ano 2 | número 3 - Edição especial | Abril 2021
Artes: Carolina Itzá
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FICHA TÉCNICARealização:Parceria:Apoio:Sampa Mundi - Quebrada SulAno 2 / Número 3 - Edição especial / 2021Conselho Editorial: Diane Padial, Neide Almeida, Salloma Salomão e Silvia TavaresRevisão: Léia Guimarães e Maria Regina Figueiredo HortaTranscrições: Maria FerreiraProjeto Gráco e Diagramação: Rodrigo KenanArte da Capa: Carolina Itza Chokwe. Tríptico (detalhe). Tinta acrílica sobre tela. Dimensão: 0,70m x 0,50m. Exposição Encruza. São Paulo, 2019.contatos: sampamundi@gmail.comfacebook.com/sampamundiinstagram.com/revistasampamundiwww.sampamundi.com.brQuebrada Sul, São Paulo/SP
DIANE DE O. PADIAL Integrante do Sarau do Binho, psicóloga, gestora cultural, idealizadora da FELIZS – Feira Literária da Zona Sul. Atuou como gestora nas áreas de educação, cultura e no social desde os anos 1980. Coidealizadora do e-Bairro, plataforma digital para empreendedores.SALLOMA SALOMÃO Letrista, autista ehistoriador, doutor pelaPUC-SP, com pesquisasnanciadas pela CAPESe CNPq. Pesquisadorvisitante do Institutode Ciências Sociais daUniversidade de Lisboa.Dedica-se à pesquisasobre culturas musicais,performance, teatro edramaturgias africanas eafro-brasileiras nos séculosXIX e XX. Possui 6 Cds, 4Dvds e 2 livros publicadospelo selo Aruanda Mundi.RODRIGO KENAN Designer gráco, pós-graduado em Service Design. Sócio-fundador da Muvilab. Integrante da Cooperifa e do conselho editorial da revista Legítima defesa. SILVIA TAVARES Pedagoga, mestra emEducação pela FE-USP.Coordenadora pedagógicada Rede Municipal deEducação do Municípiode São Paulo, na região deM’Boi Mirim. Pesquisadoraindependente, produtoracultural e membro daequipe de produção daFeira Literária da ZonaSul e da Escola FeministaAbya Yala.CAROLINA ITZÁÉ grateira, artista visual,educadora e dançarina.Apresentou trabalhosem exposições coletivase individuais. Já ilustroudiversas publicações, entreelas Sagrado sopro (RaquelAlmeida), O olho damulher (Gioconda Belli) ea revista digital Fir-Minas.Integra os coletivos PeriferiaSegue Sangrando, PungaCrew e Fala Guerreira.Mestre em Artes Visuais pelaUniversidade Federal doEspírito Santo (UFES).MARIA EDIJANE A. DE LACERDA Mãe e educadora social. Integrante do Coletivo Baobá – Forticando as Raízes e do Núcleo de Mulheres Negras (zona Sul). Assistente social e gestora do Serviço de Assistência Social à Família (SASF) Capão Redondo III.FLÁVIA ROSA Nascida e criada na periferiada zona Sul de São Paulo,brincante das artes negras nadança, na atuação, no cantoe nos experimentos escritos.Arte-educadora, terapeutacorporal e protética.“Artivista” das questõesraciais e cofundadora daCapulanas Cia de ArteNegra. Integra aindao grupo Instituto UmojaBrasil de Culturas NegrasPopulares em SP.RAÍSSA PADIAL CORSO Mãe subversiva,multiartista visual,escritora, radiestesista,cristaloterapeuta ecartomante, Mutável emessência, sacerdotisa deHécate. É cofundadora doCentro de DesenvolvimentoHumano União Akasha,local destinado à curaatravés das terapias naturais,medicinas da oresta,sacralidade feminina, arte ecultura, na periferia de SãoPaulo, Campo Limpo, zona Show.
DIRCE THOMAZ Dramaturga e atriz hámais de trinta anos, comtrajetória marcada por suaparticipação em diversosprojetos de teatro e cinema,entre eles: Xica da Silva,texto de Luís Alberto Abreue direção de Antunes Filho.É autora de diversos textos,entre eles “Resquíciosde memórias”, “Eu e ela:visita à Carolina Maria deJesus”, “A dita dura dasideias”, “Negras narrativas”.Premiada como melhor atrizno 3o Festival Santa Cruzde Cinema, por sua atuaçãoem Um dia com Gerusa, deViviane Ferreira.NEIDE ALMEIDA Escritora, poeta, educadora, gestora e produtora cultural. Socióloga, mestre em Linguística Aplicada e Especialista em Gestão Cultural Contemporânea. Docente, pesquisadora e consultora na área de leitura, escrita, literatura, direitos humanos e relações étnico-raciais. Publicou em 2017 a zine Nambuê (MoriZines), em 2018 o livro Nós: 20 poemas e uma Oferenda (Ciclo Contínuo Editorial). Participa da antologia Nossos poemas conjuram e gritam, org. Lubi Prates, Editora Quelônio (2019).ZAINNE LIMA DA SILVA Filha de Nara (Bahia) e José (Pernambuco). Moradora de Taboão da Serra, SP. Formada em Letras pela FFLCH-USP, é professora, poeta e prosadora. Autora dePequenas cções de memória(Patuá, 2018). Publica, em 2020, mais dois livros: Canções para desacordar os homens(Ed. Patuá, SP) ePedra sobre pedra(Venas Abiertas).MARIA NICE PEREIRA LEITE Assistente social, graduada pela Universidade de Santo Amaro- UNISA, trabalhadora da Política de Assistência Social, técnica social no Núcleo de Convivência de Idosos - Espaço Aberto Jd. Miriam, membro da executiva do Fórum de Assistência Social de Cidade Ademar e Pedreira, integrante do Fórum da Pessoa Idosa de Cidade Ademar e Pedreira, artista da cultura popular, batuqueira , faz parte do coletivo de mulheres Baque Minas de Resistência de Diadema.MARIA LUISA CENAMO CAVALHEIRO Mestre em educação pela PUCSP, graduada em História pela PUCSP, coordenadora pedagógica da educação infantil da RMESP. Cria de Santo Amaro e região, onde foi professora durante mais de vinte anos nas redes municipal e estadual. Itapecericana por 10 anos, Mãe de 2 lhas e 2 lhos. Avó de 3 netas e 1 neto.DANIELLE REGINA DE OLIVEIRA do Jardim São Luís, já se juntou com muitas mulheres da zona sul em ações como Mostra das Rosas, Periferia Segue Sangrando e Fala Guerreira, entre outras tantas sem nome. Formada em Ciências Sociais pela Unifesp e mestra em Sociologia pela Unicamp. ELIZABETE OLIVEIRABacharel com licenciatura em Pedagogia e Admi-nistração Escolar, com Licenciatura em História pela UNIBAN. Bacharel e Licenciatura em Pedagogia e Administração Escolar e Professora de História na rede municipal de São Paulo..
6 \\\ SAMPA MUNDIArte Carolina ItzáÍNDICEA PARTIR DA MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA Por Maria Edijane A. de LacerdaMETALINGUÍSTICO AUTOCRÍTICO Por Zainne LimaDA DRAMATURGIA DO PROTESTO À DRAMATURGIA DA URGÊNCIAPor Dirce ThomazRESQUÍCIOS DE MEMÓRIA: NARRATIVA ÉPICA DA TRAVESSIADA DIÁSPORA NEGRA RUMO À AMÉRICAPor Dirce Thomaz ENTREPor Flávia RosaMEMÓRIAS DE UMA MENINA EM SANTO AMAROPor Maria Luiza Cavalheiro
7SAMPA MUNDI ///NO CHÃO DA RODA, PINTANDO HORIZONTES: ARTE E SUBJETIVIDADE NAS ESCOLHAS DE UMA EDUCADORA PERIFÉRICA Por Elizabete OliveiraNA BUSCA POR MIM MESMA Por Danielle Regina de OliveiraNAS ENCRUZILHADAS DOS TRAJETOS, MEMÓRIAS DE NOSSAS MAIS VELHASPor Neide Almeida e Maria Nice P. LeiteRISCA TUA FACA NO CHÃOPor Raíssa Padial CorsoGRANITO É GRÃO MIÚDOPor Carolina ItzaITZA: CAROLINA TEIXEIRA
8 \\\ SAMPA MUNDIArte Carolina Itzá
9SAMPA MUNDI ///EDITORIALAs mulheres que vivem nas periferias de nossa cidade têm sido, desde sem-pre, protagonistas da construção e preservação de espaços fundamentais nos/para os territórios. Mobilizando seus saberes, muitas vezes sem fazer alarde, principalmente as mais velhas, cumprem importante papel na conexão das comunidades com aspectos essenciais das ancestralidades que marcam a his-tória das regiões. É muito comum que essas mulheres não sejam ouvidas; com isso trajetórias reveladoras de percursos, práticas culturais que sobre-viveram e foram reinventadas em processos de migração, de deslocamentos dentro da própria cidade se perdem, são invisibilizadas.Atualmente tem sido possível identicar importantes ações orientadas para a escuta dessas mulheres, um movimento que prioriza diversos aspectos da vida dessas pessoas e que, de modo geral, prioriza alguma dimensão da memória.Desconstruir os padrões cristalizadosque, até pouco tempo, deniam as pes-soas como “homens” ou “mulheres” é urgente. Os pers, ações e atuações pú-blicas em arte, cultura e política de mulheres trans, por exemplo, aqui escritas em primeira pessoa nos conduzem a uma escuta e fazem reverberar em nós o que conceituamos por identidade e gênero em nós e n@s outr@s.Essa tem sido uma prática, especialmente de coletivos de jovens cujas vidas se organizam a partir de “novos” paradigmas. Seus discursos, tanto quanto suas práticas, nos interpelam, nos tiram dos lugares de acomodação, nos desaam a construir olhares mais amplos, menos pré conceituosos, mais orientados pela percepção efetiva de que as existências são (e s empre foram) diversas. Esta edição especial da revista conta com três números. Você tem em mãos agora a Sampa Mundi 3.SAMPA MUNDI
10 \\\ SAMPA MUNDIMETALINGUÍSTICO AUTOCRÍTICO> Por Zainne Lima SAMPA MUNDI ///
11SAMPA MUNDI ///Amarrotada entre os corpos do ônibus intermunicipal, olho pela janela e vejo o verde, a pixação, a propaganda e o lixo dentro do córrego que transbor-dou no dia anterior. O córrego sempre transborda. A paisagem é apelativa e me obriga a escrever. A enchente me inclina a também boiar meus próprios descartes. Mas, de pé, com a mochila no chão e os braços presos às barras de ferro que tentam evitar acidentes, é impossível pegar papel e caneta. Ou, na emergência, o celular. Escrevo, ainda assim. Mentalmente. Repito as palavras até que percam a forma, o gosto, a emoção. Assim, elas podem nalmente existir no mundo real. Quando chego em casa, corro atrás da última gota d’água anterior à secura sertaneja que é o texto literário. Despejo as palavras já quase mortas, as ressuscito, uma a uma, até que preencham algum vazio no espaço citadino. Esqueço, no entanto, do bote salva-vidas. De repente, o descarte boiando em meu lítero-córrego sou eu. Na tentativa de não submergir ao cotidiano trabalhador, entre ônibus, metrôs e caminhadas em calçadas esburacadas, tento prolongar a vida de minha do-çura. Parece um eterno nadar contra a corrente isso de manter viva a chama que me impele àquela parte de meu ser que é inteiramente sensível. Sei da cor que carrego na pele, da textura de meus cabelos, da voz infantil e das mãos pequenas e calosas que possuo. Sei que, ainda que eu seja uma tal máquina insistente da escrita, serão poucos os olhos que legitimarão minha literatura. Escrevo em prosa, verso, desprosa, desverso; seus entre-meios; sou boa no que faço, alcanço corações; tenho reconhecimento nas ruas e nos palcos; no entanto. Gritaram-me negra, isso sim, mas jamais gritaram-me escritora, po-eta, intelectual... tenho de gritá-lo eu mesma.Frame do clipe Princesinha do Congo do artista Salloma Salomão
12 \\\ SAMPA MUNDINunca me ensinaram a vociferar. Já nasci sabendo. O exercício está em desco-brir minha própria voz. Descobrir os agudos e graves que alcanço, de quantos decibéis necessito para me fazer ouvida. Saber para quem, por que e quando es-crever determinada coisa. Proteger os meus de descarregos. Conhecer a quem destino minha raiva. Meu ódio. Minha repulsa. Minha mágoa. Revelar o eter-no devir de uma história cujo passado se desconhece porque europeicamente pensada menor. Lembrar de minhas trisa, bisa, avó. Lembrar de meus mortos. De meus vivos. De meus quasedefuntos e recém-nascidos. Compreender que há a necessidade pelo grito, e mais ainda pela escuta. Aceitar que há demasiada responsabilidade em cada escorregada de minha pena sobre a folha. A escrita é a chance mais bonita de registrar a passagem de meu cérebro-e de meu coração - pelo mundo. É uma fresta para a eternidade que desejo. A ferida é por onde entra a luz. Penso em quantas de mim fazem essas mes-mas manobras para ter direito à plenitude de suas existências. Em suas mais variadas cores e texturas, mulheres negras, autoras e artistas, falam de litera-tura ao mesmo tempo em que a sociedade tanto embrutece o ser sustentador do mundo. (Quando só o que queremos, na verdade, é sustentar os nossos so-nhos, à noite, nos momentos em que nossas cabeças acham algum descanso.) Não é correto o tanto que se exige da mulher negra enquanto é tão desvalo-rizado o seu trabalho. O mercado editorial é um nicho que reete a estrutura de nossa sociedade e seus absurdos. Seu racismo imbuído. Seu machismo, sua homo, bi e transfobia. A literatura talvez não seja meu lugar, penso. Tão logo penso e constato já que, sem a literatura, não existo. Por isso, insisto numa esperança quiçá vã de ser quem sou e fazer o mundo me engolir. Não quero que o mundo me aceite, pois isso seria ceder a acordos com uma he-gemonia que me causa calafrios. Quero, ao contrário, trazer à luz uma forma outra de estar neste planeta. Ser o que sou, como sou, quando sou. Se eu quiser ser. Isso, consequentemente, me leva a esculpir palavras e palavras em
13SAMPA MUNDI ///murais, capas, páginas e dermes. Eu sou negra autora de negra escrita. Eu escrevo, publico e existo no sentido mais absoluto e digno da existência. Dentre as minhas também houve quem abrisse um caminho de mata fecha-da, com peixeira de baiano, para que eu tivesse a chance mínima de ocupar meu espaço (que me é por direito desde os tempos da diáspora). Imagino seus sofrimentos, os murros nas pontas das facas, as supressões das subjetivi-dades. E, ao imaginar, faço do sofrimento perpetuado a matéria que desenca-deia estrofes e parágrafos. Exatamente como faço aqui, agora, ao dizer a você, leitor(a), que, atrás e diante de mim, há avós analfabetas, fortíssimas, que vieram dos sertões e águas de seus estados nordestinos comendo o farelo do pão que os senhores patrões amassavam. Que há, dentro de mim, uma língua viva, em chamas, que se reinventa a cada dia em busca de yorubá, igbo, um-bundo, quimbundo, crioulo, swahili. Em busca de tupi, vez ou outra. Em bus-ca de uma identidade negro-brasileira que seja perceptível em minha obra. São os meus anseios perseguindo incômodos que me fazem ser poeta-escri-tora. É por Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Benedita Lopes que escrevo. Por MC Soa, MC Elis, por minhas pri-minhas e alunas negras que escrevo. Em prol da existência de Tayós e Oba-xis. É por afroimaginários que escrevo. Pelas cotas nas universidades e nos concursos públicos. Pelos direitos trabalhistas. Pelo acesso à saúde, comida, moradia e educação. Pelo direito à cultura. São nossos direitos comprados com sangue. Escrevo não porque me falta, e sim por transbordar. Eu fui o rio que a cidade chamou de córrego, mas que tratou de suprir peixes e plantas. Hoje, eu sou a água pura, transparente, que sozinha se renovou: quem quiser de mim, sente--se e alimente-se: a minha palavra é gratuita. Toda a minha alma se volta à vocação de pôr no tangível as vozes de meu povo. Eu repito o sim.
14 \\\ SAMPA MUNDINarrativa Épica da Travessia da Diáspora Negra Rumo à América1RESQUÍCIOS DE MEMÓRIA:> Por Dirce Thomaz SAMPA MUNDI /// 1No texto original, na versão que será encenada, ao longo do texto há indicações de inclusão de vídeos, que integrarão o cenário. Em algumas cenas a atriz dialogará com as imagens e sons. Nesta versão, optamos por excluir as indicações de vídeo para que a leitora e o leitor possam fruir melhor a experiência de leitura.
15SAMPA MUNDI ///Crédito: Paulo Pereira
16 \\\ SAMPA MUNDIPERSONAGEM – uma MULHER VELHA, negra, com semblante forte, narra os momentos dramáticos vividos por pessoas negras que zeram a travessia do Atlântico para a América em um navio negreiro. A despedida de suas terras, a humilhação, o medo, os maus-tratos, a dor, o desespero, a angústia, a ansiedade, a raiva, o ódio, a coragem, o desejo de morrer, de matar, a ação e a reação, a luta pela sobrevivência. Alimentavam suas mentes com histórias, como forma de mantê-las ocupadas e assim adquirir elementos e renovar a resistência que criaram para chegar até o destino tra-çado. Assim chegaram até aqui.Parte 1Há muito tempo, me diziam as tias velhas, que a mãe, da mãe, da mãe, da mãe, da minha mãe contava muitas e muitas histórias sobre o povo preto que fez a travessia da Kalunga Grande! Osterrores na travessia, o olhar perdido das pessoas na imen-sidão da kalunga, sem saber das surpresas e peripécias que o destino lhespregaria. Uns se envolviam com as crianças, outros cuidavam dos negros e negrasvelhas que adoeciam, outros se concentravam na água prateada e furta-cor que se perdia no horizonte, dia enoitea vagarem. Muitas e muitas pessoas amontoadas como bichos acuados e sem saber de seus destinos, sem noção de para onde estavam indo. Os ouvidos cavam zunindo de tantos gritos, uivos e gemidos de dor! As crianças ao relento gemiam, choramingavam. O coro de crianças era seguido pelo coro dos velhos doentes, desvalidos que remoíam sussurros, machucados pelas saudades da África. Eram interrompidos de forma brusca pelos tripulantes perversos, que que-riam sossego e detestavam qualquer ruído das pessoas, e muito menos das crianças durante a travessia! Impossível não gemer, impossível não sentir dor, impossível não adoecer e não chorar! Principalmente as crianças. Eram alvo fácil da tripulação rai-vosa. Sem piedade, sem escrúpulos, eram jogados na Kalunga Grande gelada, muitos ainda vivos! Mulheres grávidas, assustadas, nem viam seus rebentos virem ao mundo no tempo certo, eles nasciam antes da hora, prematuros ou eram abortados. Todas as crianças que nasciam doentes, com alguma deciência ou que não resistiam à travessia, tam-
17SAMPA MUNDI ///bém eram arremessadas no centro da kalunga. E como guardiões mirins negros, as crianças formavam um séquito cortejando o navio que trazia os pretos na travessia histórica da diáspora negra à América. Vinham seguindo o navio e formavam uma espécie de mandala distorcida, um cordão de fetos, que resmungavam, soluçavam, a rejeitar aquele destino, como sequisessem voltar para dentro do ventre de suas mães. Velha, amargurada, interrompe a narração por alguns segundos.Não quero lembrar, eu não quero lembrar, não quero, não queroooolembrar des-sas histórias. Desespero de memórias, desespero não, nãooo! Ai... minha alma dói, minha alma chora e lamenta o tráco negreiro. Minha alma ca lisa e escorrega no passado genocida ao desenterrar coisas do subterrâneo, do fundo do âmago.A Tempestade Negra, a revolta dos oceanos. O dia se fez noite! Rajadas fortes de ventos, raios, relâmpagos, trovões, uma verdadeira tormenta que levantava ondas gigantescas.(Narração potente)Teve uma grande tempestade, horas depois de o cortejo de fetos seguir o navio ne-greiro. Esse fato deixou os prisioneiros e prisioneiras enlouquecidos: muitos homens e muitas mulheres-mães se jogaram na kalunga para tentar buscar suas crianças e fugir daquele martírio. Quando a noite chegou, com ela veio uma tempestade gi-gantesca, com ventos, raios, relâmpagos e trovões. Os espíritos mirins se espalharam mundo afora! A Kalunga Grande chorou, chorou muito pela primeira vez. Chorou tanto que espalhou um uxo enorme de águas salgadas que inundou os oceanos. E o navio negreiro cou por muito tempo à deriva.A natureza mostrou sua força e sua revolta contra o acontecido.Aos poucos a kalunga foi se acalmando. Quando a raiva passou, podíamos ver ho-mens segurando as bordas do navio e mulheres abraçadas a proteger suas crianças entre seus corpos. Metade das pessoas prisioneiras que estavam no navio caíram ou se jogaram na Kalunga Grande, e parte da tripulação também. As mulheres narraram histórias e entoaram uma canção triste melancólica para aca-lentar os prisioneiros e as crianças que soluçavam e engoliam um choro doído lá das profundezas. A perder de vista.
18 \\\ SAMPA MUNDICrédito: Paulo Pereira
Muitos não quiseram ver as imagens terríveis; cavam o tempo todo com a cabeça enterrada no piso do navio, cobriam o rosto com uma tristeza sem m e rejeitavam o pouco de alimento que lhes era ofertado durante o dia. Homens velhos que gritavam de dor e desatino, descontrolados, foram jogados lá atrás na kalunga Grande. Quem reclamasse também não tinha nenhum direito de se desesperar; era jogado também.As mulheres se olharam, um olhar de cumplicidade. Seus corpos bailavam com os movimentos do navio que seguia a rimar com as águas da Kalunga. Elas se juntaram e começaram a cantar um canto doído... Seus braços se moviam em gestos lentos como numa coreograa. As mulheres seguraram a barra das saias, com elegância rasgaram alguns pedaços e começaram a emendar uns aos outros. Assim elas criaram as pri-meiras bonecas negras! As Abayomis. Mas é muita dor para lembrar esses tempos! Não, eu não quero lembrar disso. Foi doído demais. Escravizados, nossos antepassados carregaram fardos e mais fardos por séculos! Despedaçaram-nos. Porém, até hoje estamos juntando os pedaços!Dividiram-nos como peças, como coisas. Distribuíram-nos aos mercados de traba-lho escravo; para nós isso signica dor, castigo! É duro lembrar; as lembranças doem. Parece castigo, muita gente morreu, enlouqueceu, matou, tantos caram aos pedaços, cindidos muito antes das grandes guerras forjadas por homens brancos. Os mercan-tilistas forjaram essa armadilha para nós, negros. As armas só favoreciam um lado. Despedaçaram-nos. Porém, até hoje estamos juntando os pedaços! Nossa arma foi o conhecimento, a resistência e a sabedoria que herdamos dos nos-sos ancestrais. A guerra da batalha mental Velha narradora em calmaria das sábiasEu queria ter tempo para controlar o tempo de tempos em tempos alguns tempos e dar mais tempo ao tempo para elaborar o tempo de boas memórias de boas ações.Na tela, ao fundo do palco se vê projetado: Boas-vindas ao tempo da memória.Bem-vindas, memórias memoráveis do tempo! Do tempo de dor, do tempo de sofri-mento, do tempo da calmaria e do tempo de alegria, do tempo da fartura, do tempo de narrar nossos feitos, nossas histórias, nossa ancestralidade.
20 \\\ SAMPA MUNDIGraças às memórias ancestrais, temos histórias. Histórias que querem ser contadas. Nossas ancestrais tinham o costume da tradição oral. Seguimos nossos griôs. É óbvio que temos histórias que não queremos lembrar. Mas nossos grandes feitos têm que ser lembrados, celebrados. E o passado remexe em tudo! Remexer na memória é re-mexer em tudo! No que queremos esquecer e no que queremos lembrar. Vem à tona o passado de mais de quatro séculos, em que nossos ancestrais lutaram bravamente, com resistência, para que nosso presente seja ávido de sabedoria e conhecimento, para assim projetar e galgar um futuro esplêndido.Voz masculina, de um ator velho, em vídeoA escravidão e o período colonial massacraram nossa gente, zeram uma cratera entre nossos povos, afetaram nosso inconsciente. Diferentes etnias foram trazidas à força à América. Foi uma ação desumana, muito escandalosa. Tentaram tirar de nós todas as características humanas. Ousaram nos silenciar!Povo que já sabia lidar com a produção de gado, com a siderurgia, com a plantação de cana-de-açúcar, lidar com a plantação de café. Tentaramtirar de nós nossos cos-tumes, nossas tradições e acabar com a nossa honra! Fomos jogados, vendidos como peças, distribuídos como bichos na selva para que explorassem todo o nosso saber. Sim, nosso povo sabia ler e escrever, tinha conhecimento geométrico e matemático. Tinha força incomum na tradição oral. A civilização branca organizou um dos fatos mais cruéis da história. O período mercantilista foi o auge da dissipação do homem. Quando a escravidão negra foi decretada! Fizeram grandes leilões onde nos vende-ram como mercadorias, usurparam corpos negros de formas vexatórias em festas organizadas para senhores da casa grande se divertirem ao estuprar homens na frente de seus lhos e de suas esposas, só para ridicularizá-los. Estupraram mulheres de todas as idades deixando-as grávidas e com doenças venéreas. Tudo com a permissão da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.Velha narradora sorri - incrédulaOs negros odiavam o nome “trabalho”. Nele estavam explícitos a crueldade, os maus-tratos; visto como coisa inferior. Assim foi, desde os tempos antigos, tempos mitológicos, tempos bíblicos, tempos profanos e tempos sagrados! Para nós, o trabalho veio como castigo e pu-nição. Mas, desde os mitos, esse nome, “trabalho”, é uma condenação, e foi um insulto o que zeram com nosso povo preto.
