ano 2 | número 2 - Edição especial | Abril 2021
Tô chamando corêra. Grati. Tinta spray. Útero Urbe, residência artística. São Luís do Maranhão, 2015
1SAMPA MUNDI ///Binho. Projeto Postesia. (Acervo do artista)
FICHA TÉCNICASampa Mundi - Quebrada SulAno 2 / Número 2 - Edição especial / 2021Conselho Editorial: Diane Padial, Neide Almeida, Salloma Salomão e Silvia TavaresRevisão: Léia Guimarães e Maria Regina Figueiredo HortaTranscrições: Maria FerreiraProjeto Gráco e Diagramação: Rodrigo KenanArte da Capa: Carolina Itza Segredo. Tríptico (detalhe). Tinta acrílica sobre tela. Dimensão: 0,70m x 0,50m. Exposição Encruza. São Paulo, 2019.contatos: sampamundi@gmail.comfacebook.com/sampamundiinstagram.com/revistasampamundiwww.sampamundi.com.brQuebrada Sul, São Paulo/SPRealização:Parceria:Apoio:
DIANE DE O. PADIAL Integrante do Sarau do Binho, psicóloga, gestora cultural, idealizadora da FELIZS – Feira Literária da Zona Sul. Atuou como gestora nas áreas de educação, cultura e no social desde os anos 1980. Coidealizadora do e-Bairro, plataforma digital para empreendedores.SALLOMA SALOMÃO Letrista, autista ehistoriador, doutor pelaPUC-SP, com pesquisasnanciadas pela CAPESe CNPq. Pesquisadorvisitante do Institutode Ciências Sociais daUniversidade de Lisboa.Dedica-se à pesquisasobre culturas musicais,performance, teatro edramaturgias africanas eafro-brasileiras nos séculosXIX e XX. Possui 6 Cds, 4Dvds e 2 livros publicadospelo selo Aruanda Mundi.NEIDE ALMEIDA Escritora, poeta, educadora, gestora e produtora cultural. Socióloga, mestre em Linguística Aplicada e Especialista em Gestão Cultural Contemporânea. Docente, pesquisadora e consultora na área de leitura, escrita, literatura, direitos humanos e relações étnico-raciais. Publicou em 2017 a zine Nambuê (MoriZines), em 2018 o livro Nós: 20 poemas e uma Oferenda (Ciclo Contínuo Editorial). Participa da antologia Nossos poemas conjuram e gritam, org. Lubi Prates, Editora Quelônio (2019).RODRIGO KENAN Designer gráco, pós-graduado em Service Design. Sócio-fundador da Muvilab. Integrante da Cooperifa e do conselho editorial da revista Legítima defesa. SILVIA TAVARES Pedagoga, mestra emEducação pela FE-USP.Coordenadora pedagógicada Rede Municipal deEducação do Municípiode São Paulo, na região deM’Boi Mirim. Pesquisadoraindependente, produtoracultural e membro daequipe de produção daFeira Literária da ZonaSul e da Escola FeministaAbya Yala.BEL SANTOS MAYER Mulher, negra, educadora social desde a adolescência, mestranda do Programa de Pós-graduação em Lazer e Turismo (PPGTur/EACH/USP), bacharel em Turismo (Universidade Anhembi/Morumbi), licenciada em Ciências Matemáticas (Universidade São Judas Tadeu) e tem especialização em Pedagogia Social (Universitá Salesiana Di Roma). É coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) desde 1997, instituição que se juntou a um grupo de adolescentes e criou a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura. É cogestora da Rede LiteraSampa, nalista do Prêmio Jabuti 2020. RAFA IRENO Escritor e crítico. Contribui com o blog Letras in.verno e re.verso (http://www.blogletras.com/). Pode ser encontrado frequentemente no Sarau da Cooperifa ou no e-mail: irenorafa@gmail.comHAYARA ALVES Integrante do seloMetamorfose e atua desde2012 em saraus da cidade deSão Paulo. Atua em vertentesque envolvem arte e cultura,se entendeu enquanto artista e produtora cultural no Sarauda Cooperifa, lugar onde sebatizou como poeta e tevesuas primeiras experiênciascom produção. Lançou seuprimeiro single musical emjunho de 2020 intitulado Fora do padrão. Tem preparado novas produções, dando espaço a sua versatilidade.
HELENA SILVESTRE escritora e integrante doSarau do Binho. Feministafavelada e uma das editorasda revista Amazonas noBrasil. Ativista afroindígenanas lutas por moradiae território. Educadorapopular na Escola FeministaAbya Yala e pesquisadoraindependente. Publicou Doverbo que o amor não prestae Notas sobre a fome,ambos pelo selo Sarau do Binho. Este último foi nalista do Prêmio Jabuti 2020, categoria “Crônica”.ELÂNIA FRANCISCANascida em 1984, numa cidade chamada Montanha, no Espírito Santo. Moradora do extremo Sul da cidade de São Paulo, psicóloga e educadora de Gênero e Sexualidade, no Projeto Sexualidade Aorada desde 2010. Especialista em Gênero e Sexualidade, pela UERJ, mestra em Educação Sexual pela UNESP e doutoranda em Humanidade, Direitos e outras Legitimidades na USP.NICOLY SOARES Mulher, preta, periférica, lgbt, e aos 19 anos já é poeta, produtora cultural, desenhista de mandala e cientista social em formação pela USP.KETLIN SANTOS Mulher negra, estudantede Pedagogia e mediadorade leitura da BibliotecaComunitária Caminhosda Leitura desde 2010.Atua na promoção dosdireitos humanos, noenraizamento comunitário e no empoderamento femi-nino. Formadora do projeto Entre Redes da Rede Nacio-nal de Bibliotecas Comuni-tárias (RNBC), representan-do a Rede LiteraSampa.LUCIANA DE JESUS DIAS Cientista sociale mestra em Sociologiadas Relações Raciais pelaUniversidade de SãoPaulo (USP). Moradora daperiferia da zona Sul de São Paulo, atuou em coletivosculturais de dança, músicae poesia desta região.Atualmente compõe ocoletivo audiovisualCineBecos. Professorada rede pública de ensinomunicipal no CIEJA Campo Limpo e também trabalha como animadora cultural no SESC Campo Limpo.SHIRLEI DO CARMO Mulher negra, mãe solo, lhade mineiros. Nasceu, vive,planta na laje e trabalha naregião do Jardim Ângela.Formada em Pedagogia,trabalha há vinte anos comoeducadora da infância,e atualmente é diretora de escola pública.SOL ALMEIDA Intérprete, pesquisadoraautodidata em produçõesartísticas, com recortesde raça, classe, gênero eterritório. Idealizadorado projeto Manifesto daBicha Preta, aprovado peloPrograma VAI modalidadeII em 2017. Como intérpretee diretora construiu amontagem teatral 6fragmentos de uma históriaem desalinho, que aborda asconstruções da identidadede pessoas negras eLGBTQI+. Integra tambémo Coletivo Desvelo (2017)e o Instituto Umoja deDramaturgias Negras.CAROLINA ITZÁGrateira, artista visual,educadora e dançarina.Apresentou trabalhosem exposições coletivase individuais. Já ilustroudiversas publicações, entreelas Sagrado sopro (RaquelAlmeida), O olho damulher (Gioconda Belli) ea revista digital Fir-Minas.Integra os coletivos PeriferiaSegue Sangrando, PungaCrew e Fala Guerreira.Mestre em Artes Visuais pelaUniversidade Federal doEspírito Santo (UFES).
