUS DESDOBRAMENTOS Passaty no primeiro contato com a turmano parque gramado. Foto: acervo pessoal Apresentação da boneca Karajá e manuseio Foto: acervo pessoal

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95SAMPA MUNDI ///A partir desta proposta, as crianças poste-riormente têm contato com o urucum e ou-tros elementos naturais para pintura e o re-sultado é uma coleção de brincadeiras com o corpo.O contato com brinquedos indígenas mudou o cenário consumista de exclusão e deu lugar à priorização de partilhas de ideias e criações brincantes, sem a demarcação da temporali-dade estipulada – o tempo.“Loja de brinquedos” é o termo criado pela turma e faz parte da rotina diária. Surgem as criações inventivas produzidas e nomea-das pelas crianças. Dentre algumas recentes temos: “Sugador de sangue”, “Flecha boome-rang”, “Pulseira de martelo”, “Lagarta come-dora”, “Helicóptero carregador”, “Potinhos de coisa”, “Aranhão”, “Cobra no palito”, “Corrente de dente azul”, “Boca de mola”, “Peixinho ver-de”, “Agarra bolinha”, “Potinhos de Médico”. Na cultura dos povos Kalapalo, a brincadei-ra não é reservada apenas para as crianças como mero passatempo. Todos brincam e transmitem seus conhecimentos nas relações entre diferentes idades.Criar o próprio brinquedo com materiais reutilizáveis e recursos naturais, a partir de teorias num processo de montagem e des-montagem, proporciona felicidade e apren-dizados cognitivos.BRINQUEDOS INVENTIVOSGrasmo criado pelas crianças apartir das pesquisas. Foto: acervo pessoalOcina de petecas com Passaty em nova visita à turma. Foto: acervo pessoal

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96 \\\ SAMPA MUNDIA imagem da criança admirando seu brin-quedo já é bem diferente de sua imagem diante de um brinquedo industrializado pronto (super-herói de plástico).Quando as crianças percebem que os brin-quedos de plástico quebram e não se reci-clam, virando quase sempre lixo, enquanto os brinquedos produzidos culturalmente pelas famílias indígenas são perecíveis, porém ali-mentam uma educação sustentável e deixam marcas inventivas, o perl dos brinquedos que trazem para a escola muda e muta. En-tão aparecem com bichinhos, folhas e ores pequenas, potinhos, coleções de pinturas e outros, que percebo como mudança sutil de produções de infância. Já é possível concluir que a diferença entre plásticos e elementos naturais nos brinquedos assume um papel ainda mais importante no reconhecimento das identidades culturais.Os espaços para ampliar este repertório cria-tivo podem ser experimentados dentro e fora da escola. Em visita à comunidade indígena do escritor e rapper Werá na região de Pare-lheiros, as crianças viveram novas conexões com a cultura guarani e suas brincadeiras.Super-herói criado com argila e outros materiais. Foto: acervo pessoal

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97SAMPA MUNDI ///> Referências BibliográcasBARROS, Manoel. Meu quintal é maior de que o mundo: Antologia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.HERRERO, Marina; FERNANDES, Ulysses. Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo. São Paulo: Edi-ções SESC SP, 2010.KRENAK, Ailton “O Eterno Retorno do Encontro” foi publicada anteriormente em: Novaes, Adauto (org.), A Outra Margem do Ocidente, Minc-Funar-te/Companhia Das Letras, 1999.MALEK, Nader R. Abdel. Consumo infantil de brinque-dos: um múltiplo olhar. Pedro Leopoldo: FPL, 2012.Aula passeio na Aldeia Krukutu em 25 de outubro de 2019, mediada por Passaty junto às lideranças. Foto: acervo pessoalMIRANDA, Danilo Santos. Um olhar sobre a brinca-deira no Alto Xingu. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.MIRIM, Wera Jeguaka. Kunumi Guarani. São Paulo: Panda Books, 2018.Prêmio culturas indígenas: edição Xicão Xukuru. São Paulo: SESC SP, 2008.São Paulo: Editora Panda Books, 2014. SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação.Currículo da Cidade: Educação Infantil. São Paulo: SME/COPED, 2019.

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IONE.> Por Virgínia Souza SAMPA MUNDI /// Ilustração: Carolina Itzá

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99SAMPA MUNDI ///Amor. Todos os cheiros. Minâncora. Hipoglós. Um perfume antigo da Avon que eu não lembro o nome. Gelol. Naalina para espantar as traças do armário. Feijão na pressão. Ovo frito na banha de porco. Gemada. Canela. Mexericas descascadas no ônibus. Todos os passeios no centro, que de tão longe pareciam viagens. A praça Ramos. O Mappin. A Ladeira da Memória. O Teatro Municipal. A Estação da Luz. Vale do Anhagabaú. Esta-ção Júlio Prestes. Sé. XV de Novembro. Prédios enormes. Tão bonitos. Ruas tão cheias de gente. Tão diferentes do Parque Pirajussara. A avó mancando e a neta magreza atrás. Bala de goma. Guaraná Antártica e churrasco grego. As viagens. Minas e Rio. Ponte Nova e outras cidades que não lembro. E a roça. Cami-nhos sem m. Matula para viagem. Uma vez contrabandeamos um carregamento de hamsters de São Paulo até Minas. Da capital do Rio só conheço Bangu, casa da irmã dela. Calor desgraçado. E lá na tia Didinha podia tomar muito banho que ela morava em prédio e não precisava pagar água. Hoje eu entendo que a água está inclusa no con-domínio, perdeu toda a graça. Foi a primeira vez que eu dormi num apartamento. Os gatos. Na maioria pretos. Todos vira-latas. Nomes peculiares. Ia, Pixote, Pivete, Mimi, Dede. Sempre muitos. Sempre espalhados pela casa: cama, sofá, geladeira. Nos acompanhando nas catadas de feijão em cima da laje. Minha avó. Quanta coisa. O diabetes foi acabando com ela. Tirou sua visão. Levou sua memória. Nos últimos meses, ela, já sem enxergar, perguntava de seus mortos. Irmãs, ex-marido, amigas, seu último e amado gato. Insistia também em perguntar sobre a lha que eu ainda não tinha. Eu, adolescente chata que era, muitas vezes não respondia. Ela insistia e por m se calava. Hoje co triste por não ter respondido todas as vezes. Minha vó. Está em mim. Nos meus olhos curiosos. Na minha paixão por gatos. Nessas pernas que querem sem-pre caminhar. Ela, a primeira mulher da minha vida.

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A educação pela pedra ou A educação pela noite> Por Zainne Lima SAMPA MUNDI ///

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101SAMPA MUNDI ///de madrugada eu trabalhoeu e os pedreiros construindoem frente à minha casaerguemos obras de tijolo e cimentoa cada rabisco da canetaajunta-se um reboco de paredeeu também sou arquiteta popularcom algumas pedras noturnas ergoa minha poesia.

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102 \\\ SAMPA MUNDIArtes: Carolina Itzá

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103SAMPA MUNDI ///

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104 \\\ SAMPA MUNDIArtes: Carolina Itzá