21SAMPA MUNDI ///O que foi o tráco negreiro? Tivemos que vencer grandes guerras? Onde está a Terra Prometida? Terra achada, rachada, tomada à força de gente que já vivia aqui. Fomos jogados nos porões da civilização.Não acreditamos em terra prometida. Ela veio tempos depois, para a imigração. Para os pretos, nada. Cadeia, subemprego, exílio nas favelas. Sim. Os exilados das favelas!Voz feminina em vídeoQuem acredita no efeito das sete voltas? As sete voltas, que eram paradas obrigatórias às mulheres negras, e as dez voltas, aos homens negros, ainda em continente africano. As pessoas negras foram obrigadas a dar essas voltas em torno da árvore sagrada? Quem acredita que os homens negros armaram guerras contra os nossos para serem vendidos gerando um capital, ainda, in África? Eram outras guerras, outros tempos! Sem massacres sangrentos e sem tortura para obter ganhos, lucro. As voltas são mitos! Como esquecer um passado ancestral? Um passado que se faz presente? As nossas memórias estão aqui! Cravadas em nossas mentes, em nossos corpos, e em nosso sangue ancestral. Em nossas almas! Nada, ou quase nada se perdeu. As memórias da diáspora africana estão aqui!!(Faz gesto imponente.)Cravadas nesse continente que continua sendo submetido aos meios perversos por mais de quatro séculos. Exploraram, extorquiram e espezinharam o povo negro. E hoje há uma nova travessia, outros corpos, corpos que buscam refúgio em terras estranhas, outros povos ditos inferiores também estão sendo submetidos como mãdeobra barata. A ancestralidade da África ainda existe e resiste. A memória não se perdeu em volta da árvore sagrada. A memória está em nós. A cada renascido que traz em suas veias o sangue negro!VELHA NARRADORAPara o desespero do sistema da branquitude, o resto dos mandantes da colônia que aqui nos escravizou e ousou nos exterminar durante o tráco negreiro, e que tentou fazer uma faxina étnica logo após a escravização, com a Proclamação da Abolição da escravização no Brasil, aquele sonho de ser uma nova Europa falhou! Estamos aqui, rmes e fortes. Povo negro, avante! Cultura negra, atacar. Diversidade negra, acredi-
22 \\\ SAMPA MUNDItar. Ninguém vai nos destruir! Estamos aqui e estaremos aqui. Para o nosso mal e para o nosso bem. Resistimos à travessia da kalunga grande. Resistiremos sempre!Parte 2 Ao fundo, em vídeo, imagens vivas com diferentes aspectos da arte negra e do fazer com diferentes artistas negros. Interpretação, canto, dança, poesia, capoeira, entre outras... MULHER NOVA anda pelo espaço, pensativa! Parece querer lembrar de alguma coisa que cou distante.Que lugar é esse? Vocês vêm sempre aqui?Parece um lugar de sonhos. Não sei. (Observa o espaço).Bonito, espaços ocupados, é o lugar da minha infância, de criança. Era isso que eu queria, brincar num lugar como esse. Ah, memórias, memórias, elucubrações... é a vida de uma menina preta que correu, que brincou, que imaginou que sua vida ia ser tudo de bom. (sorri) Ai que vida de sonhos, que linda, linda, que coisa encantada.Um lugar cheio de brinquedos, brinquedos de criança, brinquedos de gente grande, sim, brinquedos!Aqui é um lugar em que a gente brinca de ser feliz, de realizar tudo que queremos. Ah... o lugar dos imortais; sim, os imortais, mas o que é ser um imortal? Eu não mor-ri? Mas nós, imortais, morremos, nós mortais morreremos e temos que morrer. Por que imortal? As pessoas inventam cada coisa!Acho que imortal é quem não morre. Ah! Entendi. Aqui (aponta para o espaço da cena.) É o lugar de quem ca na memória dos outros. Na memória dos vivos e na memória dos mortos. Sim. Quem morre tem memória ou levou alguma coisa na memória, ou deixou memória? E aqui, nós, que temos memórias, brincamos com a memória deles, delas, das pessoas. (conclusiva).
23SAMPA MUNDI ///É, esse é o lugar que ca na memória dos outros. Esse é o lugar da memória dos vivos e da memória dos mortos. Das crianças, dos adolescentes, dos jovens, dos adultos. Memória dos velhos. Lembranças de velhos. Ah! Mas o que é aqui mesmo? Mas o que eu estou fazendo aqui de novo? (com dúvidas). Eu estou no presente ou estou no passado? Sim, eu estou aqui agora, presente, eu estive aqui no passado, mas estarei aqui pra quem vier depois de mim, depois de nós. (olha o espaço com encanto). Que coisa linda! Lugar colorido, lugar do presente, do passado. Que nom..., o que está escrito ali? (aponta) Ali. Biblioteca. Biblioteca? Ah! biblioteca é o lugar onde cam as memórias, onde cam os livros, onde ca gente que já morreu, e gente que tá viva. É o lugar do presente, do passado e do futuro. É o lugar onde cam os livros. Bi-bli-o--te-ca é um espaço cheio de vida! As bibliotecas estão nas universidades, nas escolas, nos museus, nos institutos, nas casas de cultura e centros culturais, centros espíritas, nas igrejas, nas periferias, nas praças e ruas, para toda a população que gosta de ler, escrever e pesquisar. As que cam nos espaços de poder! Sim, aqui é um espaço de poder. Eu sonhei estar nesse espaço. Mas eu estou nesse espaço. Estou com eles. Eles também estão aqui. Estou com eles, com elas. Com os imortais. Mas o que eu estou fazendo aqui? (para o público).Vocês também ocupam algum espaço de poder?Ah... Pro povo preto é sempre muita luta, foi uma luta, eu me lembro que odiava a escola. Ouvi dizer que essa coisa de estudo não era pra nós. Mas minha mãe insistia, queria que eu aprendesse a ler pra não car limpando e lavando pros brancos, como ela fazia. A professora me botou medo, disse que seu eu não estudasse um monstro que passou no lme na escola ia aparecer pra mim, nos meus sonhos, todas as noites! Foi uma luta, aprendi a ler por medo de um monstro. (sorri). Foi uma luta. Mas quando aprendi foi uma felicidade extrema, uma felicidade aguda. Aprendi na lata de óleo, uma lata amarela e preta. Eu saí gritando: ”mãe eu já sei lê. Mãe eu já sei lê”. Saí lendo tudo que encontrava na rua, era placa, cartaz, jornal, re-vista, litro, não dava paz pra minha mãe. Eu escrevia em tudo: no papel, no chão, nos muros, na areia, nas paredes. Mãe eu já sei ler, eu deixava minha mãe louca, ela não dava conta de mim. Eu escrevia na minha memória, escrevia nos meus pensamen-tos. Eu tinha que dar conta de tudo que eu pensava, tinha que dar conta das minhas ideias, dos meus pensamentos, eu tinha que dar conta de mim. Minha mãe não dava conta de mim. Eu quei alucinada quando aprendi a escrever.
24 \\\ SAMPA MUNDIA leitura nos leva a vários mundos! Podemos viajar sem sair do lugar. Um mundo que não nos permite mais a volta ao mundo da alienação. A vida nos põe em encru-zilhada tão inesperada! Nos traz memórias tão amargas, tão imemoráveis. As memó-rias, as lembranças! As lembranças deixam a gente atordoada. Às vezes não queremos lembrar de como as coisas aconteceram. Nesses momentos, às vezes pensamos que se fôssemos alienadas não sofreríamos tanto. Temos que nos despir um pouco dos nossos sonhos. Sonhamos em escrever, escrevemos dia e noite, comemos as palavras. Às vezes a escrita vira rotina, criamos hábito em registrar tudo, tudo o que ouvimos, vemos e imaginamos. Na leitura e na escrita podemos fazer seleção. Há como fazer seleção nos piores mo-mentos de nossas vidas. Sempre resta uma coisa boa! Escrever e car entre lápis, papéis, teclados e tela, num canto qualquer. Mas com o que aprendemos com muito esforço e com objetivo, conseguimos inspiração. Sim! Pra estar aqui nesse lugar de poder, dialogar com vocês, com esse tempo, foi preciso fazer seleção. Tempos difíceis. Porque os tempos nunca foram fáceis. Os tempos estão aí, pra cada um viver o que tem que viver, vivemos o que temos que viver. Cada um vive o que tem que viver. Cada um vive o seu tempo. Tempo em que não basta só ser resistente, a resistência é nita, queima, se esgota. É preciso resistir com sabedoria, não resistir por resistir! Sim, fazer uma fusão da resistência com a potência. Resistência e potência. A ances-tralidade negra nos deixou esse legado. A resistência e a potência.(Para o público). Um arquivo vivo. Memórias presentes em nossos corpos, temos mar-cas da oralidade e da escrita, signos, símbolos que utuam em nós! Resquícios de um passado redescoberto nos mergulhos da memória que o tempo não apagará jamais. Nossa arte, nossa cultura permaneceram pra sempre; podem destruir as pessoas, os monumentos, as bibliotecas, ambos passam por tempestades, catástrofes, enchentes, guerras. Mas serão reconstruídos, ressignicados; sempre alguém tem uma foto, um jornal, um exemplar. Uma memória. Podemos fazer uma telescopia histórica.Desde crianças passamos a vida ouvindo e criando histórias! Há quantos anos, quantos dias, quantas noites, quantas semanas, quantas horas, mi-nutos e segundos? É muita presença. É muito presente. Nossos sonhos, nossas fanta-sias, nosso deleite, nossa alegria! Nossa capacidade de reinventar a história, reinven-tar a vida. Nossa ancestralidade.
25SAMPA MUNDI ///Mas é preciso respeitar-nos uns aos outros. Estamos entre os imortais. Abdias Nas-cimento, Achille Mbembe, Alice Walker, Ana Maria Machado, Ângela Davis, Aris-tóteles, Augusto de Campos, Beatriz Nascimento, bell hooks, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Cora Coralina, Clovis Moura, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Cristian Betune, Cruz e Souza, Esmeralda Ribeiro, Elizandra Souza, Florbela Spanca, Frantz Fanon, Geni Guima-rães, Grada Kilomba, Graciliano Ramos, Haroldo de Campos, Heloisa Pires Lima, Homero, Itamar Assumpção, James Joice, Jamu Minka, Joel Runo, Jorge Amado, Leda Maria Martins, Lélia Gonzalez, Lima Barreto, Luís de Camões, Luiz Silva (Cuti), Machado de Assis, Maria Firmina, Michael Proust, Mario de Andrade, Miriam Alves, Oliveira Silveira, Paulo Leminski, Raquel de Queiroz, Ruth Guimarães, Ryane Leão, Sigmund Freud, Solano Trindade, Oswaldo Faustino, Platão, Safo. Eu sou imortal? Eu sou mortal? Sou mortal e imortal.FIM Foto: Paulo Pereira
26 \\\ SAMPA MUNDIDA DRAMATURGIA DO PROTESTO À DRAMATURGIA DA URGÊNCIA SAMPA MUNDI /// > Por Dirce Thomaz
27SAMPA MUNDI ///Foto: Paquito
28 \\\ SAMPA MUNDIAo ser convidada, por Neide Almeida, para dar um depoimento a respeito de minha experiência como dramaturga, retomei, no início de 2020, uma reexão que tenho feito desde 2013. Por que escrevo? Estou chegandoà conclusão de que escrevo por-que quero denunciar. Eu falo de uma dramaturgia de protesto, uma dramaturgia da urgência, que quer ser dita, ser contada. Quero falar por mim, dar o grito que ca atravessado na garganta, falar por quem não tem voz, nem oportunidade, por quem grita no escuro, escondi-do, por quem tem medo, por quem não tem coragem ou por quem não sabe falar, que engoliu a voz de tanto sofrer. Pelas mulheres negras, pelas crianças, pelos adolescen-tes, pelos adultos, pelos velhos, pelos vivos. Peço licença e falo também pelos mortos, por nossos ancestrais.É a partir dessa perspectiva que apresento meu percurso, destacando alguns dos tra-balhos que marcam minha trajetória como atriz e dramaturga.1988 Xica da SilvaSempre preocupada com as questões negras, mesmo antes de vir para São Paulo, ain-da em Curitiba, eu havia me iniciado nas pesquisas do GRUCON Grupo União e Consciência Negra. Entre 1986 e 1987, o diretor teatral Antunes Filho abriu um núcleo de artistas negros no CPT Centro de Pesquisa Teatral-, para pesquisar sobre o Xica da Silva, espetá-culo que ele pretendia montar. Ingressei no grupo.Já sabia um pouco sobre o racismo e que a luta do negro era constante. Pensava: se eu zer Xica, qual outra personagem negra o destino vai me reservar? Ficava sem resposta. Começando do alto, protagonizando, onde teria outra chance? Durante o tempo em que z o CPT, nadava num mar sem fundo, por águas turvas. Era um lugar de muitas inquietações; trabalhar corpo, mente, voz, ir ao teatro, ao cinema e dar conta de uma variedade de leituras de textos teatrais, históricos, losó-cos e literários... Antunes rearmava que o espetáculo não tinha nada a ver com a
29SAMPA MUNDI ///abolição da escravatura. Ele era muito hábil e sagaz, dizia que Xica era a tia rica de Macunaíma. Foi um processo árduo, porém de muito aprendizado.Passar pela montagem de Xica da Silva me proporcionou olhar o mundo por uma janela imensa. Foram três anos e cinco meses até o encerramento do projeto. O pro-cesso de pesquisa teve início em 1986 e a estreia, em março de 1988.Era agosto de 1988 quando retornamos para o Brasil do Festival de Toga, uma peque-na aldeia no Japão, organizado pelo diretor japonês Tadashi Suzuki. Na Coreia do Sul, em Seul, participamos da abertura da primeira Olimpíada Cultural com o Grupo de teatro Macunaíma.Retrato do inconscienteAinda em 1988 iniciei um trabalho para o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Fizemos algumas reuniões entre os negros que participaram da mon-tagem do Xica: Ailton Graça, Geraldo Mário, Cida Moreno; convidamos Zezeh Barbosa, que cursava a EAD, e Adão Filho, do Boi Voador. O texto era Retrato do inconsciente, trabalho inacabado. Embora eu tenha perdido algumas folhas do texto, ainda assim fomos para a praça da Sé e fizemos uma leitura-protesto em cima de um caminhão. 1989 Os negrosLogo em seguida, fui convidada por Mauricio Abud a participar da montagemde Os negros, de JeanGenet, na reabertura do Tuca, teatro que foi queimado na época da ditadura. Foi uma montagem antológica, dirigida por Maurício Abud, com artistas negros: Lizette Negreiros, João Acaiabe, Eduardo Silva, os saudosos Césio Amadeu, Northon Nascimento e Edimilson José, Cyda Moreira, Paulo Pompeia, Dida Pinho, Marcio Moraes; do Rio de Janeiro, Ileá Ferraz e Luiz Antônio Pilar. Conversávamos muito sobre dramaturgia,Luíz me achava muito magra e queria fazer uma versão da Olívia Palito comigo; outra hora era a Pantera cor de rosa; eu interpretaria Carolina Maria de Jesus no cinema, ele criaria um roteiro e mostraria minha mão grande na tela, assim começaria olme.
30 \\\ SAMPA MUNDI1990 Um sonho: o centro de pesquisa sobre dramaturgia negraNesse período, com os primeirostextos de minha autoria que consegui montar, iniciei uma pesquisa; era o começo da década de 1990.Comentei com o professor de artes Alfredo Carlos que queria criar um centro de pesquisa sobre a dramaturgia negra. Eu trabalhava como modelo no Liceu de Artes e Ofício e ele me ofertou vários livros sobre a história do teatro; ainda tenho esses livros comigo.Entre 1991 e 1993 iniciei uma pesquisa sobre a violência contra as mulheres e entrevis-tei mais de 200 - acadêmicas, donas de casa, atrizes, jovens, adultas e velhas; convidei Cristina Timótheo e montamos o questionário. Logo em seguida, após a leitura das respostas, iniciei o trabalho de dramaturgia com a temática da violência psicológica, familiar, estupro e prostituição. O primeiro nome do texto foi Essas mulheres, depois mudei para Os sinos dobram por elas. Apresentamos o espetáculo no Clube Guapira, Esporte Clube Banespa e Teatro Arthur Azevedo, em São Paulo, e Teatro Municipal de Santos. O secretário da Cultura era Rodolfo Konder, eu era muito arrojada; escrevi uma carta a ele, solicitando o espaço. Consegui e ainda pedi prorrogação após temporada de sucesso. A diretora de cultura era Márcia Abujamra, consegui a prorrogação. Não éramos só atores negros, mas sim as personagens centrais de uma família só de mulheres negras: avó, lha e duas netas, com uma alhada, agregada branca. In-ventei uma tese de doutorado para Maria Isabelcom a temática “violência contra a mulher”. Estava tão envolvida com essa pesquisa que consegui escrever doistextos, quase simultaneamente. 1994Os sinos dobram por elas O Centro de Dramaturgia e Pesquisa sobre a Cultura Negra foi fundado com a leitura do meu primeiro trabalho de pesquisa. O espetáculo foi realizado na biblioteca Mon-teiro Lobato, em 1994, com grande elenco.O drama da Amélia Esse segundo texto era uma tragicomédia. Estava envolvida num universo detanta tristeza que precisei rir e assim criei um triângulo amoroso, um espertalhão boêmio,
31SAMPA MUNDI ///Foto: Célia omé
32 \\\ SAMPA MUNDIque só vivia com um violão embaixo do braço fazendo serestas, enquanto a mulher, inocente, sonhadora, esperava sua volta com as migalhas para casa. Ele desaparece para dar um golpe e deixa a companheira sem notícias por mais de três anos! Ela se cansa e para se sustentar vai trabalhar como cuidadora de um senhor rico, que morre e, como não tem família, deixa tudo para ela, que começa a estudar, arruma um ho-mem mais jovem. O marido reaparece doente e quer retomar o seu lugar. Participamos de uma Jornada Teatral no Sesc Anchieta nos anos 1990. O Antônio Araújo estava na comissão e fez elogios ao texto. Em 1999 fui fazer letras na PUC-SP e, no ano 2000,apresentei o texto para a Dra. Sonia Regis, que o elogiou e disse que era uma comédia pura, sem ranço. Uma horta encantada! Até hoje tenho dúvidas sobre se estava dormindo ou acordada; de repente, me vi sentada na cama ouvindo frutas, verduras e legumes cantando. Pensei: isso é um musical!. E compus um com sete letras e sete músicas, tudo de ouvido; não sei ler par-titura. É uma fábula que chamo de “meu bebê”. No Reino Vegetal, as personagens Berinjela, Espinafre, Cenoura, Limão, Jiló e Tomate reclamam do comportamento do ser humano, que não cuida do reino, que está sendo devastado e cheio de lixo. A grande Mãe, uma berinjela, acorda o reino para fazer uma vigília e descobrir quem está devorando a horta. Espinafre eCenoura são os adultos;Jiló,Limão e Tomate,ospequenos. Apata e os patinhos,Sol, Lua, e Lagarta, a vilã da história. Esse trabalho foi apresentado no m dos anos 1990 em creches e EMEIs da cidade de São Paulo e Grande SP. Em 2005, participamos da XIII Mostra Monte Azul de teatro.2000Pedaços de mimNeste ano iniciei aulas de literatura no cursinho dos alunos da PUC. Li Os Lusíadas para a prova do vestibular, e logo em seguida criei um grupo de teatro para contar os feitos lusitanos. Assim surgiu a Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro.Foi a maior pesquisa teatral que z até hoje, ao longo de quase onze anos. Na segun-da década de 2000, consegui deixar o texto anado. Criei a releitura de Os Lusíadas, denominada Pedaços de mim, pedaço da diáspora africana que é forçada a vir para a América, chega aqui aos pedaços e até hoje estamos em busca de alguns fragmentos. Os feitos portugueses passam a ser feitos brasileiros do nosso povo preto. Criei um narrador-observador que conta fatos ocorridos em Portugal, mas os incluí na visão
33SAMPA MUNDI ///do mundo de hoje, em analogias com o Brasil e com o período colonial e decolonial. Inez de Castro se torna uma mulher simples no Brasil; o Velho do Restelo se torna um velho morador de rua visionário e experiente; o coro são homens e mulheres do povo, envolvidos com seus trabalhos e com as complicações das coisas corriqueiras da vida contemporânea. Camões observa tudo o que foi feito com sua obra.2007Precursora das IdeiasEm 2007 fui à exposição África, no Banco do Brasil, e me encantei com a descrição da arte-educadora sobre uma tela em que a gura saía dela e criava um povoado; era sobre o mito Makonde, de Moçambique. Pensei: isso dá teatro. Mergulhei novamente num universo de pesquisasobre mitos, Mircea Eliade, Levi Strauss, O cru e o cozido, mitos indígenas, Fábulas de Esopo. Cosmogonia africana. Assim surgiu a Precursora das ideias. Mitos negros, indígenas e invenção da minha mente.2009O papel e o mar Conheci Luiz Pilar em 1989, e após vinte anos lmei com Zózimo Bulbul, no Rio de Janeiro, O papel e o mar! Interpretei Carolina, e Zózimo, João Cândido. Com esse elenco negro vivia motivada a pesquisar. Emprestei diversos livros do Luiz sobre per-sonalidades negras: Clementina de Jesus, Paulo da Portela, Hermínio Belo de Car-valho, Geraldo Pereira. Li também uma coleção de Nelson Rodrigues, Meu destino é pecar, a tese de doutorado sobre o Teatro Negro de Abdias Nascimento. Na história de Geraldo Pereira quei impressionada com a personagem Madame Satã; a bibliograa indicava Rogério Dursti, que compreie devorei. Queria montar, fui em busca de auxílio de alguém mais experiente. Encontrei Dario Uzan, meu cole-ga da época de Xica; ele gostou da ideia, da personagem, mas estava sem tempo para me auxiliar.Negras narrativasNuma tarde de sábado, me dirigi ao ponto de ônibus da rua Teodoro Sampaio, es-quina com a Henrique Schaumann. Poucas pessoas estavam na parada e, sentada à beira da calçada, uma mulher negra robusta, com saia vermelha e blusa escura, olhar sombrio, indignada com o mundo, desferia no ar vários palavrões. Confesso que quei um pouco envergonhada. Entrei no coletivo e me sentei; porém a mulher negra quevi no ponto cou ruminando em minha cabeça. Em pouco tempo estava
34 \\\ SAMPA MUNDIdebruçada em mais uma dramaturgia da urgência, do protesto! Aquela mulherestava gritando com profundidade as dores e horrores que afetavam sua alma. Fui juntando com outras dores, desilusões, arrogâncias, certezas, incertezas e ignorâncias de outras fêmeas; assim surgiu mais esse texto, em menos de dois meses. 2014A dita dura das ideiasNuma tarde ensolarada na cooperativa de teatro, sentada na sala dos cooperados,fui vericar minhas mensagens. Me chamou a atenção uma delas, a de Terezinha Mala-quias, que mora em Freiburg, Alemanha, desde 2007. Somos muito amigas; sempre que ela vem ao Brasil, sou solicitada a fazer a direção de alguma performance inter-nacional em suas passagens rápidas por São Paulo. Mas a mensagem era a seguinte: “fui convidada a fazer um trabalho aqui emFreiburgcom o tema “exílio, ditadura e inuências da Alemanha”. Respondique nunca tinha feito nada por encomenda e pedi mais informações. No fundo achei que não era capaz, que “era muita areia pro meu caminhão”. como diz o ditado da roça, no interior do Paraná. Mas Terezinha foi informando o que queria, e que o texto deveria ser curto, porque ela interpretaria em alemão. Vivi o período da ditadura, parte na roça e outra parte na cidade. No entanto, sabia o que tinha ocorrido, os horrores e as marcas deixadasaté hoje na sociedade brasileira. Membros de minha família foram chados e desapare-ceram nesse período insano. Sobre exílio havia lido, assistido a lmes e ouvido relatos de artistas e ativistas no Brasil e no mundo. E sobre a Alemanha conhecia Adorno, Walter Benjamim, o dramaturgo Bertolt Brecht, teóricos que estudei muito quando trabalhei por quatro ou cinco anos com Alexandre Mate. Na Escola Livre de Teatro, no curso sobre História da Arte, com Rogerio Toscanos, assisti a diversos vídeos so-bre Pina Bauch, e alguns lmes sobre o romantismo e expressionismo alemão. Assim escrevi mais esse texto, creio que um ensaio.2017Eu e ela: visita a Carolina Maria de JesusO espetáculo foi fomentado a partir de palestras, ideias e textos apresentados em ins-tituições públicas, tendo por base o curta-metragem O papel e o mar, com direção de Luiz Antônio Pilar, sobre a vida de Carolina Maria de Jesus e de João Cândido. Entre tantos eventos, um dos mais instigantes foi quando a professora doutora Mô-nica Amaral, coordenadora do projeto O ancestral e o contemporâneo nas escolas, da
35SAMPA MUNDI ///Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), solicitou que a atriz do curta estivesse presente em uma sessão do lme. Propusemos a apresentação de uma performance. Com o aval da professora, durante a projeção de O papel e o mar, para os alunos de Pedagogia e Licenciatura da FEUSP, costuramos o prolongamento da cena para que eu entrasse como Carolina, no auditório da FEUSP, dentro da Mos-tra de Teatro Negro.Logo em seguida, fui convidada a me apresentar em cursos de formação para pro-ssionais da rede pública municipal, nos anos de 2015 e 2016, dentro do projeto de ações armativas da Lei 10.639/2003. Vieram diversos convites para eventos, confe-rências, fóruns, congressos, seminários, leituras, palestras e lançamentos de livros.Em muitas das apresentações as pessoas comentavam sobre minha semelhança física com Carolina Maria de Jesus. Daí surgiu a ideia de criar uma produção maior que contemplasse a autora e um texto teatral a respeito de Carolina Maria de Jesus. As-sim surgiu o espetáculo, que tem sido apresentado desde então em diversos espaços e para diferentes públicos. Vale citar: CEUs Jambeiro, Vista Alegre, Casa Branca e Parque Veredas; DRE Butantã. E ainda Funarte e Teatro Studio Heleny Guariba, onde zemos duas temporadas, em 2018.Fiz uma apresentação em Guarulhos, a convite da Coordenadoria da Igualdade Racial, na Biblioteca Monteiro Lobato, para uma turma que estava nalizando um curso sobre as questões da cultura negra e lei 10.639/2003. Em 2019, z uma apresentação para a UFABC; duas temporadas na Funarte, para um público extraordinário, lotamos a sala Guiomar Novaes com 150 lugares em apenas dois nais de semana, o que nos levou a uma temporada de um mês na Sala Arquimedes Ribeiro. Em seguida houve uma nova temporada nos CEUs e no Teatro Studio Heleny Guariba. Em 2020, em plena pande-mia, realizamos uma “live em casa” a convite do Sesc e participamos do festival On-line Palco Presente da SMC Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.2019 Resquícios de memóriasA partir das atividades desenvolvidas no projeto O ancestral e o contemporâneo nas escolas e dos diversos eventos, palestras, workshops e apresentações teatrais com o espetáculo Eu e ela: visita a Carolina Maria de Jesus, além de performances, foi possí-vel chegar a esta nova proposta performática. Recentemente, em setembro, foi apre-sentada no Sesc Interlagos, na Semana do Meio Ambiente. A proposta do evento era
36 \\\ SAMPA MUNDIfalar sobre livros e lixo. Depois o projeto foi ganhando independência a cada apre-sentação, e a pesquisa sobre memória e ancestralidade ganhou novos pontos de vista sobre a imortalidade, principalmente, nas apresentações ao público infantojuvenil na I Mostra Literária na Escola Municipal João XXIII e na EMEF Saturnino Pereira, na Cidade Tiradentes. Em dezembro de 2019 realizamos uma apresentação da performance no Teatro Stu-dio Heleny Guariba, uma mostra curta da Invasores, de 13 a 22 de dezembro. No dia 15 apresentamos a performance Resquícios de memórias, e ali cou clara a urgência de torná-la um espetáculo teatral. Assim mergulhamos na travessia do Atlântico! As memórias pediam uma profundidade na pesquisa, a ancestralidade gritava mais alto sobre nosso passado, nossos feitos e nossas relíquias. E como esse universo lembra Carolina, como lembra também vivências e inuências de outras mulheres negras da nossa história, e ainda mulheres negras da nossa família, brasileiras e afrodescenden-tes, que buscaram e buscam sempre por memórias ancestrais para torná-las imortais. Seja para a humanidade ou para elas mesmas. 2020Vivências, ancestralidades que se cruzam em corpos negros: narrativas, en-canto e verso.É um espetáculo que expressa uma narrativa histórica sobre o clã dos Trindade, en-volvendo uma árvore importante do teatro popular brasileiro, no ano em que cele-bramos 45 anos do TPST (Teatro Popular Solano Trindade) e 20 anos da Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro. Na obra, discorremos sobre as várias linguagens que Solano Trindade, sua esposa, Margarida Trindade, e a lha do casal, Raquel Trindade, nos revelam. No espetáculo eu e a dançarina Elis Trindade fazemos a fusão de celebração das duas companhias. É preciso mencionar também a força representativa das artes visuais, marcada por uma estética negra pulsante. A dramaturgia é permeada por diferentes linguagens: música, dança, canto, fotos e vídeos, o que torna o espetáculo plural. Pretendemos afetar o público, por meio da narrativa oral, contando duas histórias que se cruzam para relatar a tradiçãode povosoriginários, sua ancestralidade, histórias de matriarcado/patriarcado, envol-vendopersonagens que ganhamvida e dignidade. Nossa intenção é criar uma visão que ressignica a narrativa e a cultura de um povo, pretendemos levar ao público um espetáculo digno do povo negro.