6 \\\ SAMPA MUNDICONVERSA COM CONCEIÇÃO EVARISTOPor Rafa IrenoSEMENTEIRAS DE DIREITOS: AUTOCUIDADO E CUIDADOS COMO AÇÃO POLÍTICAPor Bel Santos Mayer e Ketlin SantosO MUNDO ERA A ESQUINA: SEXUALIDADES AFROPERIFÉRICAS, TERRITÓRIO E AS MANHAS DE UMA EDUCADORA DE GÊNERO Por Elânia FranciscaÍNDICEArte Carolina ItzáPRÓ-VIDA DE QUEM?Por Nicoly SoaresNA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRAPor Nicoly Soares
7SAMPA MUNDI ///O SEGREDO DAS FLORESINTERGALÁCTICAS DO CAPÃOPor Sol AlmeidaONDE HABITO COMUNS Por Helena SilvestreDO MEU ESPELHO: REFLEXOS E REFLEXÕES SOBRE O CINEMA FEMININO NEGROPor Luciana de Jesus DiasLAJES Por Shirlei do CarmoCALMA Por Hayara Alves
8 \\\ SAMPA MUNDIArte Carolina Itzá
9SAMPA MUNDI ///EDITORIALAs mulheres que vivem nas periferias de nossa cidade têm sido, desde sem-pre, protagonistas da construção e preservação de espaços fundamentais nos/para os territórios. Mobilizando seus saberes, muitas vezes sem fazer alarde, principalmente as mais velhas, cumprem papel fundamental na conexão das comunidades com aspectos essenciais das ancestralidades que marcam a his-tória das regiões. É muito comum que essas mulheres não sejam ouvidas; com isso trajetórias reveladoras de percursos fundamentais, práticas cultu-rais que sobreviveram e foram reinventadas em processos de migração, de deslocamentos dentro da própria cidade, se perdem, são invisibilizadas pela ausência de escuta.Atualmente tem sido possível identicar importantes ações orientadas para a escuta dessas mulheres, um movimento que dá atenção a diversos aspectos da vida dessas pessoas e que, de modo geral, elege alguma dimensão da me-mória e prioriza a escuta.Desconstruir os padrões cristalizados que, até há pouco tempo, deniam as pessoas como “homens” ou “mulheres” é urgente. E tem sido prática, espe-cialmente de coletivos de jovens cujas vidas se organizam a partir de “novos” paradigmas. Seus discursos, tanto quanto suas práticas, nos interpelam, nos tiram dos lugares de acomodação, nos desaam a construir olhares mais am-plos, menos preconceituosos, mais orientados pela percepção efetiva de que as existências são (e sempre foram) diversas. Os pers, ações e atuações pú-blicas em arte, cultura e política de mulheres trans aqui escritas em primeira pessoa nos conduzem a uma escuta e reverberação em nós do que conceitua-mos por identidade e gênero em nós mesm@s e n@s outr@s.Este segundo número da revista Sampa Mundi gerou três edições simultâ-neas, dado o volume e a qualidade dos textos enviados pelas e pelos autores. Segue a primeira das três edições.SAMPA MUNDI
10 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI ///
11SAMPA MUNDI ///> Por Rafa IrenoCONVERSA COM1CONCEIÇÃOEVARISTOCONCEIÇÃOEVARISTO
12 \\\ SAMPA MUNDIEm abril, Conceição Evaristo esteve na França para o lançamento de Poèmes de la mémoire et autres mouvements. Na ocasião, dia 3 de abril, ela deu uma palestra na Maison de la Poésie, no centro de Paris. A sala estava cheia, pessoas de diversas gerações e lugares vieram ouvi-la, inclusive um grupo de estudantes com a professora do ensino médio, que incluiu em suas aulas de português os livros de Conceição. Foi uma conversa muito boa! No dia seguinte, durante a manhã, tive a oportunidade de entrevistá-la. Isso, repito, foi em abril de 2019. Ao m de nosso encontro, minha intenção era veicular a entrevista na semana seguinte. Entretanto, fui chamado por uma mensagem de WhatsApp do meu primo, voltei para o Brasil. Ainda lembro de ver minha vó sozinha no portão, a frase de Rubem Braga, que eu analisava naquela época, ecoou: havia morte lá em casa. Então, parei por um tempo. Na volta, a urgência de outros textos se precipitou e somente hoje pude escutar este encontro. O que, vocês podem imaginar, não é ideal. Não tenho mais os detalhes da conversa na cabeça, vaga-mente vejo a sala do apartamento, tinha alguns livros na estante, ela ofereceu café, eu aceitei, e sentamos para conversar.CONCEIÇÃO EVARISTO1Esta entrevista foi publicada, pela primeira vez, no blog Letras in.verso e re.verso no dia 6 de agosto de 2019.Foto divulgação
13SAMPA MUNDI ///Uma das coisas de que eu gostei muito foi a oportunidade de falar de meu pro-cesso criativo, porque, muitas vezes, eu chego em palestras de literatura e as pessoas falam assim: “fale da condição da mulher negra na sociedade brasileira” ou “fale sobre racismo no Brasil…” Não precisa eu falar! Isso está no meu texto, entende? Se esmiuçar os meus textos, nós vamos chegar a isso. Do processo criativo, da literatura em si, eu tenho muito pouca oportunidade de falar. E, on-tem, eu quei muito satisfeita com a conversa por ter a oportunidade de falar da questão negra, do racismo, a partir do texto. Agora, sobre o encantamento que eu tenho pela palavra, sem sobra de dúvida, é por causa dessa origem falante. Na minha casa, a gente fala muito. Minha mãe falava, apesar também de mi-nha mãe, em determinados momentos, ser uma pessoa muito silenciosa, muito observadora, pessoa de car assuntando a vida. Eu gosto muito do silêncio, de car observando as pessoas, as reações das pessoas, olhando nos olhos das pes-soas para tentar captar e escrever.Há tempos que uma cena me persegue. Eu trabalhei muitos anos no Morro do São Carlos no Rio de Janeiro, perto da Praça Onze, fazia parte da pequena Áfri-ca e, tem uns dez anos, eu vi essa cena: tem um rapaz, bem jovem, que trabalha-va para o tráco, ele está armado com a metralhadora atravessada no peito, que é uma coisa comum em determinados locais do Rio. Ele está lá de plantão, em pé, compenetrado no trabalho. De repente, vem uma mulher, também bastante jovem, com uma criança dos seus três ou quatro anos, andando na direção do rapaz, daí, tem um momento em que o rapaz abaixa, quer dizer, ele perde a postura de soldado, a criança vem correndo para abraçá-lo, ele joga a arma para trás, para car mais livre, e abraça o lho. Gente, eu vi aquela cena e ela está até hoje na minha cabeça. Como escrever aquela cena? Ali, não era um soldado do tráco, era um jovem pai abraçando seu lho. Então, como traduzir isso, como escrever? E como, por exemplo, a minha subjetividade me permite ver essa cena de uma outra forma, eu vejo ali um jovem pai abraçando o lho. É essa cena que eu quero escrever! Pode haver uma outra pessoa que vê um menino armado, irresponsável – como é que vai abraçar o lho com uma arma no pescoço? Pode perguntar: qual exemplo ele está dando para o menino? Não é o tipo de pai que pode ter responsabilidade sobre uma criança. Pode pensar que essa criança, vendo esse pai armado, provavelmente vai ter que exercer o mesmo trabalho. Tem mil maneiras de captar essa cena para produzir uma escrita, eu produziria essa – um jovem pai abraçando o lho. CONCEIÇÃO EVARISTO
14 \\\ SAMPA MUNDIQuando eu faço Ana Davenga, eu já ouvi uma crítica que faço apo-logia do bandido. Não é apologia do bandido, entende? É uma outra história. O cara que entra assaltando no ônibus e que Maria morre por causa dele. Ele não é um bandido… para Maria. É um homem que ela era apaixonada por ele. Então, essas escolhas de enredo do texto, como você vai construir essa personagem, o que você quer com essa personagem, até que ponto a personagem sou eu. E ai, eu acho muito bonito quando Elza Soares canta “Meu Guri” e ela parece solu-çar no nal. Se você escuta “Meu Guri” com Chico, é uma música. Se você escuta “Meu Guri” com a Elza Soares, é uma outra música! Eu acho que ali a subjetividade de Elza Soares dá uma interpretação que Chico não dá. Aqui não estou dizendo quem canta melhor ou coisa e tal. Estou dizendo destas diferenças, que a subjetividade vai marcar. Coincidência ou não, digo a Conceição Evaristo, a última peça teatral que vi no Brasil foi Gota d’água preta, um texto de Chico Buarque e Paulo Pontes. O espetáculo foi idealizado e dirigido por Jé Oliveira, justa-mente introduzindo corpos negros no palco, o que deu outra perspectiva, outra problematização para a peça – construiu-se uma outra história.Determinadas experiências que nós passamos, em termos do corpo negro, a gente não tem palavras para dizer. Eu me lembro muito de Nadine Gordimer, uma escritora branca da África do Sul; era jornalis-ta, e a família dela sofreu uma série de sanções e perseguições, porque eles se posicionaram contra o Apartheid, ao lado dos negros. Foi uma das vozes mais enfáticas contra o Apartheid. No livro, Gesto essencial (1988), ela diz, mais ou menos assim, que a primeira coisa que um branco tem que fazer, se ele quiser realmente se compactuar com a luta negra, é reconhecer que todo entendimento que ele possa ter do racismo é um entendimento mais intelectual. Por exemplo, se ele está com uma pessoa negra, que é impedida de entrar nalgum lugar, ele vai sentir raiva por causa disso, vai se emocionar com essa situação, mas há um momento que não vive, que é este instante exato da dor do corpo negro. Não tem como o corpo dele sofrer essa mesma experiência de ser interditado. Nadine está discutindo a autoria negra. Se este cor-CONCEIÇÃO EVARISTO
15SAMPA MUNDI ///po leva para o texto essa experiência, traz com ela uma diferença, que pode até usar a mesma língua, mas a literatura é diferente. Ela diz ainda que é preciso também uma honestidade do branco para perceber que há um momento em que a cumplicidade também não dá conta. Por isso, eu insisto tanto na questão da subjetividade, que meu texto é atravessado pela subjetividade do corpo de uma mulher negra.As palavras não dão conta. De repente, ca um silêncio na gravação, Conceição Evaristo ensina a importância dos gestos para sua literatu-ra. Ela pega os livros, que estavam espalhados na mesa, junta os três exemplares nas mãos – são seus próprios livros traduzidos em Fran-cês – ergue um pouco e ainda segurando os deixa cair repetidas vezes, usando a gravidade para organizá-los. Enquanto isso, olha para a fren-te com um olhar desaador.Eu gosto muito e eu sempre co imaginando algumas cenas que podem ter acontecido. Lembro muito da história da minha família, trabalhando como empregadas nas casas de famílias ricas… quantos silêncios essas mulheres negras tiveram que engolir e quantas coisas elas responderam pela metade, quantos gestos foram feitos assim rá-pidos, mas que demonstravam uma revolta. Este ato comedido é o que lhe permite também dizer que não está satisfeita. Eu gosto de imaginar essas meias medidas; não é um gesto completo, mas aquilo ali fala de uma revolta. Outra coisa que eu gosto de imaginar muito também: enquanto certa literatura descreve uma mãe preta passiva, eu gosto de imaginar que essa mulher escravizada dentro de casa, calada, no silêncio dela, sabia direitinho o dia que o senhor ia para a cidade e ela de mansinho ia até a senzala e dizia “aproveitem que essa semana o senhor vai car tanto tempo fora e tomem o rumo do quilombo”. Quando eu falo de novas narrativas, é trazer uma literatura que seja capaz de imaginar isso! E eu sou capaz de imaginar, porque minha mãe e as mulheres de minha família, anos e anos, caram dentro da casa de patrões, mas, anos e CONCEIÇÃO EVARISTO
16 \\\ SAMPA MUNDICONCEIÇÃO EVARISTO
17SAMPA MUNDI ///anos também, nós sabíamos tudo o que acontecia lá dentro. Imagine a arma que essas mulheres têm nas mãos. Acho que é Lélia Gonzales que dizia mais ou menos isso – que esses trabalhos subalternizados criaram a oportunidade para as mulheres negras conhecerem muito mais de perto tanto a fortaleça quanto a fragilidade do branco. Aqui, eu estou pondo Lélia Gonzales, Luíza Bairros, estou pensando nas experiências da minha família. Isso deu, talvez, uma perspicácia pra gente conhecer melhor essa sociedade brasileira.Eu não tenho a menor sombra de dúvidas de que a literatura é uma arma política. Acho que isso aparece no meu texto quando você pega Becos da memória (2006), por exemplo. Nada que está ali é verdade e nada é mentira também; eu falo que são cções da memória. Quando a Maria Nova, personagem narradora do texto – e, não tenho como mentir, meu alter ego desde a infância –, diz que sabe qual é a arma que ela vai usar – é a palavra – ela vai dizer que um dia vai escrever a história de seu povo. A palavra, ela é uma arma, sim!Logo, em seguida, parei de gravar. Ainda falamos sobre a necessidade de uma teoria literária capaz de desenvolver estratégias de análise da literatura contemporânea afro-brasileira e periférica. Inclusive, a es-critora revelou que tem projetos de, no futuro, publicar seus trabalhos críticos. Ela disse que nós mesmos devemos criar essas ferramentas te-óricas. Eu concordei. Depois, ao ir embora, recordo ter sentido parte de minhas esperanças renovadas. Apesar do momento atual do Brasil, Conceição Evaristo existe e escreve frases como esta: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer!” ou poemas como “Meia Lágrima”, “Todas Manhãs” e “De Mãe”. CONCEIÇÃO EVARISTO
SAMPA MUNDI ///
> Por Bel Santos Mayer e Ketlin SantosIllustração Sil Sil do BrasilSementeiras de direitos:AUTOCUIDADO E CUIDADOSCOMO AÇÃO POLÍTICA
20 \\\ SAMPA MUNDINos conhecemos em 2008, em Parelheiros, estudando a Declaração Universal de Direi-tos Humanos. As diferenças entre nós pode-riam ser motivos para nos distanciar: há três décadas entre nossas idades e 50 km entre nossas moradias; uma no centro da cidade e a outra numa periferia rural: uma saía bem de perto de Pinheiros, distrito que ocupava o primeiro lugar do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal1, para encontrar a outra, que morava em Parelhei-ros, último distrito do mesmo ranking; nossa relação era de formadora e formanda. Essas diversidades enoveladas foram um convite para puxar os os do que nos juntaria. Pisando o chão do território, fazendo rodas para ouvir e contar histórias fomos nos perce-bendo muito mais irmãs, lhas, mães de outras tantas de nós e de nós mesmas. Com a mesma caneta reescrevemos a Declaração Universal dos Direitos Humanos até que nossas mães, maioria não letrada, entendessem. Defende-mos o Direito Humano à Literatura com a criação de uma biblioteca comunitária. Lemos as histórias de outras mulheres, escrevemos as nossas, choramos dores nossas e alheias e enfrentamos as forças que tentavam nos imo-bilizar. Saímos de nós, da casa, do bairro, do destino dado. Nos movemos pela cidade e pela O NOSSO COMEÇO1Em 2006, Parelheiros possuía baixa garantia de direitos, enquanto Pinheiros tinha alta garantia de direitos humanos de acordo com o Sistema de Informação Munici-pal sobre os Direitos Humanos (SIM-DH) de São Paulo. Disponível emhttp://www9.prefeitura.sp.gov.br/simdh/, acesso em 9 jul. 2020.história das que vieram antes, para honrá-las e para contar com suas proteções.Na varanda da Biblioteca Comunitária Ca-minhos da Leitura (BCCL), conhecida como a biblioteca do cemitério, nos juntamos para espantar medos, inseguranças e ameaças. Nossa diferença de idade atraiu meninas e mulheres. Nossos tons de pele e texturas dos cabelos indicavam que ali cabiam mais cores nas histórias. Em pouco tempo, os cafés da manhã na varanda e no quintal da biblioteca foi se constituindo um lugar seguro para se-mear direitos. De participantes, cada uma foi se tornando parte do que acontecia ali. Com esta introdução, advertimos que na primei-ra pessoa do plural, “nós”, utilizada na escri-ta deste texto, há mais que as vivências das autoras. Na polifonia de vozes misturada às nossas, há algazarra, risadas, gritos de dor; palavras de ordem em marchas por direitos. Há vezes em que o “nós” é um nó na gargan-ta, choro embotado quando a violência cei-fou vidas. O “nós” é também um coro ana-do em cântico, um acalanto para ninar-nos umas às outras. O Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Co-munitário – Ibeac, organização social criada em 1981, fez o caminho e a ponte para a nos-sa aproximação e construção das reexões e histórias que compartilharemos neste artigo.