37SAMPA MUNDI ///Sala de Leitura Lélia Gonzalez: Lélia! Sua voz é a nossa voz! (Performance)Sempre tive fascínio por Lélia Gonzalez, mas só a partir de 2001 pude me inteirar mais sobre sua obra. Nessa época fui trabalhar com os Crespos, a convite de Lucélia Sergio e Sidney Santiago; Flávia Rios fazia a orientação teórica do projeto para a montagem da peça Engravidei pari cavalos e Aprendi a voar sem asas. Desde então, muitos foram os reencontros com Lélia.Agora, em 2020, sou convidada a participar de um seminário de leitura sobre essa importante intelectual. Decido me inscrever e quando começo a divulgar, a jornalista Andreia Rosendo me responde que eu deveria escrever uma peça sobre Lélia. Logo em seguida, a professora doutora Maria Lucia da Silva me convida para fazer uma perfor-mance sobre Lélia. Estava super atarefada com projetos e ensaios, lives, mas aceitei. A performance, que deveria ter de 5 a 10 minutos, cou com 20 minutos de duração. Na apresentação do vídeo, no dia 28 de novembro, muitos foram os comentários no chat, mulheres chorando/sorrindo e dizendo: “que coisa é Lélia, somos nós, estou triste e alegre, mas estou feliz”. É isso que chamo de dramaturgia da urgência! Fui solicitada a escrever e resolvi atender. A performance Lélia! Sua voz é a nossa voz! está gravada em vídeo, ainda sem divulgação, porque estou trabalhando mais profundamente o tema. A vida de Lélia, sua trajetória na academia, na política, na sociedade e como ativista negra internacional, uma das mulheres negras mais importantes do país, merece uma dramaturgia de excelência. É um dos projetos que já está na primeira la da lista em 2021.As outras faces de XicaÉ preciso dizer que, mesmo depois de todo esse percurso, ainda hoje, muitas pessoas me chamam de Xica do Antunes. Foi um papel/um espetáculo realmente marcante. Embora ele, o mestre, dissesse “não z para comemorar os 100 anos da Abolição”, as chamadas na mídia antes da estreia eram com comoção, tinham cara de celebração. Quase todos os dias tinha sessão de fotos, entrevistas e apresentação em programas de rádio e TV. Foram três meses de intensa loucura em minha vida. Não aguentava mais ver minha cara nas reportagens, fui capa de revista, coisa rara na época para uma atriz negra! Pessoas cochichavamse era eu mesma, quando me viam no ônibus e no metrô. As pessoas até hoje confundem fama com dinheiro.
38 \\\ SAMPA MUNDIFoto: Célia omé
39SAMPA MUNDI ///Muitos amigos e conhecidos assistiram a Xica da Silva. Um pouco antes de completar 20 anos dessa montagem, comecei a pensar que deveria fazer uma celebração com uma montagem comemorativa. O texto estava sendo escrito, em processo, iniciava mais um trabalho dramatúrgico. Quando a montagem completou 25 anos achei que era hora de As outras faces de Xica. Estamos em 2020, já se passaram 32 anos da mon-tagem com o Grupo de Teatro Macunaíma. Sempre encontro amigos do elenco do Xica! Em 2018, 30 anos após a montagem, criamos um grupo no wthsapp e zemos um almoço na casa da Eliane Jeronimo para comemorar. O Antunes sempre dizia quenós somos chamados para nossas ações na vida.Acredi-to nessa máxima, eu não faço só o que quero, muitas vezes sou escolhida, recebo um chamado. Às vezes ele dizia “chamamento” e que temos as interferências do tempo! para trazer essa nova Xica ao palco falta muito pouco; o texto está pronto; os técnicos também. Desde 2015 faço um preparo corporal com o ator, bailarino e músico Marco Xavier, que faz parte comigo do núcleo artístico da Invasores.Mas a dramaturgia grita, esperneia, as palavras saltam da mente, ideias tornam-se textos, aspersonagens se espremem entre si e a mais urgente, a mais necessitada chega aos palcos. Assim, a Xica de As outras faces de Xica espera na la. Sabe que sua hora se aproxima.Embu das Artes 16/12/2020
40 \\\ SAMPA MUNDIA PARTIR DA MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA> Por Maria Edijane A. de LacerdaFoto Leon/UnsplashIlustração Rodrigo Kenan SAMPA MUNDI ///
41SAMPA MUNDI ///Entrei na faculdade através de uma política social, na graduação em Serviço Social em uma instituição priva-da. Busquei discutir exaustivamente temas referentes a questão racial, nunca deslegitimei a luta de classes, mas essa luta é racial também!Não podemos falar de questão social sem falar de um processo histórico que dá legitimidade a tudo que está posto, a todas essas insatisfações por todo respeito a José Paulo Neto, Marilda Yamamoto, Maria Carmelita Yazbek e todos os autores indicados e fundamentais no curso de Serviço Social, mas nós precisamos inserir a pauta racial como centralidade também daquestão so-cial, inclusive estudando autores negros. E já há uma parcela dos nossos colocando em pauta tais questões, dentro e fora da academia, e inseri-las é responsabilida-de de todos.A graduação não me trouxe respostas, me inseriu nas res-postas de forma muito objetiva, pois é exatamente esse projeto de sociedade, essa estrutura com toda aquela in-quietação trazida desde a adolescência que, a partir de uma desapropriação que começou a fazer ainda mais sentido quando, a partir de formada alguns anos depois, já no lu-gar de mãe solo, eu passei a exercer a prossão no mesmo território em que nasci e cresci, o Capão Redondo.“Escrevo da periferia, não do centro. Este é também o lugar de onde eu estou teorizando, pois coloco meu discurso dentro da minha própria realidade.”(Grada Kilomba)
42 \\\ SAMPA MUNDIPor diversos momentos, quando comecei minha ação prossional com crianças e adolescentes em um CCA (Centro para Crianças e Adolescentes), pude estar dire-tamente com duas questões fundamentais, sendo que a primeira foi me dar conta da quantidade real de mães e mulheres que são responsáveis de forma direta e in-dividual sobre suas crias. E isso não é questionado, sendo por vezes naturalizado, isentando muitos homens das responsabilidades na criação e educação dos lhos. A segunda questão com que me defrontei foi identicar quem são essas mulheres e crianças e por que era tão difícil avançar na discussão racial.Um fato curioso é que o município exige alguns documentos para identicar quem são os usuários dos serviços da Assistência Social; em um delespede-se nome, ida-de, cor/raça, nome da genitora dessas crianças. Até aí nenhum problema, porém, ao acessar esses documentos vê-se que a maioria dessas crianças é identicada como “brancas” ou pardas, sendo que visivelmente não são. Essa informação é au-todeclaratória: logo,as mãesé que informamesses dados no ato do cadastro, ainda que, na nossa frente, as crianças fossem visivelmente negras!!E isso faz sentido, não é mesmo? Até porque as mães, além de terem passado por um processo de embranquecimento social e ideológico, passam também por um processo de autoproteçãoem que se declarar branca, ou até mesmo pardo, mini-miza a exclusão causada por esse Estado. Certa vez uma mãe chegou a nos declarar que “já que o Estado não consegue ver a criança, que então eles pensem que o lho dela é branco, assim eles vão nos odiar menos”.Nós, na época uma equipe de sete mulheres negras trabalhando no Centro para Crianças e Adolescentes, decidimos naquele momento que todas as ações criadas, sugeridas e aplicadas dentro daquele espaço teriam o recorte racial e que a discus-são e potencialização da identidade de crianças negras seriam prioridade; e assim o zemos por um período de três anos.Isso diz muito quando tentamos dialogar com o poder público sobre a questão ra-cial, e eles fazem o discurso de que não há problemas causados pelo racismo nesses espaços, até porque, segundo os números, crianças negras não seriam a maioria, logo discutir identidade nem seja talvez importante. O que não é uma verdade, pois o que precisávamos era provar a existência real dessas crianças e legitimar as nossas ações de combate ao racismo.
43SAMPA MUNDI ///Eu me reconheço em cada atendimento, em cada história, enquanto prossional da Assistência, enquanto mãe de dois adolescentes. Na maioria dos atendimentos não nos separamos do nosso objeto de trabalho, principalmente quando a trajetó-ria de vida nos diz muito mais do que qualquer referência bibliográca, se conse-guirmos fazer uma análise crítica do que acontece ao nosso redor.Hoje, diante da gestão de outro serviço da Assistência, e dessa vez trabalhando diretamente com famílias que são beneciárias de BPC (Benefício de Prestação Continuada), idosos e decientes e também com beneciários de PTR (Programa de Transferência de Renda) – Bolsa Família, e realizando atendimentos domici-liares, se acessamos tanto a rede Sócio Assistencial, quanto a Intersetorial (educa-ção, saúde, conselho tutelar), é possível ter a dimensão do quanto o racismo e sua perversidade é o plano perfeito de um sistema societário excludente. Falta acesso, falta interesse político coletivo, faltam ações práticas, mas falta principalmente nos reconhecermos, já que o projeto de apagamento da nossa história reete-se aqui na periferia de forma transparente. As pessoas precisam ter a compreensão de que precisamos entender qual é o lugar que ocupamos e onde deveríamos estar e, se não estamos, entender o porquê disso.Ter a compreensão de que nada, absolutamente nada, nos é dado e que o pouco que chega não pode ser o suciente, porque não é; e não podemos mais fazer a manutenção desse sistema perverso, que tem ideologicamente a intenção de nos matar, exterminar nossos lhos, nos adoecer.Precisamos nos despertar, acessar os movimentos sociais combatentes do territó-rio, os movimentos de resistência para enfrentar os desmontes de diversas áreas. Entre elas, a mais atacada é a Assistência Social, quando se pensa em cortar custos logo os serviços socioassistenciais são prejudicados. E isso tem um motivo; pro-positalmente, com o avanço do neoliberalismo e a política de um governo fascista, de extrema direita, preconceituoso e que nunca se importou com a classe trabalha-dora, que não legitima nenhuma luta popular, o pouco que se disponibiliza para a questão social não tem importância para este governo. Assim, hoje, mais do que nunca, é necessário articular com a população qual a necessidade e importância dos serviços que servem exclusivamente para garantir os direitos e fazer uma de-fesa intransigente da vida humana.
44 \\\ SAMPA MUNDIDE LÁ PRA CÁCriada no bairro do Capão Redondo até os 12 anos, um dia do ano de 1994, minha mãe, Dona Maria José, me leva para ir morar com ela no bairro do Brooklin. Se conseguir nos localizar geogracamente, vai perceber o tama-nho do contraste social que eu cito nesse parágrafo, mas meus pais na verda-de ocupavam aquele lugar porque ali, na década de 1980/1990, existia uma comunidade, ou seja, uma favela no meio do bairro onde o metro quadrado viria a ser anos depois o mais caro da cidade de São Paulo. Logo, para uma população branca e rica, ter um “miolo” que não se adequava àquele status social não fazia sentido ali.A gestão municipal daquela época (1996) era a de Paulo Maluf, e isso tam-bém diz muita coisa para nós, já que mais de vinte anos depois ele veio a ser julgado e condenado pela obra superfaturada após a desapropriação exata-mente desse lugar de onde eu, meus pais e mais algumas centenas de famílias fomos despejados.Há quem diga que mora em favela quem quer, há quem diga que pessoas que moram em favelas, principalmente as que são localizadas em bairros nobres, não deveriam estar ali, queessas pessoas não cabem ali. Não se leva em con-sideração nada do que possa representar essa ou aquela família, sob quais circunstâncias ela está posta, quantas crianças ou idosos ali existe; nada, ab-solutamente nada importa quando o assunto é “gente da favela” e de uma favela que não deveria estar num metro quadrado “tão nobre”.A imagem que não me sai da mente sobre aquele fatídico ano são os mon-tes de tijolos e pedras que viraram escombros; tudo era cinza, todas as casas estavam reduzidas a entulhos, os últimos que caram faziam o exercício de se lembrar de onde cava a casa dos amigos, os bares que ali tinha... me lem-bro de que certa vez, andando entre os entulhos, parei e quei olhando o horizonte, até onde iam aqueles pedaços de blocos. Ali estavam desfeitos os nossos laços de afeto, pois um projeto bancado por uma grande empreiteira que, na época estava junto à Secretaria Municipal de Habitação e Assistência Social, havia despachado as famílias cada uma para um canto da cidade. Eu
45SAMPA MUNDI ///nem preciso ressaltar que foram para os extremos da cidade as famílias que ali estavam, mas não nos oferecem nenhum projeto político de socialização, não tem escola, não tem trabalho, não tem saúde, e então precisamos criar nossas próprias possibilidades em outro lugar.Até aquele momento, terminar o ensino médio e conseguir um emprego era o sonho mais distante que eu e muitas das minhas amigas tínhamos, até porque no meu histórico familiar, nenhum integrante da família havia cursado ensino superior; então, veja que prepotência a nossa sonhar com isso. Mas eu sonhei! E para desagrado da minha mãe, alguns anos depois fui fazer o curso de Ser-viço Social e a primeira frase que ouvi de minha mãe foi “vai tirar a casa das pessoas também?” E eu sabia que, no fundo, minha mãe não entendia que a mando desse Estado os prossionais acabam sendo as buchas de canhão, agin-do como porta-vozes das mais cruéis ações como, por exemplo, “realocar” a sociedade onde cada um deve estar segundo as intenções do Estado.Quando tive a compreensão de que existe um projeto de sociedade que vai dizer exatamente como as coisas devem acontecer e como organizar ricos e pobres, negros e brancos, a aição só aumentou.Hoje como trabalhadora da Política de Assistência Social, insisto em fazer esse apontamento dizendo o quanto nós, prossionais, precisamos tomar cuidado para não reproduzir um sistema de exclusão e manutenção da po-breza. E acredite, esse é um exercício difícil, uma vez que manter a pobreza do outro é um projeto institucional criado pelo próprio capitalismo. E quan-do estamos a serviço de uma política pública não devemos esquecer quem é que nos direciona à prática prossional. Mas ainda bem que existe um código de ética para se contrapor a essa instituição classista e racista. Além disso, precisamos lembrar diariamente que apesar de servirmos a esse Estado não devemos compactuar com as suas atrocidades de extermínio à população mais vulnerável, pretos e pobres.
Entre> Por Flávia RosaIlustração Rodrigo Kenan SAMPA MUNDI ///
Toco a campainhaVocê demoraOuço o barulho do chuveiroEspio o vão da portaEmpurro e entroAs taçasO vinhoAquela comida que eu gostoA neblina do banheiro Você EscuraÚmidaFêmea no cioOlha e mostra as presasExala feromônioEsfrega orelha e nucaTira minha roupa com os dentesFareja Lambe Suga minhas mamascomo se fosse minha criaDistraídaSopro na colunaDeixa comigoChave de pernasOlhares invasoresMapeio cada milímetro Floresta descampadaMeço palmo a palmoReconhecemosCada montanhaMangue Cada mata virgemReserva de muito prazerSerenoMadrugada friaMaremoto pélvicaVentania em brasaCachoeira de águas quentesCanto de passarinhoSomos natureza híbridaBiodiversidadeNum eclipse orgástico
SAMPA MUNDI ///
MEMÓRIAS DE UMA MENINA EM SANTO AMARO> Por Maria Luisa Cavalheirofotos Arquivo pessoal
50 \\\ SAMPA MUNDISalloma Salomão, querido amigo de longas jornadas, me convida a escrever minhas memórias sobre Santo Amaro. Agradeço o convite, pois produzir tal texto é um desao que urge no meu tempo e em minha mente para compartilhar e contribuir com os movimentos de construção das histórias de diferentes sujeitos que foram silenciados. Quando a iminência da morte se torna real, nossa vida passa em um lme em alta velocidade e parece que vemos com mais clareza nossa história e ao mesmo tempo nossa memória parece falhar à medida que o tempo avança.Desde que nascemos já começamos a morrer, mas vivemos ignoran-do este fato inevitável e a maior parte do tempo nos sentimos “imor-tais”. Não nos preocupamos com o registro das memórias.Eric Hobsbawm nos explica como cada indivíduo tem em sua mente não de modo formal, é claro uma história de sua vida consciente. Desse passado histórico próximo, muitos participantes estão entre nós, testemunhos vivos dos fatos que nos interessa pesquisar, e com os quais cruzamos frequentemente ou ocasionalmente. A memória individual, a história pessoal é um fragmento da história geral e uma contém a outra, uma está necessariamente contida na outra. Aqui tentarei trazer alguns fragmentos das histórias contadas e vividas. Mas a memória é falha.“ Explicitar, enquanto historiador, o laço entre a história que fazemos e a história que nos fez.” (Pierre Nora) Nasci em 1958, na primavera. Sou lha de Antônio1,“ semianalfabe-to”, como ele costumava dizer, mas sabia ler e era muito “antenado” nas questões políticas. Ele viveu no sítio e depois veio viver na “cida-de”, que era Santo Amaro, município até 1935. A partir de então, essa cidade passou a fazer parte do município de São Paulo. Sou lha de Eleonora2, neta de italianos, criada pela avó no Paraíso, pois os pais 1Antônio Alves Cavalheiro.2Eleonora Honoria Cenamo Cavalheiro.
51SAMPA MUNDI ///3Maria Vieira Machado.4Luiza Emília Becari.5Antônio Rafael Cenamo Cavalheiro.6Sérgio Luís Cenamo Cavalheiro.não tinham condições de criar os seis lhos vivos dos doze que tiveram. Estudou até o que hoje cor-responde ao 7º ano. Ia dizer 7ª série, o que predo-mina em minha mente graças às minhas décadas de atuação como professora na conguração da educação segundo a LDB 5692/71.Quando eu nasci, recebi o nome de minha avó pa-terna, Maria3, e de minha avó materna e Luisa4, minha avó materna; assim vim a este mundo Ma-ria Luisa. Meu pai já não era mais rico como fora em tempo anterior. Explico logo no trecho abaixo um pouco desse tempo. Trabalhava como moto-rista de ônibus. Sabia dirigir bem. Morávamos em uma casa de um quarto, sala, cozinha e banheiro. Em 1960 nasceu meu irmão Rafael5, e em 1963 nasceu meu irmão Sérgio6. Assim, éramos uma família de cinco pessoas vivendo nessa pequena casa, mas com um grande quintal.Meu avô paterno, descendente de portugueses/es-panhóis, até os anos 1930 do século XX, vivia num sítio onde hoje ca provavelmente o Shopping Campo Limpo, antigo supermercado Sé, em que havia umas paineiras que sempre meu pai falava que eram do sítio. Já tinha juntado algum patri-mônio com atividades do sítio. Pelas fotos havia criação de animais e alguma lavoura.
52 \\\ SAMPA MUNDIHavia também um armazém. Conforme consta de referência ao município de Santo Amaro, Adolfo Alves Cavalheiro gura na lista como proprietário de Secos e Molhados (armazém) no ano de 1935, em arquivo da Biblioteca Nacional (pesquisa Google 2/3/2020). Ele ganhou muito dinheiro em um jogo de loteria. A julgar pelo meu pai, que aparece na fotograa com uns 10 ou 12 anos, deve ter sido tirada em 1932 ou 1934.
53SAMPA MUNDI ///Parece que meu avô tinha uma visão empre-endedora. Investiu este dinheiro em duas fá-bricas. Uma de macarrão, da qual não tenho nenhum registro, e uma de louças, Porcelana Santa Júlia, que cava na rua La Paz.