21SAMPA MUNDI ///O sucesso do desenvolvimento da semente dependerá, em parte, da profundidade em que ela será depositada: se muito rente ao solo, cará sujeita à ação do clima e pode não vingar; se colocada em muita profundidade, pode não emergir. Em um processo de for-mação, não é diferente. É preciso encontrar a medida. No Ibeac fomos construindo a ces-ta de temas e as abordagens necessárias para que brotássemos coletivamente; para que ninguém casse para trás e ninguém se sen-tisse vanguarda proprietária do saber. Ele-gemos os direitos humanos como conteúdo principal das formações, para que um públi-co constituído de jovens, mulheres, lideran-ças negras e indígenas de áreas periféricas, com diferentes níveis de letramento e esco-larização, se tornassem Agentes Comunitá-rios de direitos humanos. A partir dos eixos “informação, formação e transformação da realidade”, de 1997 a 2006, realizamos cursos e encontros na região Norte do Brasil e em diferentes distritos da cidade de São Paulo. O ponto de partida foram os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) lidos coletivamente e utilizados como lupa para olhar a realidade. Dos Arti-gos XX e XXI extraímos os princípios do di-reito à participação política:A SEMEADURA: OS CONTEÚDOS DA FORMAÇÃOXX - 1. Todo ser humano tem direito à liber-dade de reunião e associação pacíca. 2. Nin-guém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. XXI - 1. Todo ser humano tem o direito de fa-zer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremen-te escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da auto-ridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equiva-lente que assegure a liberdade de voto. Exploramos, com diferentes dinâmicas, o con-ceito de participação política como o direito de “ser parte”, para além do dever de voto e escolha de representantes preestabelecidos. Estudando momentos históricos do país, pro-curávamos superar o imaginário recorrente de que somos um povo pacíco que não luta por seus direitos nem se interessa pelas questões do Estado. As rebeliões de escravizados/as, os quilombos, os movimentos abolicionistas, as revoltas urbanas, as lutas camponesas, as mar-chas, as guerrilhas, as greves. Analisamos o impacto do Golpe Militar de 1964 à participa-ção. O veto às manifestações e ao envolvimen-to popular nos rumos das cidades, do país e da própria vida não impediu que formas sub-terrâneas de resistência emergissem, como as Comunidades Eclesiais de Base, o Movimento Operário do ABC Paulista, a União Nacional
22 \\\ SAMPA MUNDIdos Estudantes2, o Movimento Negro Unica-do - MNU3 e tantos outros. Esses processos de resistência foram essenciais. O processo Constituinte dos anos 1980, com suas pautas reivindicatórias em defesa dos direitos humanos, foram objeto de estudo4. O direito à palavra era defendido e exercita-do na prática, em linguagem compreensível e passível de disseminação, como registrado na publicação 100% Direitos Humanos5:Por ser um país de doutores, coronéis, chefes, acabamos aceitando a cultura do cala a boca! Quem já não ouviu um: cala a boca, quem manda aqui sou eu! Você sabe com quem está falando! Será que manda mesmo? Precisamos transformar essa cultura. Trocar o cala boca pela boca no trombone! (Ibeac, 2001, p.29)Foi essencial observar, porém, que para al-guns grupos as restrições à participação eram ainda mais incisivas. Era preciso descons-truir a falta de conança em pessoas negras, construída pelo racismo desde as ciências aos ditos populares. Era preciso conhecer Zum-bi dos Palmares, Lélia Gonzales, Abdias do Nascimento, Solano Trindade. Para os que tinham dúvidas se política seria assunto para mulheres ou se lhes caberia a esfera privada, para permanecerem “belas, recatadas e do lar”6, era preciso apresentar Pagu, Dandara, Akotirene, Antonieta de Barros, eodosina Rosário Ribeiro, Benedita da Silva.Buscávamos romper a dualidade histórica entre “esfera pública e esfera privada; o mas-culino como o político, o público e o para 2ROCHA, Enid. A Constituição Cidadã e a institucionalização dos espaços de participação social: avanços e desa-os. 20 anos da Constituição Cidadã: avaliação e desao da seguridade social, 2008, pp. 131-148. Disponível em <http://www2.anp.org.br/publicacoes/livros/includes/livros/arqs-pdfs/Livro_da_20_anos_Constituicao72d-pi.pdf#page=131> Acesso em 25 Jul. 2020.3O MNU chegou a ter 573 grupos, de acordo com o Catálogo de entidades de movimento negro no Brasil: pre-cedido de um perl das entidades dedicadas à questão do negro no Brasil, realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) em 1988.4Nas formações realizadas por Bel Santos e Vera Lion, de 1997 a 2006, foram utilizados diferentes bibliograas e recursos audiovisuais para abordagem destes temas, como por exemplo: A invenção do povo brasileiro, deDarcy Ribeiro; Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire; o lme iraniano O jarro, de Ebrahim Forouzesh; amúsica “14 anos”, de Paulinho da Viola; poemas de Solano Trindade, Miriam Alves, Conceição Evaristo; artigosda Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança (Lei 8.069/1990).5Parte dos conteúdos e dinâmicas desenvolvidos nestas formações, podem ser encontrados nas publicações do Ibeac: 100% Direitos Humanos e Passo a passo, porta em porta: sistematização do processo de formaçãodos Agentes Comunitários de Saúde. Disponíveis em <http://www.ibeac.org.br/category/publicacoes/pdfs/> Acesso em 25 Jul. 2020.6A expressão “bela, recatada e do lar” foi título da matéria da revista Veja de abril de 2016 ao referir-se à então vice-pri-meira-dama Michele Temer. Disponível em <https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/> Acesso em 25 Jul. 2020.
23SAMPA MUNDI ///7Achille Mbembe, camaronense, lósofo, historiador, estudioso de política e pro-fessor universitário, questionou os limites do poder soberano do Estado, ao denir quem deve viver e quem deve morrer, em ensaio escrito em 2003 e publicado em 2016 no Brasil na revista Artes & Ensaios. 8As conferências e conselhos fazem parte das grandes conquistas do processo de democratização do país. As conferências, convocadas pelos ministros são impor-tante escuta das vozes da sociedade civil. A I Conferência Nacional de Políticas para a Mulher foi realizada em 2004, foi presidida por Nilcéa Freire, então Ministra da SEPM, na gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e‘fora’; o feminino como o xo, o corpori-cado, o pequeno (doméstico e familiar) e o invisível”(ARAÚJO, 2011, p.93), reconhe-cendo que não haverá equidade de gênero, ou justiça de gênero sem equidade de repre-sentação nos espaços de inuência e tomada de decisão. Era preciso, portanto, eliminar o preconceito de que política é coisa “suja”, pro-míscua e, como tal, não serviria às fêmeas. Precisávamos reetir sobre o signicado de participar da política, de enfrentar o poder totalitário dos homens de decidirem sobre a vida e a morte na cidade, no campo, no céu e nas águas. Ter mais mulheres na política pode signicar um freio aos projetos da ne-cropolítica7; pode ser uma oportunidade de ter um projeto político em defesa da vida. Tratou-se de um exercício constante ao enga-jamento político, analisar o impacto da ma-cropolítica na micropolítica, na vida privada; perceber o quanto as decisões de gestores ou a aparente falta delas interferem em nossos cor-pos, em nossa sexualidade e nossos direitos reprodutivos, se e onde estudaremos, a quais conteúdos teremos acesso, se os direitos hu-manos serão garantidos. Tudo é política! E delegar a desconhecidos o poder de decidir sobre nossas vidas pode ser algo perigoso. À luz dos direitos humanos, incluímos nos con-teúdos o estudo das competências dos po-deres legislativo, executivo e judiciário, para entendermos formas de incidir nas políticas públicas, de participar de instâncias consulti-vas e deliberativas como as conferências e os conselhos consultivos ou deliberativos8. Às análises históricas juntávamos dados e dilemas da atualidade: se era verdade que a participação ativa das mulheres no processo Constituinte garantia a inclusão da diver-sidade no marco legal, como no Art. 5º da Constituição/1988 ao armar que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, a assimetria nos espa-ços de representação política permanecia. Seria preciso mecanismos de intervenção direta, como as cotas. Por meio de júris si-mulados, de defesa e acusação, discutiram--se a Lei 9.504/1997 que xa o percentual mínimo (30%) de candidatura de mulheres, e sua inecácia na eleição de mulheres e a re-formulação da Lei dos Partidos Políticos (Lei 12.034/2009), que exige a destinação de 5% do fundo partidário para promover, difundir e incentivar a candidatura de mulheres, com
24 \\\ SAMPA MUNDIaplicação de maior percentual, na eleição se-guinte, aos partidos que descumprirem a lei. Sabemos que passada uma década a lei segue desrespeitada: nas eleições de 2014, dos 32 partidos registrados, apenas 10 cumpriram a aplicação dos 5% para difusão da participa-ção feminina 9.Representatividade importa! Precisamos ver--nos ocupando distintos lugares para imagi-nar-nos naquele espaço com pertencimento. O encontro com representantes partidários, a visita a comissões da Câmara de Vereado-res para entender seu funcionamento, o en-contro com candidatos(as) a vereadores(as) e monitoramento da agenda do prefeito foram estratégias importantes para o fortalecimento da participação política. Há quem vivenciou a gestão de duas prefeitas mulheres na cidade de São Paulo: Luiza Erundina (1989-1992) e Marta Suplicy (2001-2005). Para além de qualquer avaliação da gestão destas mulheres, vale destacar a importância de ter visto Erun-dina, uma mulher idosa, nordestina, de um partido de esquerda, na gestão de uma cida-de do Sudeste e escolhendo o educador Paulo Freire como Secretário de Educação. Quem não testemunhou pode imaginar o impacto de ter-se uma psicanalista e sexóloga à frente desta mesma cidade, eleita pelo mesmo par-tido, incorporando a estratégia do Programa Saúde da Família (PSF) à política de Saúde, criando Centros Educacionais Unicados (CEUs) nas áreas mais periféricas, desenvol-vendo uma política de creches, colocando normas à regulamentação do transporte pú-blico ao enfrentar um sistema de transporte paralelo. Muitas mulheres sentiram-se mais fortalecidas com estas representações. Muitas meninas puderam incluir em suas brincadeiras o jogo político do “agora eu sou a prefeita”. Anos mais tarde (2011), com a eleição de uma presidenta (Dilma Rous-se, 2011-2016) a compor o reduzido grupo de mulheres, no mundo, que chegaram a essa posição, a brincadeira ganhava outros con-tornos: a palavra “presidenta”, no feminino, passava a ser utilizada por alguns/mas e re-chaçada por outros/as. O rechaço chegou ao extremo, com o “golpe de 201610”, em uma cerimônia de elogio à ditadura e a tortura-dores, precedida de campanha misógina nas redes sociais e de um silêncio conivente dos grandes meios de comunicação. Reforçamos que não nos cabe uma avaliação da gestão da presidenta Dilma, por não ser esse o objeto deste artigo; se a citamos aqui é como ilus-trativo das tentativas violentas de impedir a participação política das mulheres, afetando e destruindo quem ousa mover os limites im-postos. É preciso falar sobre isto.9“Fundo partidário: apenas dez partidos cumpriram cota de participação feminina,aponta TSE”. Diário do Nordeste. Política. 22 de junho de2020. Matéria de Luana Barros e Wagner Mendes.10É possível encontrar várias publicações que analisam o Golpe político de 2016 e seus impactos políticos, econômicos e sociais.
25SAMPA MUNDI ///11O Coletivo Mulheres na Luta, do Grajaú, realizou um grataço contra o machis-mo e apagou os nomes das meninas expostas pelo Top10. Disponível em <http://periferiaemmovimento.com.br/no-meio-do-caminho-tinha-um-grataco-contra--o-machismo> Acesso em 16 Jul. 2020. O embrião da nossa história foi uma roda de conversa entre as/os jovens mediadoras/es de leitura na BCCL. Era 2015 e o “Top 10”, um ranking virtual, por meio de fotos, de cunho sexual e violento, se espalhava pelas perife-UMA BROTA E PLANTA OUTRAS: AS SEMENTEIRASrias da zona sul de São Paulo. Com idades de 12 a 15 anos, meninas eram expostas e clas-sicadas de 1 a 10 pelo grau de “vadiagem”. As “mais vadias”, termo utilizado pelos divul-gadores da lista, sofreram além de violência moral, violência física e psicológica por parte dos seus familiares e da comunidade, ao te-rem seus nomes pichados em espaços públi-cos11. Por vergonha pelo linchamento virtual e presencial por parte dos colegas da escola, várias meninas abandonaram os estudos. As primeiras rodas de conversa na biblioteca foram para pensar o que fazer diante daquela situação. Passamos a levantar estratégias de proteção e garantia de direitos àquelas meni-nas, vítimas do machismo e da violência de gênero. Quando houve relatos de suicídios na região do Grajaú, próxima a Parelheiros, vi-mos que não estávamos sozinhas na dor e na indignação. Nos juntamos a outros coletivos, como o Abayomi Abá - Pela Juventude Negra Viva, coletivo feminista de Parelheiros, em ações de sensibilização de diferentes atores para a proteção à vida. O assunto deixou de ser tratado como algo isolado. A divulgação em massa do caso e do fenômeno “Top 10” nas redes sociais e na grande mídia fez com que acreditássemos que a proteção às vítimas seria intensicada, porém não foi o que ocor-Em nossa prática, temos considerado que po-lítica se discute e é preciso aprender a discuti--la. Em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo, temos experimentado algumas estratégias para este fazer político.Evento Mulher Negra - Crédito Valdirene Rocha
26 \\\ SAMPA MUNDIreu: algumas matérias expuseram ainda mais as meninas, chegando a classicá-las como culpadas por terem permitido as fotos, como relatado pelo Coletivo Mulheres na Luta12:Durante o período havia muita presença dos principais meios de comunicação, que em sua maioria retratava a pauta de modo nada cuida-doso, e que direta e indiretamente incentivava o acesso a estes vídeos, divulgando imagens das vítimas extraídas dos vídeos do “Top 10” encontradas na Internet e utilizando apenas uma tarja preta nos olhos como forma de di-cultar a identicação dessas meninas, o que obviamente não impedia que fossem identi-cadas por parte dos vizinhos, colegas e conhe-cidos. (VALENTE, M. G; NERIS, N; & BUL-GARELLI, L. 2017, p. 26)Passamos a realizar rodas de conversa so-bre feminismo, ampliando uma vez mais os saberes: pesquisas e debates sobre mulheres protagonistas na política, na ciência, na arte e na literatura. Em contraposição ao “Top 10” passamos a criar listas com “10 formas de ser feminista”. Coletivamente, passamos a criar respostas para manifestações misóginas e machistas disseminadas nas redes sociais. Percebemos que precisávamos fazer algo para garantir o direito à vida e à voz daquelas meninas. Precisávamos acolhê-las. Seguir de mãos dadas com elas até a escola, conversar com os meninos para que interrompessem aquela atitude violenta; dialogar com as mães para que não abandonassem suas lhas na-quela situação difícil de insegurança, vergo-nha e medo. Precisávamos que mais pessoas ouvissem o que estava acontecendo e se jun-tassem para frearmos aquela violência. Os coletivos, por meio de debates promo-vidos por organizações sociais atuantes na região de Parelheiros e Grajaú, zeram com que a discussão se estendesse à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), fosse instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito(CPI) e realizada uma audiência pública para pautar as necessidades de garan-tia dos direitos daquelas meninas e a necessi-dade de ações preventivas nas escolas e meios de comunicação.Assim, da urgência de não se calar diante da violência sofrida por meninas e mulheres, para a garantia da participação como gesto político, nasceu o grupo Sementeiras de Di-reitos, reunindo mulheres adultas, jovens, meninas e também alguns meninos em rodas de conversas em que empatia, escuta, auto-cuidado e defesa de direitos foram colocados em prática. Nos textos literários encontra-mos palavras que nos acolhiam e nos afeta-12VALENTE, M. G.; NERIS, N.; & BULGARELLI, L. (2017). “¿Como tratar la vio-lencia de genero online en la clave de la juventude periferica brasilena?” In ALVES,G.; GOBERNA, A.; FRATTI, S. (Org.); Analisis de una juventud conectada: gober-nanza de internet, Edicion en Espanol, Organizado por el Youth Observatory/Grupo Especial de Interes de Internet Society, agosto 2017, p. 22-31. Disponível em<bitly.com/libro_youth_es> Acesso em 16 jul. 2020.