54 \\\ SAMPA MUNDIEle possuía um sócio, suponho que algum ex ope-rário experiente, como consta nas referências sobre as fábricas de louça em São Paulo – José Hermes Martins Ferreira (2007). Este referido sócio vendeu a produção e fugiu com o dinheiro levando meu avô à falência, uma vez que ele não tinha conhecimen-to técnico para operar os equipamentos e realizar a produção. Mas antes desta ocorrência, meu avô foi um rico homem de sítio. Além das fábricas e imóveis em Santo Amaro, comprou o 1º Studebaker da região para o meu pai, segundo contou meu irmão. Vendeu grande parte de seu patrimônio para quitar a falên-cia. Ficou com quatro imóveis, entre eles um situado no Largo 13 de maio, que pertence à família até hoje. Os demais foram vendidos. Sempre foi um homem simples e que ajudava muita gente. Estes registros são das histórias contadas por meu pai e lembranças de conversas contadas por meu irmão Rafael, que compõem minha história por meio de fragmentos no tempo e espaço.Busco minhas memórias e encontro uma nuvem, mais exatamente uma nebulosa. O tempo não tem
55SAMPA MUNDI ///começo nem m, como diria Tom Zé. A memória favorece a aglutinação de partículas que um dia foram estrelas. Agora só encontro as partículas. A mais profunda e distante memória que encontro a do quintal. Tiro-a da barbárie do esquecimento, como disse Inês Sabino em sua obra Mulheres Ilustres do Brasil (1899, p. 9), para trazê-la à luz.As minhas primeiras lembranças de Santo Amaro são de meu quintal, das comidinhas com folhas e ores, quase sempre as marias-sem-vergonha, do barro do quintal para fazer bolinhos, de subir na goiabeira, do pé de uvaia e da bananeira, de brincar na pequena varanda com Rafa. Eu queria muito ter uma irmã, mas como tinha um irmão - o Rafael - brincava com ele de tudo, até de boneca. Quando soube que minha mãe estava grá-vida outra vez, esperei ansiosamente por minha irmã. Lembro vagamente do hospital, mas vivamente do sentimento de frustração e recusa quando descobri que era outro menino. Fi-quei brava mesmo. Tive várias amigas ao longo da vida que se tornaram “irmãs”, aplacando e colocando nas profundezas estes sentimentos deploráveis. E Sérgio se tornou depois de adulto muito próximo. Quando criança era uma pestinha. Por volta de 1964, os horizontes se alargaram. Lem-bro-me da rua, que se chamava Belchior de Pontes, que eu me lembre até 1979. O nome mudou para General Roberto Alves de Carvalho Filho durante a ditadura militar. Lembro-me de brincar de pular corda, pega-pega, esconde-esconde, barra-manteiga, queimada, passa-anel, balanço na árvore. Quase não passava carro ali.Lembro-me das amigas e amigos – Mika, Akira – que moravam na chácara que cava em frente a minha casa e onde eu ia brincar muitas vezes; da família Preuss – Marlon, Dalton, Nilton, Jane e Rosane; de Pascoal e seu primo; dos Gaia. Éramos nós – eu, Rafa e Sérgio.
56 \\\ SAMPA MUNDIHavia as romarias para Pirapora do Bom Jesus em abril e maio, nos anos 1960. Elas ligam-se às experiências dos tropeiros e começaram em 1920 por ação de Cenerino Branco de Araújo; depois, devido a seu tamanho e ao pro-cesso de urbanização, dividiram-se em duas. A de abril, conhecida como de Luizão, e a de maio, a de Cenerino. O pai foi uma vez a pé. Fomos algumas vezes de ônibus e de carro, quando compramos nosso primeiro carro, uma Variant 1974, verde-oliva, em 1979. Víamos passar a romaria na rua Suzana Rodrigues e depois corríamos para a Alameda Santo Amaro para vê-la pas-sar novamente, indo até a igreja no Largo 13. Primeiro vinha a banda mar-cial ou fanfarra, que meu pai adorava, acho que depois vinha o andor com a imagem do Bom Jesus, e aí começavam os cavalos com seus cavaleiros. Em algum tempo, que não lembro quando, as romarias começaram a ter cavalei-ras. Cada cavaleiro e cavaleira com seu traje mais bonito e enfeites nos cava-los. Alguns cavalos vinham com capas. Os cavalos vinham sempre em duas las paralelas às guias das calçadas, deixando um espaço no meio. A seguir
57SAMPA MUNDI ///vinham os carros de boi e as charretes paramentadas com ores, arcos oridos etc., os ciclistas, os pedes-tres e o cortejo seguiam para Pirapora do Bom Jesus. Elas acontecem até os dias de hoje: a de Cenerino co-memoraria os cem anos, mas devido à pandemia do coronavírus está cancelada. Não sei quantos vinham, mas quando estávamos na rua Suzana Rodrigues não conseguíamos terminar de ver novamente na alameda Santo Amaro. Sempre tinha muitos fogos de artifício e, na volta, no domin-go à noite, havia queima de fogos coloridos. Também deixavam uns presentinhos desagradáveis nas ruas, até eles serem limpas pelos serviços públicos.Santo Amaro, na década de 1960, parecia muito lon-ge da “cidade”, onde íamos de ônibus ou bonde, ao médico ou ao Mappin. Para mim levava muitas ho-ras. A avenida Santo Amaro era muito bonita. Tinha canteiros centrais com árvores. Saíamos pouco para longe. Só nas férias íamos para São Vicente no apar-tamento da minha tia.Íamos à casa do vô Rafael7 aos domingos, na av. Adolfo Pinheiro, comer macarronada com braciola. Era uma casa grande, onde morava também meu tio Nino8, o lho mais velho, que era solteiro, ranzinza e não tinha paciência com crianças, mas adorava cava-los e sempre ia ao Jockey jogar.7Rafael Egídio Cenamo.8emistocles Cenamo.
58 \\\ SAMPA MUNDIComecei a ir à escola no jardim de infância, no Colégio Jesus, Maria e José, em 1964, que era onde minhas primas iam, e. embora não pudéssemos pagar, minha mãe fazia questão que eu fosse, pois lá estudavam as meninas ricas da região. Meu avô materno, Rafael, pagou esta escola até o 4º ano primário. Ele vinha todos os dias almoçar em casa e me levava de bon-de à escola. Lembro dele sempre me orientando: “Não ponha a mão na boca ou no olho depois de pegar no dinheiro ou nos apoios e bancos do bonde”. Pegávamos o bonde na alameda Santo Amaro e descíamos no ponto do Pronto Socorro Santo Amaro. Fomos socorridos lá muitas vezes com prego enado no pé, com cabeças abertas em acidentes vários de crianças arteiras, e mordidas de cachorros. Mais tarde também fui so-corrida lá com meu lho, quando de um acidente de carro em 1989.A volta da escola era sempre de carro. Uma mãe cobrava para levar crianças além das suas. O marido era mecânico e ela sempre ia com carros diferentes, até um conversível.Eu era muito medrosa. Tinha medo de tudo. As crianças que iam no carro sabiam disso e faziam bullying me apavorando. Não esquecerei o dia em que alguém levava um livro que ti-nha uma imagem de Tiradentes esquartejado. Até hoje me dá frio na barriga e enjoo só de lembrar. Imagina o quanto me alopraram com esta imagem neste dia. Foram muitas noites difíceis de dormir e com meu pai segurando minha mão, coi-tado. As consequências para as manifestações contrárias ao poder tinham que ser representadas com toda sua crueldade para que não pensássemos em revolta.Meu território era até a Chácara Santo Antônio, na qual mo-ravam meus tios, e o rio Pinheiros, onde tinha a montanha que alcançávamos caminhando com meu pai, onde hoje ca o Centro Empresarial. Sempre fazíamos este passeio quando meu pai estava de férias. Descíamos a rua Brasílio Luz até a margem do rio Pinheiros, ao lado dos trilhos – não havia a
Marginal –, caminhávamos até a ponte do Socorro, atraves-sávamos por ela até o outro lado do rio e íamos à montanha. Uma vez, acho que tinha 6 ou 7 anos, uns índios acamparam numa área da Chácara bem em frente à minha casa. Fiquei apavorada. Tinha uma imagem muito preconceituosa e nega-tiva deles na época, tanto que dormia com o martelo embaixo da cama temendo que eles nos atacassem. Imagina? Não sei de onde veio esta ideia. Provavelmente eram os Guaranis da aldeia de Parelheiros – Terra Indígena Tenondé Porã.Eu detestava a escola de freiras. Lá estudavam as meninas ri-cas e eu não era rica. Minha realidade era de lha de moto-rista de ônibus, morando numa casa de um quarto onde dor-míamos todos, até os meus 9 anos, enquanto as meninas da escola moravam em casarões e tinham até mordomos. Não me identicava com elas. Minhas amigas eram as internas e pobres. A Izildinha e Mariana, uma menina negra, creio que a única que me lembro, e que frequentava o período da tarde. Era com elas que eu passava o recreio. Queria muito sair daquela escola. A proposta pedagógica já tinha no 4º ano um formato diferente, com uma professora para português, uma para matemática e uma para estudos sociais; e tinha a proposta de passar sem exame e com exame para os que ti-nham diculdades. Então disse à minha mãe: “Se eu passar sem exame posso escolher a escola que vou estudar?” e ela respondeu que sim. Feito. Passei sem exame. Fui fazer o exa-me de admissão e estudar no 3º Ginásio Estadual de Santo Amaro em 1970. Minha vida mudou! Lá eu encontrei muitas amigas que mo-ravam perto de minha casa e com quem me identicava, e outras que vinham de longe. Gente de todo lugar, de todas as origens, etnias e classes sociais. Foi a glória! A escola era ini-cialmente um período para meninas e outro para meninos, e depois virou mista, oba! O território passou a ser materializa-do pelo percurso a pé com as amigas, sem adultos! Referência que marcou a vida desse momento: as amigas passando em
60 \\\ SAMPA MUNDIcasa para irmos juntas. Íamos as três sob sol ou chuva pela rua Suzana Rodrigues, subíamos a rua da Matriz, rua Paulo Eiró, praça Floriano Peixoto, Mário Lopes Leão, que na épo-ca se chamava Campos Sales, e rua Dr. Antônio Bento até a escola, que era anexa ao Lineu Prestes.Há muitas histórias contadas e vividas para narrar, uma vez que vivi em Santo Amaro desde o nascimento até a juventu-de. Saí por três anos e retornei, vivendo lá até 1993, quando me mudei para Itapecerica da Serra. Mas essas lembranças cam para outra oportunidade, pois este texto pode instigar a investigação de mais rastros dos tempos e espaços das ex-periências vividas pelos e pelas caipiras santamarenses que fomos, como dizia meu pai.Gostaria ainda de ressaltar que nem tudo era alemão ou ita-liano, como nos querem fazer acreditar quando se trata da história de Santo Amaro. As políticas eugenistas – que ten-taram apagar a presença dos negros em nossa história, dese-jando tornar nossa sociedade branqueada com a vinda dos imigrantes europeus – podem ter inuenciado esta história? Ela foi muito dos indígenas Guaianazes que habitavam a re-gião no século XVI, e dos que remanescem até hoje – os Guarani – Terra Indígena Tenondé Porã - e de poucos por-tugueses colonizadores no século XVI, que também, ao irem expulsando os indígenas, foram crescendo em número e se xando nas terras usurpadas, com os negros e negras afri-canos escravizados que vieram da diáspora. A história desta presença Salomão tem nos contado. Santo Amaro também foi dos tropeiros, desde o século XVIII, os que faziam os caminhos das mercadorias antes das estradas de ferro. Agradeço a Vavy Pacheco Borges pela leitura gentil e atenta com sugestões.
61SAMPA MUNDI ///
62 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI /// NAS ENCRUZILHADAS DOS TRAJETOS,Foto: Edson Feittosa e Victor Valentim
63SAMPA MUNDI ///> Por Neide Almeida e Maria Nice P. Leite2MEMÓRIAS DE NOSSAS MAIS VELHAS1
64 \\\ SAMPA MUNDIContar suas histórias de vida é um ato de coragem, uma maneira de ir além. Um conto voa longe, semente que nunca se sabe quando vai brotar. Quando as pessoas que não cabem nos livros nem nos lmes contam sua história, surgem novas possibilidades...(Erremays3)Como nos diz Erremays, no trecho escolhido para epígrafe, contar histórias é uma forma de resistir. Podemos armar que narrar co-letivamente nossas memórias, num concerto de vozes que ecoam de gargantas de diversas gerações, é uma ação política, poética que pode transformar as pessoas que contam, as relações até então existentes entre elas, o próprio tempo-espaço em que os fatos acon-teceram, aquele em que eles se inscrevem no momento mesmo da narração e, queremos crer, quem lê ou ouve essas narrativas.Recorremos aqui a Grada Kilomba para reite-rar a importância dos registros das memórias de idosas que vivem nas periferias da cidade de São Paulo, muitas delas mulheres negras, sub-metidas a diversos processos de silenciamento:(..) Escrever é uma ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor “validada/o” e “legitimada/o” e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erro-neamente ou sequer fora “nomeada”. (..) (p.28)É com essa convicção que pedimos licença às nossas mais velhas. E eu peço licença para me juntar às mais novas, Maria Nice, Erre-mays, Nubia Abe, Giovanna Gim, Joice Por-1Este artigo é uma reelaboração o texto Trajetos celulares: conhecer idosas, reconhecer cami-nhos, publicado em 2019 como parte das atividades do projeto realizado com apoio do Pro-grama para a Valorização de Iniciativas Culturais do Município de São Paulo – VAI. Este tex-to tem como foco a terceira edição do projeto e algumas ações realizadas após o seu término.2Essa coautoria se deve ao fato de que muitas reexões aqui realizadas são fruto da experi-ência partilhada, de discussões, reuniões e entrevistas realizadas com Maria Nice. Considero também coautoras desse texto as integrantes da Coletiva Chakumbolo – Erremays, Nubia Abe, Giovanna Gim, Joice Portes, Virgínia Ambrus. Compõem o texto diversos registros realizados por Erremays entre 2016 e 2018; Nubia Abe participou da entrevista com Dona Eunice e fez o registro em fotográco, em áudio e vídeo de todo o processo. Assim, embora a letra seja minha, a voz é coletiva, tanto no que diz respeito ao processo partilhado, a partir do qual reetimos, quanto no que se refere às análises e proposições registradas neste artigo.3disponível em: https://issuu.com/erremays/docs/trajetoscelulares)
65SAMPA MUNDI ///4Na primeira edição foram ouvidas as senhoras Margarida, Silvia, Maria, Bete, Nice, Nina, Teresa e Queta (Da. Queta partiu para o Orun alguns meses depois de conceder as entrevis-tas para o projeto. Salve, Da. Queta!). Na segunda edição Mari, aís e Anair partilharam suas histórias com a Coletiva Chakumbolo.5Entrevista realizada em 2018 por Neide Almeida, Maria Nice e Nubia Abe, ação em parceria da Fio.de.contas Produções Culturais, Coletiva Chakumbolo e NCI Jardim Miriam.tes, Virgínia Ambrus, que de modos diver-sos são coautoras desse texto. A experiência aqui apresentada nasceu de encontros entre mulheres que, conduzidas pelo interesse por memórias, partilharam momentos de seus trajetos, ouviram, registraram e zeram cir-cular histórias de senhoras anônimas, seden-tas de narrar, de serem ouvidas, de inscrever suas memórias em outros espaços que não suas casas e, muitas vezes, exclusivamente seus próprios mundos internos. Trata-se, sobretudo, de uma reexão a res-peito da interlocução intergeracional entre mulheres que nasceram e viveram em dife-rentes regiões de São Paulo e se encontraram na Zona Sul da cidade, região onde Maria Nice atua e onde vivem muitas das mulheres que reverenciamos com esse texto: todas as idosas (e os poucos idosos) que participaram das experiências que constituem nosso ponto de partida. É preciso reiterar: muitas foram as mais velhas que ouvimos e que agora estão inscritas em nós4.Elegemos o depoimento de Dona Eunice5 como referência e a ele recorreremos ao lon-go do artigo para constituir a tessitura que aqui tramamos. Essa escolha se deve, sobre-tudo, ao fato de essa senhora ter participado de dois momentos importantes da experiên-cia a respeito da qual reetimos, mas tam-bém a algumas singularidades de sua trajetó-ria, como comentaremos ao longo do texto, o que nos levou a realizar uma entrevista que proporcionou acesso a alguns aspectos de sua história, movimento que não foi pos-sível garantir nos encontros com as demais idosas atendidas pelos NCIs – Núcleos de Convivência de Idosos. Por meio desse diálo-go mais intenso, conhecemos, por exemplo, fragmentos da história do território, a partir do olhar de Dona Eunice, que partilhou co-nosco um pouco do seu percurso pessoal, mencionando questões como racismo, aban-dono dos estudos e seu trajeto no mercado de trabalho.
66 \\\ SAMPA MUNDI“Eu moro aqui a vida inteira. Tenho 74 anos. Vim pra cá com 6 anos, sou praticamente fun-dadora, né? Ali onde tinha a sociedade de ami-gos, meu pai era sócio. Não tinha luz, usaram de uma casa que tinha, juntaram umas outras pessoas, um deu o tijolo, um deu areia e fez aquela sociedade. Aí foi melhorando. O ôni-bus era até cidade Ademar, arrumaram o ôni-bus até o Jardim Miriam, era a jardineira. Não tinha mercado, era venda. Asfalto? Pelo amor de Deus. A gente ia com um sapato velho, calçado no pé, e levava outro limpinho na sa-cola para ir ao médico, ir trabalhar... Naquele tempo com 12 anos podia trabalhar... Era com 14, mas a mãe pedia para o juiz, ele autoriza-va... Eu estudava na Cidade Ademar, na escola Professora Juventina Patricia Sant‘Ana, tem até hoje essa escola; depois fomos para Diade-ma... Eu era muito grande, me chamavam de “mãe dos outros”, faziam chacota (hoje se fala bullying, né?). Falei: “não quero mais estudar, vou trabalhar”. Aí fui trabalhar numa casa de família (...), acabei cando doente, saí; entrei na fábrica, metalúrgica, depois fui trabalhar no centro cirúrgico do Hospital Nossa Senhora de Lourdes, eu me aposentei lá no Lourdinha, eu fazia faxina brava. Lá era assim, carinha bonita era na frente do hospital, carinha feia lá den-tro do centro cirúrgico... eu dava conta de dois setores...Dona Eunice no dia em que concedeu a entrevista, cujos fragmentos são citados ao longo deste artigo. Foto: Nubia Abe
67SAMPA MUNDI ///Foi Maria Nice quem me apresentou Dona Eunice e, dando continuidade ao gesto de minha parceira, z a mediação entre Erre-mays e Nubia Abe6 com nossa mais velha, que se tornou referência, elo mesmo. Escutar a história dessa mulher instigou ainda mais em todas nós a necessidade de (re)inventar lentes para olhar para todas as nossas mais velhas. Cada uma de nós pôde perceber, logo nos pri-meiros contatos, que Dona Eunice é uma mu-lher incrível. Maria Nice a conheceu em 2013, quando começou a trabalhar na Ong Espaço Aberto7, que existe há quase dezenove anos; Dona Eunice já estava lá há algum tempo. Ela chegou ao NCI Jardim Miriam com um qua-dro de depressão, havia perdido o marido... Foi buscar atendimento para passar por aque-le momento de perda. Nas palavras de Nice, “ela gosta de conversar, de contar a respeito de suas origens, de suas histórias. São poucos os idosos negros que conseguem identicar suas raízes, ela consegue trazer isso”.Essa característica ca ainda mais evidente em um depoimento de Dona Eunice, durante um Seminário realizado no Museu Afro Bra-sil, em outubro de 2017, quando ela partici-pava de uma mesa composta por idosas aten-didas por NCIs do território Cidade Ademar, técnicos dos Núcleos e educadores do Museu:6Nas ações mais diretas com as idosas, Erremays e Nubia Abe foram as integrantes da Co-letiva Chakumbolo com as quais eu e Maria Nice tivemos mais contato. Foram as duas que dialogaram de forma mais intensa com as idosas nas atividades do Trajetos celulares reali-zadas nos NCIs.7http://www.espacoaberto.org.br/nciela gosta de conversar, de contar a respeito de suas origens, de suas histórias. São poucos os idosos negros que conseguem identicar suas raízes, ela consegue trazer isso.
“Meu nome é Eunice, sou neta de africano, meu avô era angolano... Quando eu cheguei aqui, no Museu, quei toda contente... Gente, ó meu povo aqui! Fiquei alegre. Meu avô falava, você não estuda, não vai aprender a ler. Você vai ver... Na virada do milênio vai ter negro doutor, vai ter negro de todo jeito, você vai ver, escritor... E você? Vai lavar o chão... Eu estou sentada aqui, gente, estou tão feliz...” Impossível não lembrar de bell hooks,“... todas as tentativas de reprimir nossos direi-tos - das pessoas negras – de olhar produziram em nós um desejo avassalador de ver, um an-seio rebelde, um olhar opositor. Ao olhar co-rajosamente, declaramos em desao: “Eu não só vou olhar. Eu quero que meu olhar mude a realidade”. (p. 216)Com seu depoimento, Dona Eunice sinteti-zou e ressignicou sua história e a história de muitas que a ouviam, rearmou a importân-cia de sua presença e do lugar que ocupava naquele evento e, podemos dizer, enfatizou o quanto é fundamental e transformadora a ação e a palavra de uma mulher negra que tenha consciência do papel que desempenha, ou pode desempenhar, sobretudo em uma sociedade racista e machista como a nossa.Importante dizer que essa postura não é eventual, acompanhando um pouco da his-tória dessa senhora que hoje tem 77 anos, foi possível perceber que é a partir dessa pers-pectiva, com muitas contradições (é obvio), que ela se (re)inscreve no mundo. E, mais do Dona Eunice, no momento em que dá seu depoimento durante o evento no Museu Afro Brasil. Foto: Edson Feittosa e Victor Valentim 8Depoimento ao qual tivemos acesso por meio de publicação no Facebook:
69SAMPA MUNDI ///que isso, precisamos sinalizar que essa não é uma atitude exclusiva de Dona Eunice, como apontaremos mais à frente.Há ainda um outro aspecto bastante presen-te nas falas de Dona Eunice que nos ajuda a compreender a postura dessa senhora, e certa-mente de muitas outras mulheres idosas, cujas histórias são, por vezes, reveladas quando al-gum ouvinte instiga relatos. Ao nal do evento que mencionamos acima, Maria Nice elogia o depoimento de nossa mais velha, que emocio-nou e comoveu as quase 150 pessoas que se en-contravam na plateia do Teatro Ruth de Souza. Ao ouvir o elogio, Dona Eunice, mais uma vez certeira, rearma um aspecto fundamental de sua formação: a vivência da religiosidade afro--brasileira. Ela abre um sorrisão e revela: “Eu pedi ajuda pros meus orixás! Foram eles que me deram a palavra certa.”São esses nossos pontos de partida. Antes de iniciarmos a reexão propriamente dita, retomaremos algumas pontas dos os dessa história para que leitoras e leitores possam nos acompanhar no exercício de buscar al-guma organização para uma experiência que continua nos atravessando e trans-bordan-do de formas muito diversas. Anal, como nos diz Leda Martins, “aquilo que nos funda não é a seta. São as espirais”9. Maria Nice e eu nos conhecemos em 2014. Naquele momento eu coordenava o Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil10. E como acontecia todo mês de novembro, naque-le dia o museu estava lotado. Em meio ao tumulto, identiquei um grupo de senhoras sentadas em um banco com olhares impa-cientes. Ao lado delas uma mulher jovem muito expressiva, sorridente e se desdobran-do em gentilezas e carinhos com o grupo inquieto. Decidi abordá-las. Me apresentei, expliquei que seria impossível realizar uma visita mediada e recomendei que vissem as exposições do primeiro andar, onde esta-riam mais protegidas do trânsito intenso de visitantes. Por m, achei mais seguro acom-panhá-las até o piso superior.No curto trajeto fui surpreendida pelo inte-resse e pela curiosidade daquelas mulheres, que não apenas observavam, mas discutiam e buscavam informações a respeito de tudo 9Valores civilizatórios afro-brasileiros – Oralidade, Centro Cultural da Penha, ago. 2020. Disponível em https://www.facebook.com/centroculturalpenha/videos/valores--civilizat%C3%B3rios-afro-brasileiros-oralidade/606566603554235/10De fevereiro de 2013 a julho de 2019 coordenei o Núcleo de Educação. Em 2015, iniciamos o projeto Na Espiral da Memória, concebido por mim e implementado pelo Núcleo de Edu-cação, em parceria com a ONG Espaço Aberto, por meio da ação com o NCI Jardim Miriam.
70 \\\ SAMPA MUNDIo que viam. Pensei imediatamente em meus pais, nos diversos idosos que sozinhos ou en-tre familiares se mostram aborrecidos e de-sinteressados. Antes mesmo de chegarmos à rampa para o piso superior, consultei Maria Nice a respeito da possibilidade de realizar-mos em parceria um projeto com idosos. Ela nem esperou para ouvir a proposta, topou. Marcamos a primeira reunião para fevereiro de 2015. E assim nasceu o projeto Na espiral da memória.Na primeira reunião com Nice, descobri que os Núcleos de Convivência de Idosos (NCIs11) constituem um importante serviço de atendimento a idosos na capital de São Paulo. O trabalho é realizado por organiza-ções da sociedade civil, via celebração de par-ceria na modalidade “Termo de colaboração” com a Prefeitura Municipal, por intermédio da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMADS), que têm como objetivo oferecer às idosas e idosos proteção social, fortalecimen-to de vínculos familiares e comunitários, es-paços e experiências de convivência social, o que pode incluir uma programação de ativi-dades externas, além do que cada NCI ofere-ce internamente. Maria Nice havia escolhido o Museu Afro Brasil para visitar com idosas que ela atendia no NCI Jardim Miriam. A escolha desse equipamento cultural tinha a ver com o perl das mulheres: moradoras de uma região periférica da zona Sul, mui-tas delas negras ou descendentes de negros (uma vez que nem todas essas se reconhecem em sua negritude). Nice já realizava com seu grupo um trabalho voltado para a ampliação do repertório cultural, tendo como referên-cia principalmente um movimento de escuta. Iniciamos assim uma parceria que se consoli-dou, ampliou e criou raízes entre 2015 e 2018 e continua se desdobrando ao longo dos últi-mos dois anos.11(NCI) -“É um serviço de proteção social, convivência e fortalecimento de vínculos aos idosos com idade igual ou superior a 60 anos em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social. (...) Oferece atividades socioeducativas planejadas baseadas nas necessidades, interesses e motivações dos idosos, conduzindo na construção e reconstrução de suas histórias e vivên-cias individuais e coletivas, na família e no território.” “Os 91 Núcleos de Convivência de Idosos espalhados por todas as regiões da capital promo-vem atividades socioeducativas planejadas, baseadas nas necessidades e interesses dos idosos.Os serviços têm por foco o desenvolvimento de atividades que contribuam no processo de envelhecimento saudável, no desenvolvimento da autonomia e de sociabilidades, no forta-lecimento dos vínculos familiares, no convívio comunitário e na prevenção às situações de risco social. Nos núcleos, os idosos participam de atividades esportivas, dança, artesanato, yoga, pilates, música, canto, ocinas de psicoterapia e resgate de memórias e passeios.”
71SAMPA MUNDI ///12A coletiva Chakumbolo nasce, se constitui e se consolida como uma equipe voltada a es-cutar e amplicar as vozes de idosas, por meio de produtos midiáticos potentes que podem inspirar novas formas e diálogos para os diálogos intergeracionais.13Realizado no dia 20 de outubro de 2017 no Museu Afro Brasil.14Conheça as histórias das entrevistadas em https://www.youtube.com/channel/UCpKREK-FSVQ9s4dYHsOprvogEm outubro de 2017, novo encontro: inte-grantes da coletiva Chakumbolo12 que já re-alizavam desde 2016 o projeto Trajetos Ce-lulares, identicaram na ação dos NCIs da Cidade Ademar e na atitude das idosas que participavam do Seminário de Práticas Edu-cativas: Na Espiral da Memória13 um impor-tante eixo para reetir sobre quem são, como vivem, que histórias contam idosas que mo-ram em periferias da cidade de São Paulo e que partilham experiências cotidianamente.A coletiva já havia reunido histórias de mu-lheres em 2016 e 2017, a partir de entrevis-tas individuais.14 A partir da morte do avô, a artista idealizadora do projeto, Erremays, realizou uma profunda reexão não apenas a respeito da morte, mas do signicado da ausência-presença do avô em sua vida, na vida da família e, em especial, na vida da avó que, durante 54 anos, viveu com o ma-rido. Dessa experiência particular, olhando profundamente para a avó, agora viúva, so-litária, passou a observar seu entorno e a se perguntar: como viviam as outras mulheres idosas na Vila Buenos Aires? O que faziam? Que histórias tinham para contar? Esse foi o mote que deu origem ao projeto. Em par-ceria com uma jovem fotógrafa, Nubia Abe, que também já havia se debruçado sobre his-tórias dos mais velhos de sua família, a ar-tista-pesquisadora decide investigar a vida, muitas vezes aparentemente silenciosa, de mulheres que moravam na mesma vila em que ainda hoje reside sua avó.As integrantes da Coletiva Chakumbolo com aís e Anair, entrevistadas para a segunda edição do projeto, na saída do evento de lançamento do documentários Trajetos celulares em março de 2019. Foto: Maria Nice Leite
72 \\\ SAMPA MUNDI“Trajetos Celulares, nasce, assim, como exercí-cio de escuta de histórias; olhar jovem sobre a velhice; ação que se orienta pelo compromis-so de tornar públicas narrativas cotidianas de idosas periféricas. Idealizado por jovens cami-nhantes que percorreram lugares de São Paulo para conhecer mulheres que, em tardes de chá com bolo, contaram passados, traçaram carto-graas, reconstruíram memórias. A partir de pequenas pérolas, muitas vezes apresentadas (ou ouvidas) como se fossem banalidades, a coletiva Chakumbolo captou e transformou em conteúdo audiovisual e gráco uma colcha de retalhos constituída com base nas narrativas de mulheres singulares e plurais. (Erremays)Na primeira edição, Memórias da Leste15, fo-ram ouvidas oito idosas residentes na zona Leste da cidade. Na segunda, Não Histórias16, foram entrevistadas três mais velhas que vi-vem em diferentes regiões de São Paulo. Nas histórias e modos de viver das mulheres que participaram da segunda edição do projeto, surgiram muitas referências para pensar a respeito do que é ser uma mulher mais velha no século XXI. Como elas olham, analisam, signicam o mundo? Como se posicionam? O que reivindicam? Como atuam nos espa-ços em que vivem e pelos quais circulam? De que forma a ação dessas mulheres pode transformar os olhares dirigidos a todas nos-sas idosas?17 Como vivem e como morrem nossas mais velhas?Chega um momento em que as lacunas em aberto dos Trajetos soam mais como descaso do que inocência, então aqui estamos. Para a etapa nal desses três anos, a urgência é parar de pensar a casa, o íntimo, o individual e abrir os olhos para a sociedade, para as necessidades coletivas, para as políticas públicas, para a vi-vência coletiva. 15Em 2016, na primeira edição do projeto Trajetos Celulares: Memória na Leste, Luara Erre-mays e Nubia Abe saíram à deriva pela Vila Buenos Aires, bairro da zona Leste de São Paulo, em busca de idosas que se dispusessem a falar a respeito de suas vidas, contar suas histó-rias. Foram muitos os relatos, cenas e convites para diálogos que instigaram as duas artistas. Conversas casuais e informais em ônibus, supermercados e esquinas se apresentaram como pistas, chaves para muitas percepções a respeito do cotidiano, dos desaos enfrentados para circular pelo bairro, cuidar da saúde, inventar formas de viver o cotidiano.16Conheça as idosas que participaram das duas primeiras edições do projeto Trajetos Celula-res https://www.youtube.com/channel/UCpKREKFSVQ9s4dYHsOprvog/featured17Considerando que o projeto se destina ao diálogo e à recolha de histórias contadas por mu-lheres e, também, que nas ações realizadas com grupos de idosos o predomínio das mulheres foi sempre absoluto, de agora em diante faremos referência sempre às mulheres, às idosas, ainda que muitas das reexões possam se estender também aos homens.
73SAMPA MUNDI ///A pesquisa que vem sendo fomentada nesses anos precisa ser transformada em material acessível não só aos idosos, mas a toda a comu-nidade – como um verdadeiro esforço de vi-sibilização de corpos esquecidos e existências pouco valorizadas. Assim, surge a necessidade de juntar as informações, estruturar um mate-rial que tenha formatos impresso e virtual para que o projeto possa circular.18O contato com os NCIs revelou-se potente possibilidade de diálogo com grupos de ido-sas que partilham importantes momentos de suas vidas nos espaços e ações promovidas por três Núcleos de Convivência; dois situa-dos na Cidade Ademar: Jardim Miriam e Pe-dreira; e Jardim das Imbuias, na Cidade Du-tra. Foram elas as interlocutoras na terceira edição do Projeto, conhecer idosas, reconhe-cer caminhos.19A partir desse momento, experimentamos juntas diversos caminhos que se apresenta-ram durante os trajetos. Uma convicção nos guiava: era “de extrema importância conhecer o fazer coletivo de idosas, suas características como grupo social, seus direitos, demandas, sonhos e desejos”, como rearmou Erremays.Mais uma vez, Maria Nice foi gura funda-mental para que a coletiva Chakumbolo che-gasse aos NCIs.Por isso, são muitas as vozes presentes neste artigo, tendo como ponto de partida e campo de atuação as ações realizadas com idosas dos três NCIs mencionados, especialmente em 2018 e início de 2019. No trajeto iniciado na-quele novembro de 2014, Maria Nice e eu nos tornamos parceiras e agora, juntamente com Erremays, Nubia Abe e as demais integrantes da Chakumbolo emprestamos corpo para tra-zer à cena uma experiência intensa, singular, mas sobretudo profundamente coletiva.18Os governos municipal, estadual e federal possuem ações sociais para atender idosos; tor-nar públicas essas informações foi um dos desaos da Chakumbolo. Com esse compromisso, indicamos ao leitor, como fonte de referência, os estudos e documentos elaborados por insti-tuições como UNISAL, Observatório do Idoso, OAB, Assembleia Legislativa RS, Ministério da Saúde, Tribunal de Justiça DF e Ministério de Direitos Humanos. E obviamente o Estatuto do Idoso... Também é fundamental o contato com organizações que trabalham diretamente com idosos, fontes não só de pesquisa como também potenciais parceiros para divulgação e circulação de informações, dentre as quais: Fórum do Cidadão Idoso, Portal do Envelheci-mento, Jornal da 3a Idade, Sesc, Conselho Municipal da Pessoa Idosa, Conselho do Idoso SP, Conselho Estadual do Idoso, entre outros. (LuaraErremays, blog, 16.12.2019)19https://issuu.com/morizines/stacks/d04e17a711074406860b7e562716c955
74 \\\ SAMPA MUNDIConhecer idosas, reconhecer caminhos: histórias de nossas mais velhas“Nós devemos então contar histórias? A nos-sa história? É verdade que ao narrar uma ex-periência profunda, nós a perdemos também, naquele momento em que ela se corporica (e se enrijece) na narrativa. Porém o mutismo também petrica a lembrança que se paralisa e sedimenta no fundo da garganta.” (Eclea Bosi, Tempos vivos e tempos mortos) É fundamental destacar que as informações aqui apresentadas não são resultado de uma pesquisa. Foi a partir do contato com as mais velhas, do diálogo com as prossionais que acompanham as idosas que ouvimos20 que pudemos vericar: parte signicativa do pú-blico atendido pelos NCIs são mulheres, que têm entre 60 e 85 anos (mais eventualmente encontramos casais de idosos e homens).21 Muitas são viúvas, vivem sozinhas ou moram com parentes próximos. Quando saudáveis, não raro, cuidam desses familiares; quando enfermas são cuidadas por eles ou por al-gum dos serviços que se dedicam ao aten-dimento de idosos. Muitas dessas mulheres (os homens também) apresentam sinais de depressão. Trata-se de pessoas que moram nas periferias da cidade, frequentemente em bairros com restrições severas no que diz respeito aos diversos serviços básicos, o que vale também para os equipamentos culturais. Destacamos que esses dados são muito pró-ximos aos apresentados pelo estudo SABE22, mencionado abaixo, e bastante semelhantes às histórias de boa parte das entrevistadas em 2016 e 2017 pela coletiva Chakumbolo.São muitos os dados que revelam a precarie-dade que marca a vida de signicativa por-centagem de nossas mais velhas e mais ve-lhos, quando se consideram as populações que vivem nas periferias (não apenas, mas sobretudo). Essa vulnerabilidade diz respeito tanto a aspectos como moradia, alimentação, 20É preciso mencionar aqui também os NCIs Lago Azul e Castelinho, que participaram de momentos importantes desse percurso.21Há uma importante discussão sendo realizada atualmente a respeito da feminização da velhice, processo que se caracteriza pelo fato de as mulheres viverem mais do que os homens, serem ativas, mas não viverem bem, especialmente em decorrência de questões de saúde. Embora esse não seja um aspecto discutido com mais detalhes nesse texto, consideramos de fundamental importância mencionar esse processo e incluí-lo nas pautas de discussão a respeito do trabalho com idosas.22http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/wp-content/uploads/sites/5/2018/08/SABE-2015-2018.pdf Acesso em 21 dez.20
75SAMPA MUNDI ///23http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/cursos/cursos-anteriores/cursos-re-alizados-2018/envelhecer-em-sao-paulo-discutindo-as-condicoes-de-vida-dos-idosos-na--cidade/transporte e saúde, quanto à dimensão afeti-va, experiências de sociabilidade e convivên-cia com outras pessoas com idade e interes-ses semelhantes. Assim como no mundo todo, o envelhecimento da população brasileira acontece rapidamente. De acordo com o IBGE, a população com 60 anos ou mais, que em 2012 era de 25,4 milhões, passou em 2017 para 30,2 milhões. São Paulo é uma das cidades que abriga grande parte dos idosos do país, e muitos deles enfrentam proble-mas de acesso a diversas políticas públicas.23Segundo o Estudo SABE 2015-2017 (Saú-de, Bem-Estar e Envelhecimento), realizado pela Faculdade de Saúde Pública da USP, em 2018, no Município de São Paulo, naquele momento, no Brasil, 14,3% (29,4 milhões) da população era composta por idosos. Desses, 78,34% eram mulheres; 50,83% tinham ida-de entre 60 e 69 anos. Quando avaliadas em suas condições de saúde, identicou-se que, de modo geral, essas pessoas não tinham al-Segundo o estudo SABE 2015-2017, realizado pela Faculdade de Saúde Pública da USP, em 2018, no Município de São Paulo, naquele momento, no Brasil, 14,3% (29,4 milhões) dapopulação era composta por idosos. Desses, 78,34% eram mulheres; 50,83% tinham idadeentre 60 e 69 anos.
76 \\\ SAMPA MUNDIteração cognitiva. Entretanto, 11,43% apre-sentavam sintomas de depressão; 20,07% apresentavam algum nível de dependência em relação a outras pessoas. Considerando a cidade de São Paulo, dos 12,1 milhões de habitantes, em 2015, 1,6 mi-lhão (12,8%) eram pessoas idosas. No que diz respeito às diculdades para a realização das AIVDs (Atividades Instrumentais da Vida Diária), o estudo indica que 11,8% (61.757) das pessoas idosas tinham algum tipo de res-trição para uso de transporte público; 3,5% não se locomoviam com facilidade. Em São Paulo, em 2017, 60% das pessoas idosas eram mulheres. Quando se considera, então, que essas pessoas precisavam de cuidados, de atenção especial, o estudo mostra que 50% da demanda era atendida pela própria família do idoso e que, em 37,9% dos casos, os cuida-dores das pessoas com diculdades também eram idosas.2424http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/wp-content/uploads/sites/5/2018/08/SABE-2015-2018.pdfAção em parceria Núcleo de Educação Museu Afro Brasil, coletiva Chakumbolo, Fio.de.contas e NCI Espaço Aberto Jardim Miriam. Foto: Nubia Abe
77SAMPA MUNDI ///Nos diversos momentos em que pudemos dialogar com as idosas atendidas pelos NCIs, elas zeram menção ao interesse pela reali-zação de atividades manuais, musicais, diver-sas formas de expressão cultural. Revelaram também especial apreço pelas oportunidades de contar suas histórias e a importância de conviver com outras idosas. A esse respeito, destacamos que as entrevistadas na primeira edição do Trajetos Celulares, as que passa-vam a maior parte do tempo em casa e não exerciam qualquer atuação sistemática fora do ambiente doméstico, em geral diziam não gostar mais de realizar nenhum tipo de ativi-dade. Já as entrevistadas em 2017, mulheres com uma vida social ativa, revelaram interes-ses em questões bastante diversas.25As mulheres atendidas pelos NCIs em sua maior parte são mães, avós, e muitas passa-ram a vida cuidando de seus familiares, tra-balharam bastante e envelheceram sozinhas. Todas armam encontrar nos Núcleos de Convivência oportunidades de diálogo, de sonhar coletivamente; muitas, nesse processo se descobrem cidadãs, aprendem que podem lutar por seus direitos.Os NCIs cumprem, assim, um importan-te papel na (re)inserção dessas pessoas na cena pública e na inclusão da discussão dos 25https://www.youtube.com/channel/UCpKREKFSVQ9s4dYHsOprvog/playlists?disable_polymer=1 . Ver em especial os depoimentos de Mari, aís e Anair.26Entrevista realizada por Maria Nice, Neide Almeida e Nubia Abe, em 29 de março de 2019, por iniciativa da Fio.de.Contas Produções Culturais, em parceria com a coletiva Ckakumbolo.Idosas em reunião com técnicos dos NCIs e integrantes da coletiva Chakumbolo, no Museu Afro Brasil. Foto: Neide Almeidadireitos dos idosos nas pautas das políticas públicas e no cotidiano dessas pessoas que, muitas vezes, passam toda uma vida sem consciência ou condições de reivindicar e usufruir de seus direitos e, muitas vezes rea-lizar desejos, como nos conta Dona Eunice:Minha sogra tinha falecido, meu marido ti-nha se suicidado... Quando eu entrei no Espa-ço Aberto chegou a vitória pra mim. Eu tinha um sonho: quando eu casei, o maior lugar que a gente podia ir era Poços de Caldas; todas as noivas iam. Eu não tinha dinheiro pra ir. Meu Deus, com quantos anos? Com 70 anos que eu fui fazer minha lua de mel; sozinha, sem ma-rido. A Elaine me levou... Fiquei tão feliz! No hospital, nos lugares que eu trabalhava eu ar-rumava cama para os patrões, arrumava sala para os patrões, mas eu não era hospedada por ninguém, eu só pegava na vassoura.