27SAMPA MUNDI ///vam. Nas leis encontramos o resguardo para as nossas reivindicações. Nos olhando nos olhos, encontramos força para não desistir. As parcerias com o Consulado da República Federal da Alemanha em São Paulo e o Ins-tituto Avon nos possibilitaram alcançar mais mulheres e aprofundar temas relacionados ao feminismo, aos direitos das mulheres, às relações de gênero e raça, à constituição de acervo, um banco de músicas e dinâmicas so-bre o tema, e o desenvolvimento de métodos para abordagem das relações de gênero com diferentes públicos. Especialistas, artistas e ativistas da área13 somaram-se a nós e ilumi-naram caminhos nas pautas políticas, iden-titárias, institucionais, jurídicas. Com um grupo constituído de mulheres de diferentes faixas etárias, diferentes níveis de letramen-to, algumas nãoletradas, fomos inovando nos jeitos de compartilhar e trocar saberes sobre o histórico da luta e mobilização das mulhe-res, os estereótipos e preconceitos de gêne-ro presentes em ditados populares, piadas e memes, e práticas na área da justiça para fazer valer nossos direitos à dignidade. Dese-nhamos nossa rede de proteção às mulheres e meninas, para saber com quem podíamos contar.A literatura esteve sempre presente. A cada encontro, na varanda da biblioteca, ali estava ela: a literatura, espalhada no chão e por cada cantinho a nos inspirar e movimentar dentro e fora. A vida de outras personagens e auto-ras nos ajudava a denunciar as desigualdades e as violências. Com Frida Kahlo repetimos: “Pés, para que os quero, se tenho asas para voar14”; com Carolina Maria de Jesus: “Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos” e com Simo-ne de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna--se mulher”. Estudamos suas biograas, le-mos trechos de suas obras, estampamos seus rostos em nossas sacolas e cadernos. Fomos encontrá-las. As obras de Frida Kahlo no Ins-tituto Tomie Ohtake15 receberam mulheres que pela primeira vez visitavam uma expo-sição e, tocadas pelas imagens, relatavam as violências sofridas em casa e a sensação de liberdade por estar fazendo algo para elas, 13As Sementeiras de Direitos encontram-se com Elânia Francisca, Márcia Tiburi, Neide de Almeida, Djamila Ribeiro, Valdênia Paulino Lanfranchi, Mel Duarte, Eli-zandra Souza, Sueli Carneiro, Maria Lúcia da Silva entre outras. 14Frases extraídas, respectivamente, de Diário de Frida Kahlo, escrito abaixo de pésamputados, em 1953; Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus; O segundo sexo, de Simone de Beauvoir.15A exposição Frida Kahlo - conexões entre mulheres surrealistas no México, com cerca de 100 obras de 15 artistas, teve curadoria da pesquisadora Teresa Arcq e cou disponível de 27 setembro de 2015 a 10 janeiro de 2016. Disponível em <ht-tps://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/frida-kahlo-conexoes--entre-mulheres-surrealistas-no-mexico>. Acesso em 16 Jul. 2020.
28 \\\ SAMPA MUNDIenfeitadas com ores, registrando o momen-to. Em uma segunda ocasião, atravessamos a cidade para encontrar a escritora Carolina Maria de Jesus, que lutou tanto para ser reco-nhecida como escritora, terminou seus dias em Parelheiros e, nalmente, tinha um lugar de destaque no coração da cidade, no Museu Afro Brasil: uma biblioteca com seu nome e a exposição Carolina em nós16. Foram experi-ências marcantes!Perguntamos a três Sementeiras o que foi mais signicativo dentre nossas vivências: Sidinéia Chagas, 29 anos, mulher preta, pe-riférica, mãe solo do Octávio, de 10 anos, estudante do oitavo semestre de adminis-tração e mediadora de leitura; Iara Vaz, 55 anos, mulher periférica e dona de casa, usa a poesia como ferramenta de expressão e Ra-faela Nunes, 22 anos, mãe do Giovanni, de 5 anos, mãe mobilizadora, estudante do oitavo semestre de pedagogia e educadora social do Centro de Excelência em Primeira Infância. Sidinéia fala dos preconceitos enfrentados e de quanto as Sementeiras fortaleceram o seu trabalho na comunidade:16A exposição Carolina em Nós, idealizada pelo grupo Ilú Obá de Min, de promoção da cultura afro--brasileira, teve curadoria de Roberto Okinaka e cou disponível de 6 a 31 de janeiro de 2016. Disponível em <https://www.geledes.org.br/carolina-maria-de-jesus-e-homenageada-no-museu--afro-brasil/>. Acesso em 16 Jul. 2020.Disponível em <https://youtu.be/l1AjuqVmK1s/>. Acesso em 20 Jul. 2020.17Chimamanda Ngozi Adichie, escritora Nigeriana, publicou seu primeiro romance em 2003 Hibisco Roxo e seu último em 2017 Para Educar Crianças Feministas: Um Manifesto Adichie realizou ainda em 2012 uma palestra feminista no TEDxEuston intitulada, “Sejamos todos feministas”. Seu discurso se tornou um livro que levou o mesmo nome, em 2014. Foi premiada no National Book Critics Cirle Award em 2015. Disponível em <https://www.geledes.org.br/chimamanda-ngozi-adichie-nao-silen-cie-essa-voz/>. Acesso em 20 Jul. 2020. Frida Kahlo foi a mulher que não pensou no que a so-ciedade iria dizer e resolveu se mostrar. Eu era uma jovem que não tinha a perspectiva de ingressar em uma faculdade porque acreditava que eu não era ca-paz de passar quatro anos dentro de uma sala de aula; e também tinha outra barreira que era estar ausente por um longo período da vida do meu lho Octávio. Hoje me vejo disposta a arriscar nos meus projetos, a viver melhor e conquistar meus objetivos. Assim, como Frida Kahlo, Sidinéia optou por não mais aceitar que desenhassem a sua realidade; ela vem pintando sua vida, trans-formando o que lhe foi imposto. Como co-ordenadora do time de futebol feminino Perifeminas, aproxima gerações ao reunir mulheres de 9 a 39 anos, como as Semen-teiras; realiza rodas de conversas pelo pro-jeto Em Campos (2017),reunindo meninos e meninas para promoção da equidade de gênero e combate à violência contra as mu-lheres, pela desconstrução de estereótipos e preconceitos de gênero, juntando futebol e literatura. Os uniformes do time carregam frases como a da escritora nigeriana Chima-manda Adichie17 “Precisamos encorajar mais mulheres a se atreverem a mudar o mundo”
29SAMPA MUNDI ///18Malala Yousafzai teve sua história pulicada na autobiograa Eu Sou Malala(2013), escrita por Christina Lamb. Malala anunciou a criação de um fundo que leva seu nome para promover a educação para meninas no Paquistão. Recebeu o Prêmio Sakharov, dado pelo Parlamento Europeu. Em 2014 recebeu o Prêmio Nobel da Paz, tornando-se a mais jovem ganhadora da premiação.19Audre Lorde, A Burst of Light, Essays. London; Sheba Feminist Publishers, 1988.20Amaras é o nome utilizado pelo grupo ao referirem-se às integrantes do Amara: empreendimento de alimentação saudável. Para conhecer mais sobre o empreendi-mento: http://www.ibeac.org.br/amaras/e da ativista paquistanesa MalalaYousafzai18. As Sementeiras, como Malala, atrevemo-nos a ecoar nossas vozes, denunciando as maze-las e as violências sofridas por nós e por ou-tras de nós. Iara foi uma das mulheres a criar, com o Ibe-ac, o Amara: empreendimento de alimentação saudável (2017). Nos encontros das Semen-teiras, após constatarmos o alto índice de pes-soas diabéticas nos bairros em que atuamos, decidimos mudar o padrão da alimentação de quem participava dos encontros. Com Audre Lorde, escritora americana-caribenha, mulher negra, aprendemos que o autocuida-do “não é autoindulgência, é uma autopre-servação e isso é um ato de guerra política”19. Passamos a fazer juntas, de forma saudável, os lanchinhos dos encontros na biblioteca. Aos poucos a proposta ganhou força e incor-porou outros valores como geração de renda, autonomia e empoderamento feminino: con-dições essenciais para que as mulheres supe-rem situações de violência. As Amaras20 pro-movem conhecimento, acesso à alimentação saudável pela venda de produtos, prestação de serviços (catering), compartilhamento de receitas e formações em nossas comunidades. As Amaras nos surpreenderam ao nomear um dos cardápios de café da manhã, como Espetáculo para Carolina justicando que “o melhor café da manhã deve ser oferecido para quem já passou fome”. A literatura faz destas coisas. A atriz e produtora Viola Da-vis, diz que “Como mulheres negras, sempre passamos por experiências aparentemente devastadoras, experiências que poderiam ab-solutamente nos derrubar. Mas o que a lagar-ta chama de m do mundo, o mestre chama de borboleta. O que fazemos como mulheres negras é criar a partir das piores situações”. Aprendemos pela nossa dor. Com as nossas feridas, transformamos e ressignicamos nossa existência e aquilo que nos machuca... Iara, que antes tinha como aliada a timidez, se desprendeu e, em rodas ou encontros pro-movidos pelo Ibeac, compartilha suas poe-sias afetuosas e potentes.