78 \\\ SAMPA MUNDIQuando eu cheguei lá e a menina veio arrumar a cama pra mim, eu pensei: pra mim? Ai, meu Deus, deitei naquela cama que outra pessoa arrumou pra mim, sentei naquela mesa...Eu -cava mais encantada de ver a mesa arrumada, do que pra comer. Nem fome me dava, porque eu estava feliz... Aos 70 anos...Nunca é tarde; eu encontrei vitória ali.Tomara que nunca acabem esses grupos da terceira idade, essas danças, essas coisas. Se não, eu ia estar em casa que nem minha mãe costurando, chorando, re-mendando uma roupa chorando, uma beleza....Fica evidente nos contatos que estabelece-mos com essas idosas que a escuta diz respei-to não apenas ao fato de serem ouvidas, mas também de serem percebidas como sujeito, respeitadas e acolhidas, tendo em vista suas singularidades.Acompanhando as ações já realizadas pelos NCIs no território, bem como as atividades propostas pela equipe do Trajetos Celulares, chamou nossa atenção a relação afetuosa que se evidencia entre os prossionais dos Núcle-os de Convivência, os ocineiros e também com as artistas pesquisadoras. Todo encontro se inicia com um ritual de abraços, que não são mera formalidade, mas contatos de cor-po inteiro, olhos nos olhos, verdadeiras ma-nifestações de alegria pelo encontro. Aqui já se estabelece um momento precioso de escu-ta e se inicia a atividade: são partilhadas do-res, tristezas, sonhos, desejos, inquietações, curiosidades. E é fundamental que quem esteja recebendo essas idosas esteja atento, e disponível eventualmente para abandonar o programado e seguir outros percursos, ou-tros trajetos que se constituem no momento mesmo da chegada.Durante as atividades há momentos de ver-dadeiras festas, riso solto, brincadeiras, jo-gos de palavras. Mas há também tristezas profundas: um lho que partiu, a lembrança do abandono de um pai, a angústia de não ter se despedido da mãe que morreu há al-guns anos, um amor perdido, uma traição que ainda faz chorar, a iminência da morte, a memória que começa a se tornar labiríntica. Há dias em que os relatos são, sobretudo, a respeito de perdas, de faltas. E o que importa é acolher. Um momento de silêncio em res-peito a uma dor, em seguida um abraço, um cafuné, um carinho. Depois, a roda continua a girar. E logo todas se dão conta da potência do momento da partilha.Outras vezes os relatos desencadeiam boas gargalhadas, abraços espontâneos, fotos que passam a compor os álbuns no Facebook, no WhatsApp e, assim, os dias vão sendo não apenas registrados, mas reinventados, ga-nhando novas possibilidades, seguindo no-vos trajetos.Não raro, como arma Eclea Bosi, citada no início deste capítulo, ao nal de um encon-tro de 1h30 ou 2h de duração, nos sentimos profundamente imersos nas histórias dessas pessoas mais velhas que tão generosamen-te partilham conosco, por vezes, suas dores mais profundas, seus medos mais ocultos, suas alegrias maiores e mais insuspeitas. Mas
79SAMPA MUNDI ///Idosas e idosos do NCI Jardim Miriam participando de atividade cultural, conduzida por integrantes do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil. Foto: Maria Nice Leite
80 \\\ SAMPA MUNDInão só, quase sempre fazemos trajetos por lu-gares nunca percorridos, por tempos às vezes nem sequer imaginados e nos emocionamos, nos solidarizamos com aquelas pessoas...Nos três NCIs acompanhados em 2018, além de um conjunto de atividades realizadas no cotidiano, foram identicados projetos espe-cícos que têm como eixo principal a escuta. O NCI Jardim das Imbuias realiza a ocina Enquanto Ela Não Vem, conversas sobre morte e vida. As idosas são estimuladas, num exercício imaginativo, a desejar futuros pos-síveis. No NCI Pedreira é realizado o Encon-tro Intergeracional, em parceria com o proje-to Beija-Flor, que estimula a troca de cartas entre adolescentes e idosos.No NCI Jardim Miriam é desenvolvido o pro-jeto O Livro da Vida, que relataremos aqui, com um pouco mais de detalhes. Iniciado em 2017, trata-se de um processo de resgate de fotograas antigas e registro em vídeo de narrativas contadas e escutadas pelos idosos que frequentam o núcleo:Na verdade esse projeto surgiu com uma ideia da professora Val que dá aula para o Mova, Movimento de Alfabetização de Adultos, que tem como referência a Pedagogia do Oprimi-do, de Paulo Freire. A Val fez um trabalho lin-do, contando histórias que ela ouvia na sala de aula. Na turma dela algumas idosas já sabiam ler e escrever um pouco e outras aprenderam depois dos 60 anos. Além do ler e escrever, elas contam histórias. A Val estava usando essas histórias. Um dia ela resolveu escrever e aí sur-giu o livro. Eu ajudei a editar, montar a capa. Não foi um livro convencional, que foi para uma editora... a gente imprimiu no computa-dor e cada idosa recebeu um exemplar. Em 2016 perguntei a ela se podia usar a ideia com minha turma: a gente está no mesmo es-paço, algumas alunas dela fazem parte da mi-nha atividade socioeducativa e eu resolvi de-senvolver uma atividade diferente: gravar as histórias. A princípio a proposta era registrar a história delas com o bairro, falar sobre perten-cimento, o território como lugar de protago-nismo; não só contar os problemas, mas tam-bém as potencialidades que havia ali. Algumas pessoas tinham visto toda a evolução do bairro, como ele cresceu, como era: o Jardim Miriam que alguns idosos relatam tinha lago, onde eles pescavam, praça... histórias incríveis (...) Mas descobri que nem todos haviam acompanhado a história do bairro, consegui pouco material a esse respeito. Então, alterei a proposta para que todos pudessem participar. Pedi que cada um levasse uma foto de um momento marcante para contar um pouco da sua história...No m foram contadas histórias bem diferentes... E a ideia era fazer um livro-documentário... A pro-posta era trazer essas histórias de vida... (Maria Nice, entrevista por WhatsApp em janeiro de 2019, para a coletiva Chakumbolo)Maria Nice relata ainda que o projeto O Li-vro da Vida está suspenso, em decorrência de problemas com a qualidade do som ao re-gistrar as histórias. E refazer o trabalho exige tempo, equipamentos adequados, além do desao de convencer as idosas a contarem
81SAMPA MUNDI ///novamente as histórias partilhadas num mo-mento em que toda uma conjuntura justica-va os relatos.É a própria Nice quem nos alerta para o fato de que o tempo é o maior desao quando se trabalha com idosas, seja porque as lembran-ças podem se perder de um dia para o outro, seja porque os humores mudam e nem sem-pre retomadas são bem recebidas, seja por-que a vida se esvai...A ação articulada pelo Trajetos celulares pro-porcionou, ao menos parcialmente, a realiza-ção de alguns registros, por meio da utiliza-ção do aporte e da infraestrutura construída para o projeto. Como contrapartida, o diálo-go com os NCIs fortalece um propósito: cola-borar para incidir no campo das políticas pú-blicas, por meio da divulgação das histórias e das experiências individuais e coletivas das idosas mapeadas e acompanhadas pelas jo-vens ativistas culturais ao longo dos três anos de desenvolvimento do projeto. O material pode ser acessado nas redes sociais do proje-to Trajetos Celulares. Esperamos que ele pos-sa instigar, inspirar outras ações e reexões27.Diversas faces da memória: lembrar, esquecer, inventar, reinventar a vidaUm mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momen-tos desse mundo perdido podem ser compre-endidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda e repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desgu-ramento das paisagens caras, pela desaparição de entes queridos, é semelhante a uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera gura do consumidor atual. (...) (Eclea Bosi, Memória e sociedade – lembranças de velhos)Ao longo desses trajetos tivemos a oportu-nidade de conhecer muitas histórias de mu-lheres que, em seus processos de envelheci-mento, revelam dobras, detalhes, minúcias de suas vidas como quem se debruça sobre o presente não apenas para lembrar o passa-do, mas para dele tirar elementos a partir dos 27https://issuu.com/morizines/stacks/d04e17a711074406860b7e562716c955https://www.youtube.com/channel/UCpKREKFSVQ9s4dYHsOprvog/playlists?disable_polymer=1https://m.facebook.com/trajetoscelulares/?locale2=pt_BR@trajetoscelulares
82 \\\ SAMPA MUNDIquais o presente pode ser forjado e o futuro, construído como possibilidade:Eu me chamo Eunice, vim da cidade de Ouri-nhos para São Paulo. Somos 5 irmãos, 4 mu-lheres e 1 homem. Meu pai era servente de pedreiro e minha mãe lavadeira, ela trabalha-va na rua Manoel de Nobrega, lavando roupa, num casarão velho que tinha lá, atrás do hospi-tal Brigadeiro. Minha mãe era muito católica. Quando z uns 10 anos eu ia na Igreja da Ima-culada Conceição, Diadema, o Jardim Miriam não tinha igreja. Quando eu chegava lá carre-gava o andor; um dia eu caí e desmaiei. Minha mãe falou “isso não está certo”. Ela era da um-banda. E falou: “acho que você está no lugar errado”. Ela me levou num centro. Lá caiu um pano em cima de mim, um pano, um punhado de areia, terra. Aí o atabaque tocou e desceram os pretos-velhos. Eu peguei o atabaque, sem saber tocar e quei tocando aquele atabaque. Virei lha de santo; vesti uma roupinha branca, só uma roupinha branca. O pai de santo man-dou: “risca o ponto aí”. Eu risquei direitinho e ele falou: “a gente vai fazer o batizado e você vai ser umbandista”. Eu quei a vida inteira, -quei até 20 anos. Com 20 anos arrumei meu marido, meu namorado. Ele não acreditava em umbanda, aí eu abandonei. Meus lhos nasce-ram; quando fez 7 anos certinho meu marido foi embora, me abandonou, me deixou com as duas crianças. Eu não achava jeito. Aí voltou de novo o pano por cima de mim, o pano branco e um punhado de terra em cima de mim. Tinha um centro lá embaixo, fui lá, peguei o atabaque e quei tocando de novo: aí fui para a outra re-ligião, jogou o búzio pra mim e falou “você é lha de Obaluaiê e de Iemanjá e você vai ter uma história muito bonita”. Deitei pro santo, z o que tinha que fazer, nunca mais larguei. Às vezes eu estou andando na rua, e alguém olha pra mim e diz “está escrito no seu rosto, você é uma mãe de santo todinha...” (...) Até hoje se alguém pede para eu dar um passe, eu dou. Eu recebi de graça e só dou de graça.Interessante observar que, por meio das ações de espaços como os NCIs, diversas questões, como a diversidade religiosa, passam a fa-zer parte das reexões realizadas por idosas e idosos. Com isso foi possível perceber que singularidades das histórias de cada uma das mulheres entrevistadas constituem campos nos quais se pode reconhecer a dimensão coletiva das histórias individuais. Ao ouvir o relato de uma companheira, muitas mulhe-res partilham experiências semelhantes, en-tre elas a vivência de preconceitos, exclusões e violências que marcam suas vidas. Não nos aventuramos aqui a traçar pers, mas preci-samos dizer que os trajetos dessas mulheres que vivem nas periferias, que enfrentam e enfrentaram a vida inteira diversas situações de vulnerabilidade, em sua maioria negras, migrantes, revelam muito a respeito da dinâ-mica de vida de um contingente signicativo de nossa população. Cabe destacar novamente para o leitor que nossa intenção, com as experiências realiza-das e também com este texto, é colaborar para que as histórias dessas mulheres mais velhas
83SAMPA MUNDI ///ecoem, reverberem, que cheguem a outros ouvidos, a outros espaços, que afetem outras idosas, jovens, adultos, instituições que pos-sam olhar para essas mulheres como pessoas potentes, plenas e que tanto têm a dizer a res-peito de si, dos outros e da própria experiência que é viver. E, sobretudo que, ao falarem de si mesmas, essas nossas mais velhas tenham a possibilidade de se reconhecer como mulhe-res, como cidadãs; que não apenas podem, mas devem reivindicar seus direitos e ocupar os lugares que escolherem. E mais: que elas se-jam espelhos, que suas vozes sinalizem traje-tos mais dignos, acolhedores e amorosos para todas nós. No m, para todos nós.Pertencer: exercício de subjetividade e cidadaniaNão é novidade que o trabalho que começou no Na Espiral da Memória é de suma importância para a população que a gente atende, pensando no conjunto de idosos que a gente atende no dia a dia. Primeiro quero fazer um recorte da ques-tão do direito à cultura, como eu já disse outras vezes, os idosos que a gente atende vêm de um território (Jardim Miriam, SP) que não tem acesso, não temos equipamentos de cultura; os espaços de lazer são restritos; apenas alguns ser-viços da assistência social como o nosso aten-dem essa população. Então, foi de extrema im-portância fazer esse trabalho conjunto também para poder ressignicar o lugar da cultura na vida dos idosos, tanto do acesso aos equipamen-tos culturais, quanto fazer esse resgate histórico de vida, de entender que cultura faz parte da nossa história, do nosso cotidiano (...) Alguns assuntos foram ressignicados, como a questão do racismo, do preconceito, a questão de tirar a negatividade quando se trata da população ne-gra, de tratar o negro como protagonista, dele se enxergar enquanto protagonista, como fazendo parte da história. Quem foram nossos ances-trais...” (Maria Nice)O depoimento de Maria Nice nos convoca a reetir sobre possíveis signicados e de-saos que uma escuta genuína de idosas pode trazer à tona. As memórias, as lem-branças têm um intenso potencial poético, mas também político. Não basta, portanto, ouvir idosos e idosas mas é preciso pensar Como aponta Maria Nice, há que se exigir que haja, sim, equipamentos culturais nos territórios em que as pessoas habitam. Mas não só. Há que se garantir que esses mais velhos e mais velhas possam transitar pela cidade, que sejam recebidos com respeito, com dignidade onde quer que cheguem.
84 \\\ SAMPA MUNDIem estratégias para que essas falas, essas vo-zes sejam compreendidas como forma de atuação, de intervenção em busca de novas possíveis formas de enraizamento, de reco-nhecimento desses sujeitos como cidadãos. E mais, que suas queixas, seus desejos, sua existência sejam efetivamente considerados e tomados como referências, como ponto de partida para a construção de políticas pú-blicas que considerem os mais velhos como sujeitos, cidadãos do presente.As cidades, as ruas, os equipamentos cul-turais, as casas não têm de fazer concessões para recebê-los, ao contrário nossa ação pre-cisa ter como objetivo colocar em pauta pos-sibilidades para que os espaços sejam cons-truídos, reorganizados, repensados de forma que idosos e idosas sejam considerados como público efetivo.Como aponta Maria Nice, há que se exigir que haja, sim, equipamentos culturais nos territórios em que as pessoas habitam. Mas não só. Há que se garantir que esses mais ve-lhos e mais velhas possam transitar pela ci-dade, que sejam recebidos com respeito, com dignidade onde quer que cheguem. E mais: que as programações a eles destinadas não se limitem, que todas as possibilidades estejam disponíveis, considerando o perl, as singu-laridades dessas pessoas, sem estereotipá-las, sem pré supor que há temas, aprendizagens, questões que não mais interessam a esses homens e mulheres. Por isso, rearmamos, o principal desao para atuar como educa-dor, como mediador na relação com idosos e idosas, é admitir que, por mais que seja-mos especializados, por mais que tenhamos uma ampla formação acadêmica, estaremos diante de pessoas que têm saberes advindos de uma experiência que não temos. Será pre-ciso acreditar, de forma genuína, que nossa ação no diálogo com mais velhos e mais ve-lhas não é ensinar. Pode ser aprender, pode ser partilhar e certamente pode ser estabele-cer vínculos, relações, olhar a partir de lentes diferentes para o mundo em que vivemos. Repensar ritmos, formas de movimenta-ção, modos de construir afetos. Foi isso que aprendemos quando ouvimos as idosas que generosamente se dispuseram a participar do Trajetos Celulares.Mas nada mais potente e legítimo que a voz delas, as idosas, para que possamos ter al-guma dimensão de quem são essas pessoas. Suas falas, assim como suas posturas, suas atitudes colocam por terra muitas das ima-gens construídas de nossos mais velhos ne-cessariamente como pessoas frágeis, que precisam de tutela, que dependem de nós. Quando conseguimos apurar nossa escuta, de corpo inteiro, o que vemos são homens e mulheres que revelam muita força e muita sabedoria, uma grande capacidade de resistir, de reinventar o cotidiano em meio a tantas adversidades, interdições e tentativas de apa-gamento. O que eles e, sobretudo, elas reve-lam é uma consciência profunda de suas raí-zes, do lugar que, se não ocupam, têm direito de ocupar, não no passado, mas no presente, no aqui, no agora. Novamente na voz de nos-sa entrevistada:
85SAMPA MUNDI ///Hoje está bem melhor, outros tempos... Ima-gina, a mulher tem mais liberdade. Eu, por exemplo, sou uma mulher separada. Mulher separada é mulher marcada. Se você vai cha-mar um pedreiro, ele já vem com segunda in-tenção. Se vai chamar um pedreiro, tem que chamar meu irmão junto, pro meu irmão s-calizar a obra. Hoje não... Esse tempo agora é ruim, mas é bem melhor, as mulheres já têm mais liberdade. Eu gosto de ver. Se quiser casar mulher com mulher pode casar, porque o im-portante é amar. Se um homem quer namorar com outro homem, namora, meu lho! Você está feliz? Eu aceito isso. Eu acho que eu sou uma pessoa que tem um espírito pra frente, muito evoluído. Como eu sou uma pessoa lá de trás, a pessoa pode falar “é porque não é da família dela”. Minha família tem de tudo, gen-te! Uma pessoa com 17 tias, tem de tudo... Eu sempre falo: melhor esse tempo de agora, que todo mundo tem direito de fazer mais ou me-nos tudo o que quer.As falas de nossa mais velha, Eunice, dão pis-tas importantes a respeito do engajamento de idosos e idosas, que precisam, sobretudo, de oportunidades para que possam se posicionar, reler e ressignicar sua história e o lugar que ocupam no mundo. Essas vozes podem re-velar um movimento ocultado, mas nem por isso menos importante e signicativo, e que se torna possível nos espaços coletivos alternati-vos que são criados, muitas vezes, à revelia das instituições que, de fato, são responsáveis por garantir qualidade de vida para essa popula-ção. Movimentos que surgem, ganham corpo e reverberam a partir da ação de organizações e pessoas comprometidas com a preservação e a circulação de histórias que, por séculos, fo-ram silenciadas e que, ainda hoje, podem per-manecer interditadas.Nesse processo, percebemos que é preciso também que nossa sociedade compreenda que os idosos e idosas são cidadãos atuan-tes, que a ação política faz parte da vida de muitos homens e mulheres que há algum ou muito tempo passaram dos 60 anos, mesmo aqueles que, como dissemos no início deste texto, estão invisibilizados nos lugares em que vivem. Nesse sentido, os NCIs e outros serviços que fazem atendimento direto a esse público são essenciais. É com a mediação dessas instâncias que idosos participam, por exemplo, de fóruns, conselhos e outros espa-ços de reivindicação de seus direitos. 28 28“O Fórum da Pessoa Idosa de Cidade Ademar e Pedreira abrange um território que, segun-do projeções da Fundação Seade, chegará em julho do próximo ano com mais de 53 mil ido-sos...”. (Notícia de 26/11/2018, disponível em: http://www.jornal3idade.com.br/?p=21748)
86 \\\ SAMPA MUNDIEsses fóruns acontecem em todas as regiões da cidade de São Paulo. Podem e devem ser ocupados por nossos mais velhos, não ape-nas aqueles atendidos por serviços como os NCIs, mas por todos os homens e mulheres que, de alguma forma, estejam dispostos, interessados ou que precisem recorrer a es-ses espaços, seja para buscar acolhimento afetivo, seja para ter respaldo para enfrentar as diversas situações a que são submetidos os idosos e idosas, vítimas de violência, de abandono, de problemas de saúde, falta de alimentação, moradia... Enm, como arma Eclea Bosi, Todas as histórias contadas pelo narrador ins-crevem-se dentro da sua história, a de seu nas-cimento, vida e morte. E a morte sela suas his-tórias com o selo do perdurável, as histórias dos lábios que já não podem recontá-las tornam-se exemplares. E, como reza a fábula, se não estão ainda mortos, é porque vivem ainda hoje.Se é assim, ca para nós, então, o desao de não deixar morrer essas histórias, essas vozes que se erguem mesmo à contracorrente. Es-cutar, registrar e fazer com que esses relatos saiam do anonimato, circulem por espaços diversos é um dos desaos a que se propôs o Trajetos Celulares. E nós nos compromete-mos a garantir que essa gira continue.
87SAMPA MUNDI ///Referências bibliográficas:Almeida, Neide; Chakumbolo. Trajetos celulares: conhecer idosas, reconhecer cami-nhos. São Paulo: Chakumbolo; MoriZines; Fio.de.contas Produções Culturais, 2019.Bosi, Eclea. Memória e sociedade; lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Memória: enraizar-se é um direito fundamental, por Mozahir Salomão Bruck (en-trevista) Dispositivav. 1 n. 2 (2012): nov. 2012 / abr. 2013. Disponível em: http://pe-riodicos.pucminas.br/index.php/dispositiva/article/view/4301. Acesso em 21.dez.20Erremays, Luara. Irrefreável m: Dona Queta. Disponível em http://trajetoscelula-res.blogspot.com/Escola do Parlamento. Envelhecer em São Paulo: discutindo as condições de vida dos idosos na cidade. Disponível em http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparla-mento/cursos/cursos-anteriores/cursos-realizados-2018/envelhecer-em-sao-paulo--discutindo-as-condicoes-de-vida-dos-idosos-na-cidade/Estudo SABE – Saúde, Bem Estar e Envelhecimento. Estudo longitudinal de múl-tiplas coortes sobre as condições de vida e saúde de idosos do Município de São Paulo. Disponível em http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/wp-con-tent/uploads/sites/5/2018/08/SABE-2015-2018.pdfhooks, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.Kilomba, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
88 \\\ SAMPA MUNDI88 SAMPA MUNDI ///
RISCA TUA FACA NO CHÃO> Por Raissa Padial CorsoIllustração: Raissa Padial Corso
90 \\\ SAMPA MUNDI(Ou “Mas, ele não queria fazer isso)(Ou “O conto da mulher lapidada que praguejaram: Louca”)Referenciar para dentro.Regozijar-se em um lamento.Esculpir cada ancestral na cara pau-brasil,Relevos de pés rachados.Guianças de bons caminhos.Enquanto pernas abertasEscorrem, mucos, tampões,Sangue de uma nova alma a encarnar.Riscando o chão com peixeira:Respeitos demarcados, a mulher prossegueDebulha a si mesmaFlamejante olhar que dissipa qualquer mandinga.Recolhem-se a intuiçõesBonecas de panoBonecas de palhaMilhos, feijões guandus.Ela é uma Louca!Ela é uma Louca!Em sua cabeça mil serpentesSimbolizam a sabedoria da açãoMãe escamada da criação,Vasalisa na oresta,
91SAMPA MUNDI ///Respeita crânios e cercas de ossosEfêmera fêmeaQue busca a fagulhaEfêmera fêmeaQue busca reacenderLareiras de sapiênciaGuardiãs da nutriçãoDe seus seios jorram cachoeiras de bençãosDevolvidas à Mãe TerraHonra a sina que pisaO caminho que dedilhaEm marabás, pirajussarasLadeiras de um Taboão.A Lua é nova, nada brilha no céu.Apenas pirilampos conversam com Medusa.Apenas caxinguelês aconselham Sebastianas.Vulcões emergentes explodem por estes córregos,Onde mulheres metem suas colheres.Riscam novamente facas no chão.Escancaram-se em gritos coletivos deAQUI NÃO!Demarca seu chão, faz faísca de sua faca.Com olhares fumegantes sem palavras, comunicam:AQUI NÃO!
Granito é grão miúdo> Por Carolina Itzá SAMPA MUNDI /// Fotos: acervo pessoal
Esse texto foi produzido diante da provocação das amigas e amigos da Sampa Mundi em construir uma autobiograa poética. Tentei buscar alguns os da narrativa que me puxam a contar...Minha família paterna é mineira. Entre o verde da roça e o azul limpinho do céu, caminham pés pesados da vó. Carregando peso dali pra lá e tocando delicadamente (dedos grossos e picados de agulha) a pétala da roseira. Vó, de onde vem nossa família? “É daqui mes-mo, minha lha...” Da pedra, vó?Olho pela janela da casa da minha véia, a montanha lá atrás virando poeira, se des-manchando lentamente na sina voraz da compra e venda. A testemunha granítica dos nascimentos de todas nós, hoje, é quase um montinho de areia seca. Toda a história das Gerais, aqui onde meu pé pisa, é história de pedra. Minério. Sinto que correm nos meus ossos atravessados caminhos que nunca vou saber, vou ter que inventar. Um dia eu tomei banho de folhas, e sonhei com a vela ainda acesa. Eu vi o lugar onde nasceu minha tataravó: era de Ambró-sio, campo grande. No exato território onde a lembrança foi morta e enterrada, ergueu-se a cidade do meu povo. Pedra sobre pedra. Teve um dia que vi uma pedra de mil toneladas, dinamitada da montanha, cair do caminhão em cima de um carro, em Candeias. Vingança pouca. Fisgo vestígio, arqueologia de qualquer coisa que faça sentir. O silêncio dói. Procuro na pele, procuro no cabelo, procuro debai-xo da unha, no crucixo calado em cima da cama, e o amém ainda dói.Entre parênteses: minha família materna che-gou de navio também, mas era outro rolê, as amarelas. Lidaram com a roça, cresceram vi-tais, sabedorias taoístas espirituosas como: fa-zer nascer uma or no asfalto. O vazio o oco o olho rasgado. Entre uma pequena cidade vul-cânica em Nagasaki e outra imensa, no pé do Monte Fuji (terra de mulheres xamãs, eu sei de onde veio o tino do oráculo que ainda existe aqui, em minhas mãos), me encontro. Todas as tretas e trutas de ser amarela, posso lidar
94 \\\ SAMPA MUNDIcom a contradição acesa. Memória é dádiva também, e agradeço. Fecha parênteses.Pois bem, a pedra. Corre na minha carne a tranquilidade e a inquietude. Uma história contada, outra silenciada. Eu sou esse bicho, não sei dizer muito como é porque é um ba-guio que corre nas veias tantas, e tantas outras não – e não se fala. Um lugar que se conta, ou-tro não. Minas gerais é pedra, minério, ouro, granito, placas tectônicas e sedimentos dentro de nóiz mexendo silenciosamente. História marcada de bauxita, ferro, cobre, prata. Dia-mante. O nome do meu irmão é Pedro, e meu pai diz que é por causa de tanta pedra. O nome da minha irmã é Rosa, da roseira da minha vó.Um dia procurei no Google Maps amarela a montanha imponente: Fuji, e o vulcão de águas profundas (tomo banho pelando e chá quase fervendo, disse minha mãe, porque mi-nha batyan nasceu dentro da água do vulcão). Memória é dádiva. Quando meu pai recla-mava que era sócia da Light, banho ferven-do, sopa queimando. Parei pra pensar e tracei uma continuidade da pele da minha batyan e a minha: quente, eu gosto de tudo quente. Japoneses do Taboão da Serra continuaram, o ozinho da memória tá ali, tem quem nem queira saber, mas eu quero. Saber taoisticamente de si é como sobrevivo na vida mil graus da cidade grande. Isso é um privilégio. Então, dentro de mim existe a guer-ra dos mundos, não tem como passar o pano e não escolher o lado que você vai cambar. Cor-re nas veias a guerra, e quem traça agora as continuidades sou eu. Na carne, tudo e nada
95SAMPA MUNDI ///ao mesmo tempo. Onde vou situar os passos? A parte que narra sua história dentro do meu corpo não pode calar a parte que o garimpo levou. Vixemaria, vó.E o silêncio ensurdecedor da montanha que se foi ca lá, atazanando. Tinha vez eu quase não dormia e não sabia por que, tinha um peso na noite, uma coisa dentro do peito mexendo no meio daqueles móveis velhos, do cheiro de guardado, da rua de paralelepípedo duro, trin-cado: “vó Maria, ô Maria, de onde?”. Daqui mesmo, minha lha: Dessa pedra, des-sa roça, desse corgo, dessa igreja do rosário, daqui da terra, do estrume, da titica da gali-nha, do garimpo, da limalha ninha no ar. Pó de onde vêm as pessoas mineiras. E o saqueio das nossas pedras, que levaram a montanha nossa... a montanha mestra de prosas innitas. Um dia desses a Martinha colocou uma pedra no meu corpo que era pra curar. Aí eu pensei que todas essas pedras roubadas cam ainda fazendo parte das células, do olho que vê, atrás da nuca, em cima do telhado de todas pessoas mineiras. Levaram nosso couro mas ele ainda vive? No fundo do fundo do osso? Mesmo que ostentadas nos anéis de doutores, ou em mo-edas de ouro no tesouro dozotro, é nossa pele essa pepita. Cristais minúsculos, estalactites, quartzo rosa, esmeralda verde da cor da taio-ba, mica brilhante esfarelando, veio sangran-do de malacacheta... minas gerais. Corpa pe-dra ao redor do mundo, ganhando caminho, se espalhando pra tomar tudim de volta. Nos-so sobrenome é a terra que nos pariu, água--marinha, turmalina, amazonita, ametista do meu coração. Sara essa ferida e revive o futuro de minhas ancestrais.carolina-turmalina-san.(Granito signica grão miúdo, é moio de fel-dspato, mica preta, quartzo cristalino e por aí vai pedra...)
96 \\\ SAMPA MUNDICarolina Teixeira SAMPA MUNDI /// Imagens: acervo pessoal
97SAMPA MUNDI ///Malokêras. Tinta acrílica sobre lona. Dimensão: 2,0m x 1,0m. Exposição Encruza. São Paulo, 2019.
99SAMPA MUNDI ///Sabotagem. Grati. Tinta acrílica, látex e spray. Graterritórios ZN – Sesc Santana. São Paulo, 2014.
100 \\\ SAMPA MUNDIQuem pariu a cidade? Grati. Tinta spray. Útero Urbe, residência artística. Salvador, 2015.
101SAMPA MUNDI ///Lascas da memória. Grati. Tinta spray.Útero Urbe, residência artística. João Pessoa, 2015.
102 \\\ SAMPA MUNDI
Mulungu. Corpa negra. Série de pintura em tinta acrílica sobre lona e bordados. Dimensão: 2,50m x 0,75m. Sesc Itaquera. São Paulo, 2016.Mulher palitando os dentes. Série Retratos do Mundo Flutuante. Tinta acrílica sobre tela. 2014-2016.
104 \\\ SAMPA MUNDIDerrama água de mulher. Grati. Tinta látex e spray. Capulanas Cia de Arte Negra, São Paulo, 2016.
105SAMPA MUNDI ///
106 \\\ SAMPA MUNDIPeriferia segue sangrando. Grati. Tinta spray. Ocupação Terra Livre. São Paulo, 2016.Cholas. Grati. Tinta látex e spray. Centro Cultural da Cidade Tiradentes, São Paulo, 2016.
107SAMPA MUNDI ///Sangria. Intervenção urbana. Tinta látex. Bairro Jardm Ibirapuera, zona Sul de São Paulo, 2017.Na minha casa você não entra. Série de sete panos de prato bordados. Exposição Encruza. São Paulo, 2019.
108 \\\ SAMPA MUNDI> Formação 2020 - Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Uni-versidade Federal do Espírito Santo (PPGA-UFES).2008 - Bacharelado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosoa, Letras e Ciências Huma-nas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).Minha principal formação como artista visual se deu através do movimento hip hop, de pe-dagogia não-formal.Prêmios e bolsas de estudo2019 - Prêmio Mulheres Resistência nas Artes. Câmara Municipal do Recife/PE.2018 - Bolsista da Capes para obtenção do título de mestre em Artes Visuais pela Universi-dade Federal do Espírito Santo (UFES).2017 - Prêmio Agente Comunitário de Cultura da Cidade de São Paulo. Secretaria Municipal de Cultura (SMC-SP).2012 - Bolsista PIBID no grupo de pesquisa Cidade, Infância e Juventude: Fotograa Pinhole como Recurso Didático em Ciências Sociais. Faculdade de Educação da Universidade deSão Paulo (FEUSP-USP).2010 - Coganhadora, junto com o Coletivo Sarau Elo da Corrente, do Prêmio Mais Cultura Literatura de Cordel, com a xilogravura produzida para o cordel “Saco Murcho e OutrasRimas Matutas”, de Zé Correia.
109SAMPA MUNDI ///Participação em exposições individuais (seleção)2017 - Corpa Negra. Sesc Carmo.Corpa Negra. Fábrica de Cultura do Capão Redondo.Peles da Cidade. Ocina Cultural Alfredo Volpi.2016 - Corpa Negra. Centro Cultural Jabaquara.2015 - Corpa Negra. Sesc Itaquera.2014 - Mural Sabotagem. Graterritórios ZN. Sesc Santana..Participação em exposições coletivas (seleção) 2019 - Encruza. Espaço Clariô de Teatro.Revista Fala Guerreira. Histórias das Mulheres, histórias feministas. Museu de Arte de SãoPaulo (MASP).Ocupação das Minas. Casa de Cultura de Hip Hop de Diadema.2017 - Nosotras Parimos, Nosotras Decidimos. Obra realizada com o Coletivo Mujeres CreAndo.Exposição: Histórias da Sexualidade. Museu de Arte de São Paulo (MASP).Grati no Encontro Estéticas das Periferias. Ação Educativa. Periferias de São Paulo/SP.2016 - Trama Sangre Buena. II Festival Internacional de Artes Feministas de la Ciudad deMéxico. UNAM/Cidade do México/ México.2012 - Não Sei se é Bonito, Mas Eu Gosto. Espaço Encena.2010 - Revestrés. Primeiro Encontro Cultural de Mulheres das Periferias. Mulher, Voz e Cul-tura. O poder da Ação e da Palavra. Exposição Coletiva. Centro Cultural da Juventude (CCJ).2008 - Trabalhos Selecionados. Exposição Coletiva. Mostra Cooperifa. CEU Campo Limpo.Integra os coletivos Periferia Segue Sangrando, 8M na Quebrada e Fala Guerreira, que pro-põem ações diretas em comunicação popular, intervenção urbana e encontros afetivos de mulheres periféricas.Realiza rodas cartográcas e ações de intervenção urbana coletivas com mulheres do Brasil e Abya Yala, discutindo pertencimento, território, corpo; pautada no desenvolvimento de uma pedagogia feminina e comunitária através da residência artística autônoma Útero Urbe.
SAMPA MUNDI ///
Na busca por mim mesma...> Por Danielle Regina de Oliveirafoto Eduardo Gorghett/Unsplash
112 \\\ SAMPA MUNDIReconhecer que todos temos lugares políticos que necessitam ser desvenda-dos, questionados e analisados mudaria a concepção de estudar somente “os outros”. Assim, para entrar nas próximas reexões, gostaria de apresentar-me como mulher branca-mestiça da periferia Sul. Os lugares sociorraciais que compõem essa minha busca têm a ver com os meus trânsitos de convívio, com os espaços sociais onde minha branquitude é pouco reconhecida pe-las pessoas, principalmente os lugares de maioria branquíssima onde minha mestiçagem se faz mais presente. E com outras convivências, em que minha branquitude é mais reconhecida, como em lugares com maioria negra. Essa percepção oscila muito. Essa busca também se relaciona com minha família: por parte de pai, sou de família nordestina e mestiça e, por parte de mãe, meus avós são brasileiros, mas lhos de portugueses e italianos. Desde o sertão da fome, migrante para trabalhar na “cidade das oportunidades”, à classe trabalhadora com casa pró-pria, que migrou dazeuropa, foi assim que nasci na periferia urbana e às vezes sou reconhecida parda, às vezes branca. Minha procura ilustra uma de tantas discussões sobre a condição de ser mu-lher da periferia, que é complexa assim como todos os pertencimentos, mas que para nós se torna prática política necessária na criação de coletividades diante das nossas diversidades e desigualdades. Isso faz parte dos ensina-mentos de mulheres afrodiaspóricas da periferia. Principalmente das minhas companheiras do Fala Guerreira1. Essa discussão é bem longa e reeti um pouco mais a esse respeito na minha dissertação de mestrado2, restando mais dúvidas do que certezas. 1Fala Guerreira é uma coletividade de, nós, mulheres periféricas que surge em 2015 através da produção de revistas, contemplada pelo edital VAI, que discute as re-alidades vividas por nós enquanto moradoras da periferia, principalmente sobre machismo e feminismo periférico. Aqui neste link pode encontrar algumas revistas publicadas por nós: https://issuu.com/falaguerreira2Danielle Regina de Oliveira, Encruzilhada das guerreiras da periferia Sul de São Paulo: feminismo periférico e fronteiras políticas, dissertação (mestrado em Sociologia), Unicamp, 2019.
113SAMPA MUNDI ///Através da pesquisadora Joyce Souza Lopes (2014) encontrei o termo branco--mestiço pela primeira vez e comecei a pensar na minha branquitude quando me reconheciam “ser parda”, pois “Se há o mestiço de características mais ne-gróides, em algum momento assimilado como pardo pelo movimento negro, há também o mestiço de características mais caucasianas, o que chamo de branco-mestiço” (p. 66). De outra maneira, não sentia pertencimento à bran-quitude em espaços sociais de gente branquíssima, mas reconheço minha branquitude. Assim esta autora abre a discussão para pensarmos hierarquias sociorraciais entrecruzadas contribuindo para nossa coerência política, nos atentando para os (meus) privilégios de cor: Muitas vezes o branco da periferia assume sua dose de negão, mas seu pri-vilégio é notório quando comparado ao preto que seja da periferia ou não. A branquitude não é irrestrita ou incondicional, é perpassada por outras ca-tegorias que a estruturam, ora de privilégios, ora de subordinação, contudo, seus méritos raciais são resguardados. (Lopes, 2014, p. 58)Há uma visão racista dominante sobre as identidades raciais; por outro lado, podemos discutir sobre identidades raciais antirraciais,, que podem con-tribuir para desmobilizar lugares raciais impostos pelo racismo antinegro e anti-indígena, sem perder de vista a historicidade e as memórias de violência colonialista branco-europeia. Diante da minha trajetória, consigo me reconhecer na proposta de Gloria Anzaldúa (2005), que reivindica uma nova consciência mestiça, que “a partir dessa ‘transpolinização’ racial, ideológica, cultural e biológica, uma consciên-cia outra está em formação – uma nova consciência mestiza, uma consciência de mulher, uma consciência das fronteiras” (p. 704). Mas que, na minha per-cepção, necessita passar por confrontos subjetivos e coletivos de privilégios e subordinações sociorraciais, sendo um constante questionar: “Exatamente o que ela herdou de seus ancestrais? Esse peso nas suas costas – qual a bagagem de sua mãe índia, qual a bagagem de seu pai espanhol, qual a bagagem dos anglos? Pero es dicil diferenciar entre lo heredado, lo adquirido, lo impues-to.” (p. 709).
114 \\\ SAMPA MUNDIREBELDIAS DAS MULHERES DA PERIFERIA SUL DE SÃO PAULO33Agradeço imensamente a Bruna Galichio e Alessandra Tavares pela leitura/revi-são do texto, pelo olhar atento e precioso, pelos sentipensamentos compartilhados entre nós que animam esse despertar rebelde. Para muitas pessoas a palavra “pesquisa” está ligada ao trabalho dos estudantes universitá-rios ou dos intelectuais. Perguntas e mais perguntas. O povo vai respondendo sem saber no que vai dar. O autor da tese apresenta e defende seu trabalho perante uma banca examina-dora da universidade. Geralmente é aprovado. Resolvido o problema do título e do status acadêmico, a tese vai para a estante ou se transforma em livro para ser vendido. O autor da tese que pesquisou tudo no meio do povo ganha dinheiro pela venda dos livros, através dos direitos autorais. Há até quem tenha prometido pagar metade dos direitos autorais para a mulher trabalhadora cuja vida foi publicada. Mas sabemos, segundo esta trabalhadora contou-nos, que nunca viu um cruzeiro sequer resultante da venda.O povo é estudado, medido, retalhado pelos estudiosos dos “problemas brasileiros”. E este mesmo povo não tem acesso às informações da pesquisa, aos resultados nais.As pesquisas são feitas sempre sobre o povo, dicilmente com o povo e para o povo. Por estas razões, nós, mulheres, não só estamos aprendendo a fazer pesquisa como estamos estudan-do os resultados e as respostas. Assim poderemos agir em nosso meio com mais segurança. Com uma pesquisa na mão vamos acertando nossa ação.Mulheres, Boletim Informativo, Zona Sul, Parque Figueira Grande, Capital, n.1, sem data, p. 12, pelo Grupo de Pesquisa-Ação, a Comissão: Adelaide R. Silva, Bernadette Alves, Maria A. Saraiva, Maria de Lourdes Oliveira, Neide Abate, Neusa Nunes Al-ves. “Arquivo do Fundo do Clube de Mães da Zona Sul”Não é recente a luta do povo da periferia contra o controle social das elites paulista-nas através, principalmente, do controle da produção do conhecimento nos espaços de educação formal, como as universidades. O trecho que abre nossa prosa é de uma pesquisa formulada pelos Clubes de Mães da zona Sul de São Paulo. Tratava-se de uma ação que consistia em levantar dados sobre a situação das escolas na região. O arquivo não tem data, mas pode ser referenciado nos tempos dos anos 1970 e 1980, quando
115SAMPA MUNDI ///4 Essa obra é um presente pro mundo, obrigada Jenyer, por ser essa subjetividade rebelde, doce, intelectual, que toca nossas almas de mulheres. Salve Jeny!5Através de uma entrevista concedida para a minha dissertação de mestrado, Ales-sandra Tavares formulou essa armação, desdobrando outras ideias importantes para se pensar periferia como relação epistemológica e que acredito estar inseridas numa perspectiva do sentipensar, a qual também desenvolvo na dissertação.esses grupos de mulheres transformaram a cidade de São Paulo e construíram nossas quebradas com mais dignidade. Tais mulheres da periferia, em sua maioria nordesti-nas, donas de casa, mães, migrantes na cidade de São Paulo, muito têm a nos ensinar sobre o que é movimento de quebrada e foram das primeiras a reivindicar o termo periferia como categoria de lutas sociais.Mulheres da periferia lutando e transformando a sociedade também é do tempo pre-sente: aqui gostaria de destacar caminhos de coletividades do feminismo periférico e de mulheres em sua diversidade sociorracial e de maioria negra, que podem ou não estar atreladas a essas coletividades feministas. Essa geração de mulheres, em grande parte, lhas daquelas/es que vieram para cá, muitas lhas de nordestinos e de gente que sabe cuidar da terra e, então, já nascidas na quebrada – somos periféricas.Arrisco dizer que a periferia Sul é uma terra fértil (Nascimento, 20144) de invenções políticas, de realidades transformadas e transformadoras, ao mesmo tempo em que (re)criam espaços-tempos cotidianos e resgatam legados sociais memoráveis. É um tecer entre passado, presente e futuro que redimensiona nossas vidas. A reexão nesse texto é um constante processo de trans-formação e re-criação que envolve minhas memórias político-intelectuais na periferia onde nasci e cresci, que é o Jardim São Luís/Jardim Ibirapuera, e nas caminhadas pelo mundo. Portanto, a periferia é para mim “uma estrutura de pensamento” (parafraseando Alessandra Tavares, 20185) e nessa perspectiva consigo respirar, criar, reviver e criticar narrativas. Hoje em dia há muitas pessoas que citam conceitos, mas que não buscam as ex-periências por trás deles. Como se uma palavra não fosse construída, como se não tivesse história. Palavras são histórias, ou melhor, disputa de histórias, memórias em conitos. Na minha dissertação, tentei perceber um pouco a história por trás dos “conceitos” ou “palavras”, como os termos periferia e feminismo. Confesso que não es-gotei este assunto, o que é impossível. Eu é que quei esgotada. Mas foi um primeiro
116 \\\ SAMPA MUNDIexercício muito interessante para perceber como nos impõem intelectos/lutas “sem memória”, ou ocultando que são de determinadas memórias.Por isso, a seguir escolhi algumas experiências da periferia Sul que cruzaram meu ca-minho e me zeram chegar a narrativas que pudessem comunicar minhas memórias.A periferia, enquanto movimento político-intelectual, é fertilizada por mulheres que a habitam, e isso é importante destacar. Pois muitas vezes, quando se diz periferia, ainda brotam no imaginário das pessoas as imagens masculinas (também estereoti-padas e que necessitam mudar). De outra maneira, lutas coletivas que têm espaços ocupados por uma maioria negra, carregadas de ensinamentos da diáspora africana, modicam completamente a nossa revolta coletiva. Não é uma questão meramente quantitativa – os números enganam a qualidade e a força dos processos sociais. Mas trata-se de presenças, dedicação, criatividade, intelectualidades, agir político que enfrentam a racionalidade branca ocidental. A isso corresponde acessar perspectivas anticoloniais, ter acesso a centros de sabedoria, aprendizagem e criação artística como, por exemplo, a Cia Capulanas de Arte Negra, uma das primeiras coletividades de mulheres negras em nosso ter-ritório, que inuencia fortemente as coletividades de mulheres periféricas, em sua maneira de agir e losocamente; assim como o Mjiba, organização primordial de publicações intelectuais de mulheres negras da periferia paulistana/mundo e funda-mental no enfrentamento ao machismo do Movimento Cultural das Periferias.Gosto de pensar a periferia por meio de (re)territorialidades (Haesbaert, 2004), que podem ser entendidas como processos sociais de identidades (re)construídas pelos trânsitos de territórios. Portanto, o território é considerado vivo e imerso nas rela-ções de poder, não é só espaço estático ou físico, mas aberto aos conitos sociais, dinâmico, criativo (Santos, 1999). Pensando nas quebradas daqui, vivemos essas (re)territorialidades, por exemplo a dos anos 1970 e 1980, pela migração nordestina/rural (e a bagagem mais além-mar que isso signica). Esses trânsitos chegam à periferia urbana em memórias, modos de viver, fé e religião, culinária, losoas, costumes, ações políticas, interesses sociais etc. Assim, os bairros da periferia podem ser considerados lugares de memória “não paulistanas”, ainda que sejam esta “paulistaneidade”. Além da imigração estrangeira, em sua face forçada ou não, de africanos, europeus, asiáticos, que data do século XIX, e como aqueles imigrantes se reterritorializam no Brasil e na cidade de São Paulo.
117SAMPA MUNDI ///A periferia urbana é então espaço produzido por grupos sociais, e não somente um pedaço de terra urbanizado e subalternizado, como é evidenciado em muitas nar-rativas. Há processos ativos de grupos sociais subalternos, que constroem a cidade com suas memórias e estilos de vida. O Movimento Cultural das Periferias (MCP) é uma experiência dessas memórias subalternas/populares/periféricas/afroperiféricas (Salomão, 2016), seja pela produção cultural, na publicação de livros, seja em deba-tes públicos, intervenções em escolas, espaços comunitários etc. Exibindo ao mundo nossas memórias nordestinas, rurais, indígenas, africanas e afro-brasileiras, ao mes-mo tempo produzindo críticas anticoloniais que aparecem no cotidiano periférico expressando autonomia político-intelectual (Salomão, 2016).Periferia urbana como território de encontros. Território de fronteiras. Subjetividades rebeldes em orescimento cotidiano. Revolta diária que se encontra coletivamente.As coletividades de mulheres periféricas, principalmente as do Jardim São Luís e Jardim Ibirapuera, foram inuenciadas fortemente pelas Cia Capulanas de Arte Negra6 e Mjiba7.Não consigo trazer a totalidade de suas ações, mas gostaria de me concentrar no ano de 2013, que foi o do nascimento do espetáculo Sangoma: saúde às mulheres negras,e do livro Pretexto de mulheres negras. Esses acontecimentos (citados em entrevistas 6Capulanas Cia de Arte Negra existe desde 2007, e é composta por Débora Marçal, Adriana Paixão, Priscila Obaci e Flávia Rosa, são “quatro artistas negras periféricas que fomentam e buscam transmitir em seus trabalhos toda a grandeza da heran-ça cultural dos povos africanos da diáspora. Por meio das artes, desejam dialogar com a sociedade sobre as percepções, descobertas, olhares e condições impostas às mulheres negras. Compreendemos a urgência em desenvolver outro olhar para as mulheres negras, fortalecendo seus reais valores, rompendo com estereótipos enraizados culturalmente e viabilizando meios de autoconhecimento e reconheci-mento em seus espaços de convivência.” (Capulanas, 2015, p. 13).7Mjiba é um conjunto de projetos, dentre eles faz edições de publicações de livros de mulheres negras, e “foi criado em 2004 por Elizandra Souza, Elisângela Sou-za e ais Vitorino, moradoras do Grajaú, periferia Sul, que ao se encontrarem em eventos de hiphop perceberam ‘a invisibilidade e ausência do protagonismo de mulheres negras nos palcos’, e a partir disso organizaram eventos com grupos femininos de rap, que tiveram cinco edições, sendo a última edição comemorativa de dez anos de atuação (2014).” (Oliveira, 2019).
118 \\\ SAMPA MUNDIconcedidas a mim) são considerados como importantes para a construção das lutas do feminismo periférico e sua “explosão” de coletividades no ano de 2015 aqui na periferia Sul. Sangoma é um espetáculo teatral idealizado, produzido e realizado pela Cia Capula-nas de Arte Negra e que foi relembrado pelo seu ensinamento de vivenciar o femini-no pelo cuidado espiritual. A palavra Sangoma é originária da civilização/povo Zulu da África do Sul e que remete à ideia de guardiãs espirituais de uma comunidade; parafraseando as Capulanas, poderíamos comparar o espírito Sangoma com as ben-zedeiras e curandeiras, “presentes em muitas comunidades periféricas das cidades brasileiras. Normalmente são mulheres e com imensa sabedoria e respeito e desen-volvem o mesmo papel das Sangomas africanas, que é o de cuidar e proteger as pes-soas do bairro.” (Capulanas, 2015, p. 18).Pretextos de mulheres negras é uma antologia de poesias de vinte mulheres negras, organizada por Carmen Faustino e Elizandra Souza, e apresentado por elas assim:Quando armamos a intuição, somos portanto, como noite estrelada:tamos o mundo com milhões de olhos”(Clarissa Pinkola Estés), écom essa urgência que nasce a antologia Pretextos de Mulhe-resNegras, uma das ações do Coletivo Mjiba (...), no qual registra a poesia de vinte mulheres ne-grasda Cidade de São Paulo e as escritas das convidadas Queen NzingaMaxweell (Costa Rica) e de Tina Mucavele (Moçambique), na intençãode religar os nossos vínculos ancestrais e também escrever a melodiados nossos próprios ritmos. (Faustino e Souza, 2013, p .6).Há a reterritorialização da ancestralidade africana que dialoga através da criação de espaços de convivência, em debates, festas, formação de professoras, além da materia-lização dessa sabedoria-vivência pela escrita, por vídeos, espetáculos, entre outros. São mundos sendo (re)criados pela coexistência criativa e pelo transbordar de memórias. Com Anabela Gonçalves (2018) podemos também perceber essa reterritorialidade nos círculos de mulheres, em seu texto que menciona a importância das Ialodês e Gueledés8 na periferia Sul como referência de legados de feminilidades potentes:8Ialodês, que signica “senhora encarregada dos negócios públicos”, era uma associação feminina cuja dirigente representava os interesses de mulheres comerciantes, ou seja, era atrelada à questão de bens materiais; Gueledés seriam associações femininas de trocas simbólicas, com rituais envolvendo a fertilidade e fecundidade, atrelados ao poder feminino (rf. Gonçalves, 2018).
119SAMPA MUNDI ///Nesse contexto temos nossas Ialodês e nossas Gueledés. Acredito que os círculos femininos são em forma de nossos Gueledés, formas de encontro que nos remetem a nossa ancestra-lidade e formas de cultivar a vida dentro do sistema ocidental de forma alternativa, com processos de cura, religare com nossas heranças ancestrais e retomada da força feminina existente em nossa história9. Há a reconstrução de um feminino insubmisso, presente em nossas narrativas/memó-rias, valorizando histórias de mulheres do nosso bairro, da nossa família, reconhecendo sentidos de poder e luta coletiva para as trajetórias individuais de cada uma. Em 2015 foram criados dois espaços de mulheres: o Núcleo de Mulheres Negras e o Periferia Segue Sangrando, que consistiam em círculos de mulheres pautados sobre-tudo na concepção de justiça restaurativa. No mesmo ano, se levanta também o Fala Guerreira, que tem em sua participação mulheres desses círculos, com objetivo de produzir revistas através do encontro de mulheres da periferia que queriam pensar, discutir, escrever sobre suas vidas e criar comunicação de quebrada, inspiradas pelas estratégias e vontades de nós mesmas. Interessante é perceber neste percurso que a palavra feminismo pouco era citada entre nós ou, se era, era constantemente questionada. E a partir deste questionamento nos descobrimos de múltiplas maneiras como mulheres periféricas. Esse descobrimento, que é permanente, tornou-se um processo de cura coletiva e de subjetividades rebel-des; nos encontrar para criar era delicioso. Nossos feitiços, sonhos, magias, danças, poesias, gritos e silêncios, choros e gargalhadas, sentipensamentos invadem lugares em que jamais pensaríamos estar, e estamos, estamos presentes para nós mesmas e para o mundo. Tenho uma grande curiosidade de saber como surgiram os processos sociais, de como era aqui nossa quebrada; enm, minha mente ca a milhão pensando em nos-so passado recente e meu coração pulsando para descobrir nossas memórias. Uma 9Anabela Gonçalves concedeu a honra de publicar seu texto na íntegra em minha dissertação de mestrado, que está como anexo.
120 \\\ SAMPA MUNDIdas minhas inspirações intelectuais é Ana Paula S. Correia (2015), mulher negra periférica que com seu mestrado inaugurou, acredito eu, a mistura entre feminismo e periferia. Sua pesquisa mostrou a potência dos Clubes de Mães da zona Leste e como aquela região foi construída pelas lutas dessas mulheres. Com essa leitura, ganhei direção para poder pes-quisar também, me senti representada e com ganas de buscar conhecimento sobre as mu-lheres da periferia de onde nasci, da zona Sul zona show. Mais do que isso, a crítica de Ana Paula Correia ao feminismo hegemônico veio ao encontro das discussões que estávamos fazendo aqui no bairro entre nosostras. Seu trabalho foi e é fundamental para entender as relações de poder que o feminismo paulistano construiu para ocultar as lutas de mulheres da periferia Leste, principalmente sobre a criação da rede de enfrentamento de violência contra a mulher. Foi então que fui atrás dos Clubes de Mães da zona Sul e encontrei um tesouro no Cedem (Centro de Documentação e Memória da Unesp): 13 caixas repletas de memórias. Acessan-do os arquivos dos Clubes de Mães da zona Sul, tive a certeza de que essas movimentações que vivemos hoje em nossos territórios periféricos e em nosso sentipensar de quebrada têm um passado ocultado e presente em nós. Tem coisa que não somente se “explica”, mas que nos surpreende, nos faz sentir, nos faz agir, viajar no tempo. Articula tudo isso, não limita nossa intelectualidade, mas a expande.Nos anos 1970 surgiram esses clubes no interior da igreja católica, que nessa época viveu seu auge com a Teologia da Libertação e suas ações em territórios como as periferias urbanas e áreas rurais. Esses clubes de mães, no caso de São Paulo – pois era um movi-mento em toda América Latina – reuniam mulheres donas de casa, principalmente as esposas de operários e sindicalistas, e tinha como propósito ensinar artesanato, “coisas de mulher” e o evangelho. Essas mulheres modicaram a proposta dos clubes; diante de um contexto da ditadura militar, os clubes de mães politizaram o cotidiano das periferias urbanas, especialmente através da experiência de ser mãe e dona de casa diante de um golpe civil-militar no país. Iam de casa em casa fazer mobilização popular e zeram uma pesquisa em domicílio com milhares de famílias, investigando o alto custo de vida que o regime militar trouxe com suas imposições político-econômicas. A essa ação chamaram de Movimento Custo de Vida (MCV) e depois mudaram seu nome para Movimento Contra a Carestia. Essa mudança de nome foi, na verdade, uma virada de direção política, quando homens de partidos políti-cos da esquerda, usurparam o MCV; as sementes de rebeldia plantadas pelas mãos dessas mulheres tiveram sua colheita ceifada por outras mãos. Um roubo militante? Isso existe?