30 \\\ SAMPA MUNDI Somos as Sementeiras de Direitos vocês podem acreditar que só as boas sementes vamos no mundo plantar, Sementes de alegria, sementes de proteção. Somos as Sementeiras trazendo paz e emoção. Lutamos contra o racismo, lutamos contra a segregação,Lutamos pelas mulheres e pela nossa nação Somos as sementeiras com amor nos corações.semeando a partir do que aprendeu. Assim vamos curando as dores e construindo dias melhores para todas. Cada uma que se for-talece, fortalece o grupo. Como escreveu Ca-rolina Maria de Jesus: “Ah, comigo o mundo vai modicar-se. Não gosto do mundo como ele é”. Nós não aceitamos as desigualdades, as situações de violência e a violação de direitos das mulheres. Lutaremos para que chegue o dia em que “gênero” não seja uma pauta para discutir as violências, mas sim para construir políticas de Estado integradas aos saberes e fazeres sociais. Sabemos que nenhuma política sozinha dará conta da complexidade da vida das mulhe-res. E nenhuma política séria poderá anular a nossa existência, o nosso jeito de adminis-trar, afetar, acolher, mobilizar, transformar. Queremos e seremos parte. Seguiremos pro-jetando nossas vozes, corpos e escritas para que nenhuma mulher seja abusada, violenta-da, violada, silenciada. Esperamos que a his-tória das Sementeiras, nossa história, nossas experiências e vivências recolhidas neste re-lato, encorajem mais mulheres a se atreverem a mudar o mundo. Já Rafaela realiza suas ações em parceria com o Ibeac e o Centro de Cultura Popular e De-senvolvimento (CPCD) junto a mães, grá-vidas, puérperas e seus/suas bebês, visando fazer de Parelheiros o melhor lugar para se nascer e viver. O Centro de Excelência em Primeira Infância busca excelência no cui-dado da primeira infância como um direito. Criamos a Casinha das Histórias, as Ruas Adotadas e a Casa do Meio do Caminho a partir das diculdades e desejos escutados nas rodas de conversas e nas visitas “olho no olho”. Compartilhando como era há cinco anos atrás e quais foram seus desaos, Rafa-ela resume: Se hoje estou na faculdade, em um relaciona-mento bacana é porque eu acreditei em mim e na minha potência. A minha maior conquista é sem dúvida o meu empoderamento, porque só através dele eu me permito enfrentar os desa-os que os tabus e preconceitos criam. O maior desao é “acordar”, começar a perceber as coi-sas que estão erradas e se posicionar, pois é um trabalho árduo.Criar a partir de situações difíceis e desa-adoras foi e é o que nós, Sementeiras de Direitos, temos feito nestes anos; cada uma
31SAMPA MUNDI ///QUEM SEMEIA, COLHE E COMPARTILHA21. Para nalizar, em um esforço de síntese, compartilhamos brevemente o que temos co-lhido nestes anos de Ibeac e Sementeiras de Direitos, envolvendo mulheres de diferentes idades e experiências em um mesmo territó-rio: Parelheiros. Trata-se de aprendizados a partir do vivido, incorporando“ nossos melhores erros”, aque-les que nos ajudaram a rever caminhos, en-tender, passar a novos desaos: como apren-demos da práxis freiriana22. ▶ A diversidade do grupo, com mulheres adolescentes, jovens, adultas, idosas, ges-tantes, mães e avós, potencializou o poder de reunião, liderança, mediação, autocui-dado e cuidados.▶ Não há espaços predeterminados para as mulheres se encontrarem. Cada comunidade deve descobrir os mais propícios: a igreja, a escola, a calçada. 21Parte destas estratégias foram sistematizadas por Márcia Cunha, socióloga convi-dada a sistematizar a experiência do projeto Sementeiras de Direitos.22Práxis: Atividade ou situação concreta que se opõe à teórica; prática. Disponível em <https://www.dicio.com.br/praxis/>. Acesso em 20 Jul 2020. Práxis Freiriana é uma teoria usada dos pensamentos de Paulo Freire, que compre-ende a existência a partir da relação entre subjetividade e objetividade, é a possibi-lidade entre a humanização e educação.Paulo Freire foi educador e losofo brasileiro, considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia, sendo também considerado o Patrono da EducaçãoMães Mobilizadoras Sarau Dia da Mulher 2019 - Créditos Val RochaSarau Mulheres na Literatura 2020 todas com Carolina M de Jesus - Créditos Rafael Simões
32 \\\ SAMPA MUNDI▶ Para estabelecer parcerias no território é fundamental saber quem pode compartilhar conhecimentos e apoiar a efetivação das pautas do grupo.▶ Somos diversas. Para ampliar o repertório de temas e causas a serem defendidas, é importante fazer parcerias com instituições tradicionais e com grupos e coletivos que façam abordagens múltiplas das questões de gênero. ▶ A diversicação dos espaços e ampliação do grupo favore-cem a ampliação dos laços de sociabilidade, de amizade: o nas-cimento de um bebê, a troca de fotograas, a troca de receitas, o cozinhar juntas, a visita a um espaço cultural, uma leitura compartilhada são oportunidade de festa, confraternização e aprendizagem.▶ Ter um grupo de mulheres de referência é um grande potencial de mobilização de outras ainda não tão envolvidas. Aprende-se olhando, acompanhando como as outras fazem. ▶ A escolha coletiva de um nome para designar o grupo dá uni-dade, cria identidade, aumenta a visibilidade. ▶ O uso da tecnologia e o letramento digital facilitado pelos encontros intergeracionais, ampliam a interatividade. O que era obstáculo vira recurso. ▶ Literatura sempre nos ajuda a dizer o que sentimos.Chegamos até aqui. Da escrita deste artigo até sua leitura, pode ser que tenhamos brotinhos. As Sementeiras não param. Escre-vemos este artigo no contexto da Covid-19: um vírus parou o mundo e escancarou o drama dos rumos da política no Brasil. Nunca foi tão urgente e necessário discutir política e nos prepa-rarmos para transformá-la em defesa da vida.1 Sarau Dia da Mulher - Mães Mobilizadoras 2019
33SAMPA MUNDI ///> Referências bibliográcasAlves, G.; Goberna, A.; Fratti, S. (Org.). Analisis de una juventud conectada: gobernanza de internet, Edicion en Espanol, Organizado por el Youth Observatory/Grupo Especial de Interes de Internet Society, ago 2017. Disponivel em <bitly.com/libro_youth_es>. Acesso em 16 jul. 2020.Araujo, C. As mulheres e o poder político: desaos para a democracia nas próximas décadas. O progresso das mulheres no Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA; Brasilia: ONU Mulheres, 2011. p. 93-138. ISBN 978- 85-88222-14-4.Barsted, L. L. & Pitanguy, J. (Org.). O progresso das mulheres no Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA; Brasilia: ONU Mulheres, 2011. ISBN 978-85-88222-14-4.Beauvoir, S. de. O segundo sexo, v. I, II. Tradução Sergio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.Chimamanda, N. A. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em HYPERLINK “https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/”https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/ declaracao/. Acesso em 16 jul. 2020.Diário do Nordeste. Política. 22 de junho de 2020.Instituto de Estudos da Religião (ISER). Catálogo de entidades de movimento negro no Brasil: precedido de um perl das entidades dedicadas à questão do negro no Brasil, Rio de Janeiro, 1988.Lorde, A. A Burst of Light, Essays. London: Sheba Feminist Publishers, 1988.Mbembe, A. Necropolítica. Artes & Ensaios, v. 32, 2016. p. 123-151.Montambeault, F. Uma Constituição cidadã? Sucessos e limites da institucionalização de um sistema de par-ticipação cidadã no Brasil democrático. Estudos Ibero-Americanos, 44(2), 2018. p. 261-272. https://doi.org/10.15448/1980-864X.2018.2.29553.Rocha, E. A Constituição Cidadã e a institucionalização dos espaços de participação social: avanços e desa-os. 20 anos da Constituição Cidadã: avaliação e desao da seguridade social, 2008. p. 131-148. ISBN: 978-85-62102-00-4.Valente, M. G.; Neris, N.; & Bulgarelli, L. ¿Como tratar la violencia de genero online en la clave de la juven-tude periferica brasilena? Analisis de una Juventud Conectada: Gobernanza de Internet, Edicion en Espanol, 2017. p. 22-31. https://docplayer.es/64781090-Analisis-de-una-juventud-conectada.html
34 \\\ SAMPA MUNDI SAMPA MUNDI ///
Pró-vida de quem?> Por Nicoly SoaresIlustração: Carolina Itzá
36 \\\ SAMPA MUNDIIntitulam-se “pró-vida”mas eu sempre me perguntei pró-vida de quem?O argumento de que“uma criança não pode sofrer com a irresponsabilidade”Também vale pro Estado? Que segue em sua saga de assassinatoEm um plano literalmente claro,Onde corpos negros seguem sendoa carne mais barata do mercadoe quando não deixam pretas pra morreremem abortos clandestinos, as matam em partos desumanizadose quando mesmo assim não conseguema bala perdida encontra a prole, e ao dez anos!! perdemos mais um Eduardo.É o hell de janeiro, fevereiro, março, abril é da polícia militar a civilque também deixa mães de maioe a criança que nunca foi numa festa juninae em julho também não teve férias... do trabalho! Agosto de quem que isso se mantém?o que mais te comove?um conjunto de células ou um garoto,ainda com o uniforme da escola que morre?A decisão é sofridaalém da dor física, talvez deve doerver o sangue escorrendo pelo ralomas quando o aborto é espontâneo, nem a medicina enxerga vida no feto,por isso não me kahlo, falsos moralistas,
37SAMPA MUNDI ///por crianças brincando no esgoto, eu nunca vi nenhum de vocês com a alma comovida,“mas o lho também é meu, e se eu quisesse ter”,disse o homem com a autoestima ferida,irmão isso não é sobre você,e enquanto não for tu a carregar por nove meses,sua participação de 15 segundosnão te dá direito para que sua opinião seja ouvida,“mas é só ter e deixar pra adoção”, mas quem é que vai adotar a criança preta,se sempre preferiram o padrão europeu,e por ele até pagam mais em inseminação articial.Nos poupe dos seus achismos e discutam entre si o abandono parental.“Mas isso é pecado”tirem esses rosáriosdos nossos ovários,nosso útero é laico, e se és contra o aborto, então que não faça.Não embace a luta, por uma questão de saúde pública e não use o argumento de ser pró-vidaporque mulheres vão continuar a fazer, continuar a morrer,e com isso, você só se tornamais uma das mãos que as matam.