121SAMPA MUNDI ///Continuidade ou descontinuidade? Não sei, podem dar muitas justicativas, mas, quando me inteirei da história, vi que essa prática de apropriação da luta, esforço e dedicação de outras pessoas, e a mudança de nomes, está presente nas quebradas desde muito tempo ao reclame de fazer política para instituições como partidos políticos. Tomara que aprenda-mos com o que passou ou com o presente.Como pesquisadora periférica, tentei mostrar um pouco da história dessas mulheres na minha dissertação, as magnícas contribuições que zeram nas relações sociais de gênero e o legado que nos deixaram enquanto movimento urbano-periférico, que pouco foi legi-timado na história dos movimentos sociais paulistanos. Em 1979 foi quando destroçaram a mobilização popular do MCV à custa do instituciona-lismo; os clubes de mães da zona Sul tiveram outra fase política, canalizaram suas forças aos encontros de mulheres na periferia. Pelos arquivos, esses encontros foram até 1986 e aconteceram no Campo Limpo, na região de Itapecerica da Serra, Taboão da Serra, Capão Redondo e Vila Remo. Esses encontros se deram, sobretudo, depois da participação dessas mulheres nos Con-gressos da Mulher Paulista e dos incômodos diante da organização feminista. Observo também que ocorreu a construção de autonomia política pela elaboração de suas próprias pautas em relação às condições de mulheres periféricas, sem que se rotulassem como fe-ministas ou não, mas interessadas em seu próprio repertório feminino.Quem era ou não feminista? Eis a questão que atravessava cenários nacionais e internacio-nais, regado por águas disputadas. Por meio dessa pergunta, houve a invenção conceitual que separava o movimento de mulheres e o movimento feminista. Essa separação, para além de uma “suposta” liação ou “consciência” política, acredito que se ampara na discrimi-nação de mulheres pobres, negras, sindicalistas, rurais, por mulheres brancas, de classe média e universitárias daquele período (por volta dos anos 1980). As mulheres da periferia eram referidas como participantes de “movimento de mulheres”.Observando essas narrativas fundadoras do feminismo paulistano, consigo enxergar o quanto essa separação foi uma imposição; a de que “mulheres” têm uma experiência uni-versal, generalizando um tipo especíco de mulher, o que deixava de fora as lutas relacio-nadas às condições de mulheres periféricas, ou seja, lutar por creches, por melhorias no bairro, por transporte público, por educação e saúde de qualidade. Tais lutas não foram consideradas pautas feministas e estiveram dissociadas das relações e das lutas relacio-
122 \\\ SAMPA MUNDInadas a gênero (pautas sobre aborto, divórcio, valorização da força de trabalho feminina, direitos reprodutivos, violência contra mulher, trabalho doméstico). Entretanto, na minha visão, eram pautas que não se distanciavam, mas que se aproximavam muito. Mas talvez “as feministas” necessitassem mais de conceitos e discursos do que de práticas e atitudes para reconhecerem que as demandas de mulheres se encontravam relacionadas.Imagino como as mulheres da periferia da época se sentiram. No meu caso, senti muita revol-ta ao ler tais armações, pois percebi como as experiências rebeldes de mulheres periféricas foram desvalorizadas do ponto de vista das transformações de gênero em nosso país, princi-palmente com relação à nossa participação em movimentos sociais. Depois de ter escrito uma dissertação de mestrado reivindicando o termo feminismo periféri-co, e de ter armado que nossa luta também pode se chamar feminista, me coloco em dúvida. Recentemente tive contato com um texto de Yasnaya Elena Aguilar Gil (2020), escritora e pensadora mixe (povo originário do México), que questiona essa busca pela validação dos termos, principalmente a lógica de que os estudos acadêmicos estão impregnados, e às vezes caímos na armadilha e nem percebemos – somos capturadas. Pois bem, a ideia da autora é que há conceitos, palavras, experiências que podem não corresponder a contextos distintos daqueles que nasceram de outras manifestações de vida. Citando a autora, “nem toda movi-mentação de mulheres é feminismo, e nem toda poesia é literatura”. Isso me tocou profun-damente e quei pensando que talvez as lutas na periferia Sul possam ter outros nomes e nomear e validar essas lutas em uma perspectiva alheia ou distante possa nos atrapalhar. Acredito que isso já é dito há muito tempo pelas mulheres africanas quando refutam o ter-mo feminismo e forjam outras maneiras de identicar o poder de suas lutas femininas e seu contexto – como o mulherismo africano. Será que aqui poderíamos pensar nesses caminhos? Quais são as histórias em que nossos masculinos e femininos foram sendo constituídos?Lélia Gonzalez foi uma intelectual brilhante que despertou em mim descobertas sociais profun-das; quando me deparei com o texto em que ela cria o termo Amefricanidade (1988), dimensio-nei como os nomes carregam conitos sociais e o quanto precisamos estar atentas a eles.Aqui na periferia Sul, as coletividades de mulheres e as trajetórias individuais/familiares im-pulsionam nossos vínculos comunitários; a proteção das vidas nesse lugar onde a violência é permitida e promovida pelo Estado, cria(ra)m projetos educativos autônomos; mães e donas de casa transformam o bairro como espaço político; maternidade política cotidiana. Resta saber quais caminhos queremos continuar seguindo, sentir a dor e a alegria dos processos, cair e levantar. Mas construir nossas realidades sem sermos capturadas. Não sei.
123SAMPA MUNDI ///> Referências bibliográcas:Fundo dos Clubes de Mães da Zona Sul – Centro de Documentação e Memória da Universidade Esta-dual Paulista (Cedem/Unesp).ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza: rumo a uma nova consciência.Revista Estudos Fe-ministas, v. 13, n. 3, p. 704-719, 2005.CAPULANAS Cia de Arte Negra. Mulheres líquido: os encontros uentes do sagrado com as memó-rias do corpo terra. São Paulo: Edição Independente, 2015.CORREIA, Ana Paula S., Mulheres da periferia em movimento: um estudo sobre outras trajetórias do feminismo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). EFLCH, Unifesp, Guarulhos, 2015.FAUSTINO, Carmen; SOUZA, Elizandra. Pretextos de mulheres negras.São Paulo: Mjiba, 2013.GIL, Yasnaya Elena Aguilar. La validacion como captura, El País, 19-abr-2020, México. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/04/19/opinion/1587329573_401539.htmlGONÇALVES, Anabela. A experiência de coletivo de mulheres: mulheres em círculo. (2018) In: OLI-VEIRA, Danielle Regina de, Encruzilhada das guerreiras da periferia Sul de São Paulo: feminismo periférico e fronteiras políticas, dissertação (mestrado em Sociologia), Unicamp, 2019, p. 260-265.GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988.HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade.Porto Alegre, 2004. Dispo-nível em: http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdfLOPES, Joyce Souza. Branco(a)-mestiço(a): problematizações sobre a construção de uma localização racial intermediária.Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 6, n. 13, p. 47-72, 2014.NASCIMENTO, Jenyer. Terra Fértil. São Paulo: Mjiba. 2014.SALOMÃO, Salloma. Que cidade te habita? Sampa negra: periferia, contracultura e antirracismo. Revis-ta Observatório Itaú Cultural. São Paulo, n. 21, p. 130-163, 2016.SANTOS, Milton. Território e dinheiro. Revista GEOgraphia. Niterói: programa de Pós-Graduação em Geograa - PPGEO - UFF/AGB, v.1, n1. p. 7 a 13, 1999.
No chão da roda, pintando horizontes:> Por Elizabete Oliveira SAMPA MUNDI /// ARTE E SUBJETIVIDADE NAS ESCOLHAS DE UMA EDUCADORA PERIFÉRICA
Há 29 anos sou educadora da rede pública de São Paulo. Meu caminho por esses trilhos creio que começou vendo minha mãe escre-ver em pequenos pedaços de papel de pão quando eu ainda era criança. O papel ama-relado parecia envelhecido. Dona Leonor, minha mãe (in memoriam), naquele papel amassado pelo uso, treinava palavras soltas e também sacramentava as contas do mês.Leonor Alves de Oliveira, nascida em 1922, neta de avó indígena e avô branco, semi--analfabeta, foi empregada doméstica até os 79 anos. Me contou que aos sete anos meus avós a tiraram da escola para que fosse ajudá--los no corte de cana: não falo do nordeste, essa São Paulo rural ca no extremo sul da capital de São Paulo, bairro Cipó, distrito de Embu-Guaçu.
126 \\\ SAMPA MUNDIMinha mãe, talvez para aliviar a sua dor, amaciava o roteiro armando que sua profes-sora, por dó, ia a sua casa para lhe ensinar a escrever. O básico para sua comunicação, ela de fato aprendeu. Com os olhos marejados de quem gostaria de voltar no passado e fazê--lo cção, me contou que pegava gravetos e cava treinando o alfabeto no chão da roça.Quando moça, migra para a região de Santo Amaro, onde nca suas raízes. Do trabalho na roça para o trabalho em casas de famílias. Desenha-se dessas cenas o nascimento de meu legado no mundo das escrevivências, como diz Conceição Evaristo. Não tínhamos livros em casa. Meus primeiros, de uma pa-troa de minha mãe, eram três livrinhos de contos infantis. Lia e relia. Dessas leituras comecei a escrever pequenos contos, devia ter uns nove anos de idade. Mas... o que é mesmo socialismo? Lembro-me de que, mais ou menos com 12 anos de idade, minha mãe trabalhava na casa de um homem cuja casa era enorme e tinha uma biblioteca; sempre eu pedia para minha mãe que me deixasse tirar o pó desse cômo-do mágico. Certo dia, vi um conjunto de três livros pequenos e nos e um deles, de capa azul escura, tinha gravado em letras doura-das envelhecidas a palavra “Kibutz”. Resolvi abrir e ver do que se tratava e achei incrível existir um lugar em que as pessoas viviam comunitariamente, e ali todos podiam traba-lhar na terra e todos tinham suas casas. De-pois de muitos anos fui saber que os kibutz eram comunidades agrárias israelitas, funda-das no início dos anos 1920.A invisibilidade legada à minha mãe, mulher, viúva, com quatro lhos e semianalfabeta, em-pregada doméstica, a carência material a que estávamos submetidos, deixou marcas, e com certeza foi também o que me aproximou desse cenário de luta, resistência e insistência. É na quebrada, nos espaços pautados pela ausência do Estado, que nasce a urgência de sermos.Outras vivências irão dar outro tom para tal en-redo. Anos 1980: muitas lutas nas ruas pela re-democratização do país. O lema era “Diretas Já”. O local que me acolhia era o Grajaú, bairro periférico da zona Sul da capital, formado por diversos outros bairros, inclusive muitos à margem da Represa Billings.A periferia, sendo local de abandono, é, aci-ma de tudo, espaço de resistência, e o bairro Grajaú nos anos 1980 já buscava meios de sobreviver a tal abandono. Movimentos po-pulares organizavam-se: encontro de traba-lhadores em salões de igreja, organização de sindicatos, organização de mulheres, alfabe-tização de adultos, entre outras pautas.A Casa da Mulher do Grajaú foi um espaço político, reconhecido internacionalmente. Ali se edicava a prossionalização de mu-
127SAMPA MUNDI ///lheres, a luta pelo direito de suas crianças à creche, a reexão sobre a saúde e direitos reprodutivos, métodos de contracepção e os cuidados na prevenção das DST’s. A ausência do poder público sempre foi a força motriz para tal engajamento. No Jardim Lucélia, um bairro pertencente ao Grajaú, iniciou-se um projeto de alfabetiza-ção de adultos no período noturno, ofereci-do sobretudo a trabalhadores. Os voluntários eram preparados pelo MOVA (Movimento de Alfabetização de Adultos). Este projeto tinha como pauta os princípios da pedagogia Frei-riana: o contexto social em que o educando estava inserido seria o mote para o processo de alfabetização. Fui voluntária nesse projeto e, até então, não aspirava ser professora.Na Ilha do Bororé, outro bairro na região do Grajaú, vivenciei manifestos e acompanhei a organização inicial da Ecoativa, organiza-ção não governamental que buscava meios Retratos Dom DuarteFoto: Elizabete Oliveira
128 \\\ SAMPA MUNDIde preservar a região, margeada pela Represa Billings. Eduardo Freire, educador social e morador da Ilha, foi quem gestou o projeto. É importante ressaltar que a Ecoativa ainda existe, sendo um espaço de ação de jovens da região que se engajaram promovendo ali ati-vidades diversas, inclusive culturais.Grajaú é tudo isso e muito mais! Este bairro me acolheu e foi nele que de minhas raízes saíram brotos, ali tive minhas duas lhas.Em 1991, já cursando o bacharelado em Ciên-cias Políticas e Sociais, adentrei “os muros da escola” e iniciei meu percurso na rede pública de educação. Mais uma vez, o palco foi o Gra-jaú. Desde então, são 29 anos percorridos na educação pública e os conitos entre o que que-rem de mim, o que eu acredito e o que coloco em prática são conitos reais e permanentes...Com todos esses anos de estrada, tenho mais incertezas do que certezas. De um lado, há a pressão externa, que impregna e pauta, na maioria das vezes, as ações dentro da esco-la. Uma visão fundamentada na ideologia da meritocracia, da educação que deve ter como objetivo garantir ao aluno a continuidade de seus estudos no ensino superior, capacitá-lo para o mercado de trabalho, vestibular etc. Uma escola conteudista e descontextualizada da realidade do aluno. Essa é a mentira que sustenta ideologicamente a escola pública. Raras são aquelas que conseguem construir um Projeto Político Pedagógico minima-mente coerente com a realidade local, em que haja o exercício do diálogo, da escuta. Mas, qual aluno essa educação com tais obje-tivos pretende atingir? Quem tem um olhar crítico e apurado a respeito das desigualda-des de nossa sociedade sabe a qual grupo so-cial essa educação se dirige. De um lado, os herdeiros de privilégios; do outro, os herdei-ros da saga da migração do Nordeste para o sudeste, os herdeiros de ancestrais dispersos e escravizados na diáspora, os herdeiros de pais analfabetos, malremunerados e desqua-licados diante da ótica capitalista. De um lado, os que vão mandar; de outro, os que de-vem obedecer. Não é fácil o percurso do professor ou pro-fessora que deseja uma prática mais coerente e humana. Quem busca essa coerência acaba vivendo muita solidão no ambiente escolar...Cabe ao educador e educadora saber qual a sua intenção, o que pretende, já que nenhu-ma prática é neutra ou destituída de valores e ideologias.Resgato a reexão de Selma Garrido Pimenta (2010) “o trabalho docente está impregnado de intencionalidade, pois visa à formação hu-mana por meio de conteúdos e habilidades, de pensamento e ação, o que implica esco-lhas, valores, compromissos éticos”.Diante de tantas contradições, incoerências, pressão que sofremos cotidianamente, ape-sar das incertezas, uma certeza eu tenho: de-sejo, seja qual for minha ação diária, olhar meu aluno e minha aluna nos olhos, vê-los além do que possam conquistar em notas,
129SAMPA MUNDI ///números, satisfatórios ou insatisfatórios. Pre-cisamos, eu e eles e elas, nos tornarmos mais humanos a cada dia, precisamos ser felizes dentro da escola.Não dá pra ver educando feliz, sentado por cinco horas, ouvindo passivamente um professor e torcendo para que dê o si-nal, e seja então o estampido da sirene to-cando, a autorização para seu sentimento de liberdade.É preciso que essas cinco horas não sejam de lamento, de aprisionamento. É preciso tornar essa vivência colorida, alegre, quentinha ou com cheiro de brisa fresca. Não vejo possibilidades de a escola sozinha conseguir transpor tantos limites e paredes. Em minha prática pedagógica, não abro mão de uma aula sentada no chão em círculo onde todos possamos estar próximos; não abro mão de usar os espaços da escola além da sala de aula. Que seja o pátio, e melhor ainda se for ao ar livre, embaixo de uma ár-vore, no jardim. Como diz Caetano, “gente nasceu pra ser fe-liz e não pra morrer de fome”. Então, que bus-quemos essa felicidade...Na concepção que tenho de escola, nela tem que entrar a arte e sua diversidade de linguagens. Vou a um show, procuro o grupo ao nal, me apresento e peço para irem até minha esco-la e se apresentar para os alunos; já produzi eventos em escolas em que a direção, par-ceira, conseguia dar uma ajuda de custo aos convidados. Sei da importância do artista, de seu trabalho e do tempo, energia, conhe-cimento e gastos gerais que são despendidos em cada processo criativo; mas, se não con-tar com uma participação “na boa”, de quem possa, nada acontece.Estabelecer parcerias é fundamental. Pesso-as felizes, com a alma alimentada de alegria, calmaria, energia: tem algo melhor?Coloco música celta, renascentista, chorinho ou sons de pássaros durante a aula e sempre digo: vocês não precisam colocar para ouvir em casa, mas, precisam ouvir, conhecer e, se gostarem, aí sim, irão ouvir em casa. Ficar em silêncio e viajar em slides sobre os reinos africanos do Benim, quem não gosta? Assim foi, quando levei para a escola o mo-çambicano Osvaldo Frederico Inlamea, na época doutorando na Universidade de São Paulo – USP, para conversar com os alunos.Por que falar só da fome no continente afri-cano, se podemos ouvir sobre a beleza do continente e seu vasto deserto da Namíbia? Outro amigo meu, Aponto Té, de Guiné-Bis-sau, discorreu sobre os espaços urbanos do continente, pontos turísticos, entre outros. Professoras e professores devem falar? Sim, mas devemos nos despir dessa ideia de que devemos saber sobre tudo e dominar todos os assuntos. Ouvir outras pessoas que não
130 \\\ SAMPA MUNDIGrupo RetradosFoto: Elizabete OliveiraMaitê e AgnisFoto: Elizabete OliveiraBete sozinha na sala de aulaCrédito: Vanessa Lameira
131SAMPA MUNDI ///sejam do convívio cotidiano é um exercício amplo de crescimento, escuta e trocas.Sentamos na frente da TV e nos indignamos com notícias sobre violência contra as mu-lheres: por que não trazer um coletivo femi-nista para dentro da escola e bora bater um papo sobre a temática? Assim foi com o cole-tivo Atreva-se, Nomear para Combater. Através de rodas de conversas, jogos e brin-cadeiras, conceitos são questionados, redi-mensionados e ações propostas.Por que a escola critica o funk, se nada além é apresentado? Pensando em propiciar o contato com outros estilos musicais, já levei para a escola o grupo de chorinho Conjunto Retrados, um grupo incrível da zona Sul que tem um repertório de clássicos do chorinho. Imaginam o que seja 16 salas de aula do período noturno, com uma média de 45 alunos, todos no pátio assistindo ao show? Isso não tem preço, é um momento único de leveza e felicidade!E por que não ouvir um regente de percus-são? Estranho, não imaginava que existisse um maestro para ritmos percussivos. Através de um aluno, soube que na escola em que ele estudava música tinha um maestro de per-cussão... boa! Entrei em contato, z o convite. O dia da apresentação foi marcado. Fiz um release da vida do professor e antes do mes-mo subir ao palco, li para os alunos de quem se tratava: Mestre Dinho Gonçalves (quem não conhece, vale procurar) levou seis dos seus alunos e nós assistimos a uma regência de percussão. Dia que jamais será esquecido.A maioria dos alunos e alunas das escolas públicas e periféricas de São Paulo são de origem nordestina; assim, as rodas de corde-listas, saraus e apresentação de seus livretos são meios de valorizar a cultura e estimular a leitura entre os alunos da Educação de Jo-vens e Adultos (EJA). Os poetas com os quais z parceria foram Varneci Nascimento e João Gomes de Sá.Fui coordenadora pedagógica na rede públi-ca estadual por seis anos, o que me possibili-tou realizar tais atividades no período notur-no com mais autonomia.Todos os anos os professores de SP fazem gre-ve e por que não fazer uma reposição de aulas em que a proposta pedagógica seja de vivên-cias artísticas em muitas manhãs de sábados? Lancei a proposta no Facebook, pedi para artistas que apoiassem a greve do magistério se dispusessem a apresentar seu trabalho, sua arte para a comunidade. Que ótimo! Cho-veram propostas. Tivemos ocina de teatro de sombras, grate no muro da escola, dois monólogos e uma peça de teatro, cujo grupo chegou com camionete, cenário e, num passe de mágica, um pátio sem graça e enfadonho tornou-se um lugar de contato com a obra de Carolina Maria de Jesus, com apresentação do grupo de teatro Companhia dos Inventi-vos. Todas essas atividades foram comparti-lhadas com alunos e famílias.
132 \\\ SAMPA MUNDIE um sarau com poetas convidados? Os Ca-rolineadores do Quinta Musical, poetas de um sarau da zona Sul, foram numa tarde na escola e o sucesso foi total. No princípio os alunos estavam tímidos, espalhei alguns li-vros entre eles e logo havia dezenas de mãos levantadas querendo subir ao palco...Não acredito na vida sem arte e não creio que a escola deva ser apenas um espaço sem feli-cidade, ou um espaço apenas do silêncio, da concentração, da seriedade. Somos múltiplos e a arte é múltipla.Creio na parceria entre escola e comunidade e, sobretudo, nas relações ali estabelecidas. Das subjetividades que se revelam, é possível saber-se na individualidade e reconhecer-se no coletivo.Audre Lorde, em seu livro irmã outsider, dis-corre sobre como o patriarcado branco oci-dental nos impõe uma compreensão segrega-da de nós mesmos. Seria como se fôssemos o conjunto apartado de emoção e razão, para, assim, ser mais fácil o controle:“Mas, o que dizer do ‘conito’ entre poesia e teoria, entre suas esferas aparentemente se-paradas e incompatíveis? Disseram-nos que a poesia expressa o que sentimos, e a teoria ar-ma o que sabemos; que o poeta cria a partir do calor do momento, enquanto o teórico é, inevitavelmente, frio e racional; que a poesia é arte e, por isso, experimentada ‘de forma sub-jetiva’, enquanto a teoria é erudição, conside-rada conável no mundo ‘objetivo’ das ideias. Disseram-nos que a poesia tem alma e a teoria tem mente, e que precisamos escolher entre elas” (LORDE, Audre, 2009, p. 12).Para mim, a construção do conhecimento é constante, contínua e se dá em qualquer es-paço. Não há hierarquia entre a escola e a praça da esquina. Onde houver pessoas que exercitem a escuta, onde houver diálogo, há aprendizagem. Assim ocorre com os instrumentos objetivos ou subjetivos que serão utilizados nesse pro-cesso de apreender a realidade, apreender o outro. Não existe hierarquia entre livros di-dáticos e um cordel do poeta nordestino.Não existe hierarquia entre o discurso de um professor ou professora e a escuta de “É proi-bido proibir”, de Caetano Veloso. Ambas as linguagens levam à construção de muito co-nhecimento!!Entre tantas incertezas, essa é a maior certeza que possuo enquanto educadora: a vida está dura, o angu está ralo, mas, no “ajuntamento de gentes”, tudo ca mais fácil.Termino com um poema da poeta Zainne Lima da Silva, que para mim expressa esse sentido de estar nesse chão e fazer desse ofí-cio minha contribuição. Zainne não foi mi-nha aluna, mas pertence à mesma geração dos que o foram. Num texto que fala de arte e sentido, empresto a voz dela, que também é a minha, pra apontar continuidade nesse ca-minho que z e faço.
USUCAPIÃOensinaram-me o direito fundamental inalienávela toda e qualquer pessoa humanaminhas avós negríndias analfabetasensinaram-me antesde Antonio Candido e Paulo Freireda fortuna teórico-crítica acadêmicaensinaram-mea tirar as paredes da escola:ver no céu formas geométricas;fazer contas com os vãos entre dedos;ler nomes próprios em correspondências;as estações do ano a partir da oração;tabuadas para depois do número 10;uso metafórico da linguagem;noções de História do Brasil;losoa, teologia e o cancioneiro popular;ensinaram-me educação não formalensinaram-me arte-educaçãoensinaram-me pensamento críticosim, ensinaram-mea não revogar meu direito humanizador saber o saber e saber o não sabermais ainda, o querer saber o que se não sabeensinaram-memeu todo e qualquer lugar no mundoensinaram-me que direito não é favor socialque estes livros que agora leio e escrevo foram feitos com troncos de árvores nas quais sangraram nossos antepassados, e que, portanto, eu não devo agradecer a ninguémmulheres nordestinas analfabetas e desdentadasensinaram-mea amar a Educação e dela me apropriare porque ensinaram-meé que hoje sei aprendero que verdadeiramente é ensinar.(Poema publicado no Facebook pela autora Zainne Lima da Silva)
134 \\\ SAMPA MUNDIArte Carolina Itzá. Capa do livro Sensualidade de no trato, de Tulla Pilar. São Paulo: Selo Sarau do Binho, 2017.
135SAMPA MUNDI ///
136 \\\ SAMPA MUNDIArtes: Carolina Itzá