38 \\\ SAMPA MUNDINA PRÁTICA A TEORIA É OUTRA> Por Nicoly Soares SAMPA MUNDI /// Foto: Sam Burris / Unsplash
39SAMPA MUNDI ///Andam dizendo que ser preto está na modaVocês querem os nossos traços, o nosso corpoNo Facebook comentam “que morena maravilhosa”.Mas na rua é pra ela que vocês olham torto.Tivemos nossos corpos sexualizados,já dizia Luz Ribeiro: “quanto mais retinto,mais fácil de ser extinto”. E quanto mais claro... entra pro padrão de ser exportadoMas a minha carne não é a mais barata do mercado!Hoje vocês aplaudem a mulher que vocês zoavam quando era menina.Dizem que ela já se acha demais,porque vocês é que acabaram com a nossa autoestima.E o policial atirou; sem pensarapertou o gatilho.Dizia que estava armado,mas o único armado era o cabelo do menino. E daí quando é menina, ela põe um turbante.Mas só com olhares vocês fazem com que ela o acabe retirandoPorque vocês só gostam de coisa de preto, quando é um branco que está usando!
40 \\\ SAMPA MUNDIEntão saca: não é só acessório, não estraga e esvazia a essência.Já dizia Mel Duarte, “cabelo de negro não é só resistente, ele é resistência!”Vocês valorizam a nossa cultura quando ela está sendo embranquecida. Só acham bocão bonito, quando ele está nas Kardashians da vida.Mas ser preto não é só estética, bora falar de estatísticaFalemos sobre genocídio, sobre feminicídio. Sentemos e conversemos até sobre o seu feminismo.Porque se ele é sobre mulheres,mas só representa interesses brancosEstá na hora de vocês passarema enxergar mulheres negras como seres humanos!Porque se o seu debate não faz recorte,ele é que nos recortaE nós cansamos de ser cortadosaté quando contam a nossa história Cansamos de ser silenciados.Então quando não for o seu lugar de fala, você senta e escuta
41SAMPA MUNDI ///Se quer ajudar, corrige o racismo e o machismo dos seus amigos Mas não ca de pitaco na nossa lutaPorque falar é fácil, é conveniente Do seu pódio, o privilegiado,Mas da ponte pra cá é tudo bem diferenteE a gente só vai descansar quando o preto não for só mais um empregadoQuando ele entrar na universidade não pelo seu TCC, mas como universitárioE na colação de grau vocês vão ter que aguentar os playboys e a lha da empre-gada do lado! E vocês ainda reclamam de cotasMas tem muito lhinho de papai que não passaria se não tivesse um cotista para ele ter colado.Então chega dessa história de que ser preto está na moda Porque se a proposta for pra tu ser preto por um dia, tu se isenta Então chega de bancar a Daniela MercuryPorque preto, tu só se diz de alma,porque de pele… VOCÊ NÃO AGUENTA!
> Por Elânia FranciscaFoto: Sam Burris / Unsplash SAMPA MUNDI /// O MUNDO ERA UMA ESQUINASEXUALIDADES AFROPERIFÉRICAS, TERRITÓRIO E AS MANHAS DE UMA EDUCADORA DE GÊNERO
Meu encontro com os temas de sexualidade começou na infância. Então, para explicar esse encontro, preciso contar algumas coisas sobre mim.Sou a lha mais velha de Maria Zilda Fran-cisca e Zeneuzo. Nascemos no Espírito Santo e viemos para São Paulo quando eu ainda era criança. Chegando aqui fomos morar com minha tia materna. Foi no quintal de casa Meu nome é Elânia Francisca. Sou Ocineira de Gênero e Sexualidade pelo Projeto Sexua-lidade Aorada e há mais ou menos dez anos tenho me dedicado à reexão sobre infâncias e adolescências periféricas, sobretudo no que diz respeito aos Direitos Sexuais e Reprodutivos.Meu trabalho consiste basicamente em criar momentos de reexão com crianças e adoles-centes sobre corpo, autocuidado, autoestima e respeito às demais existências. Ser Ocineira é um trabalho que eu sinto mui-to prazer em realizar, mas confesso que muitas pessoas próximas (e distantes também) têm di-culdade para entender exatamente o que faço. Por essa razão, decidi começar o artigo expli-cando meu trabalho e depois contarei algumas experiências como Ocineira, atravessadas por algumas reexões sobre sexualidade infantoju-venil e seus desdobramentos na vida adulta.que conheci outras crianças da minha idade. Eu tinha seis ou sete anos de idade quando recebi o convite:- Vamos brincar de médico?- Como brinca?- eu me interessei.- O menino é o médico e as meninas são ma-mãe e lhinha. – contou uma das crianças.E foi assim que brincamos. Todas éramos crianças. Não me lembro exatamente do di-álogo ou da dinâmica da brincadeira, mas recordo que me causou uma sensação boa. Seguimos brincando disso sempre que podí-amos, até sermos descobertas por um adulto que contou para nossas famílias. Apanhamos e nunca mais brincamos daquilo. Nunca mais brincamos daquilo juntas! Eu segui brincan-do sozinha e escondida.Com o passar do tempo aquela brincadeira foi perdendo a graça e eu parei, de forma gradual. É importante dizer que meu pai estudou até a quarta série e minha mãe é uma mulher não-alfabetizada. Por não ter tido acesso à edu-cação, ambos sempre incentivaram a mim e minhas irmãs o hábito da leitura. Como não tínhamos dinheiro, minha mãe nos dava li-vros que a patroa dela jogava fora. Lembro que minha irmã do meio tinha mui-to medo das pinturas de Rembrandt, princi-palmente uma obra chamada A Lição de Ana-tomia do Dr. Tulp. Quando chegava a noite eu e minha irmã caçula corríamos atrás dela SEXUALIDADE É CORPO!
44 \\\ SAMPA MUNDImostrando a imagem e dizendo “O homem da mão rasgada vai pegar você de noite”.Foi no meio dos livros antigos de pintura que encontrei um livro chamado A Biograa de Marilyn Monroe. Eu acho que tinha uns onze anos de idade e quei extremamente fascina-da pelas imagens que estavam ali. Eu beijava o livro, riscava o livro, me desenhava deita-da ao lado de Marilyn Monroe e imaginava como seria beijá-la. Acabo de me lembrar de outra coisa muito engraçada: eu desenhava pênis em todas as páginas do livro da Marilyn (você já deve ter visto aqueles desenhos, geralmente nas cadeiras das escolas com dois círculos e um outro meio ovalado).Figura 1: Ilustração feita por mim no Paint
45SAMPA MUNDI ///Isso porque achava que essa gura signicava “quero fazer sexo com você”.No início da adolescência, minha mãe trou-xe para casa uma enciclopédia vermelha que tinha diversos assuntos. Foi nesse livro que li pela primeira vez algo sobre Freud, Sigmund. Lembro vagamente de algo relacionado à fase anal e do prazer que a criança sentia ao pren-der e soltar as fezes. E lá fui eu experimentar prender e soltar fezes. Cada descoberta sobre meu corpo e as sensações que ele me gerava me deixavam mais interessada em saber so-bre mim.Quando conto essas histórias, algumas pessoas dizem: Você era uma menina bem safadinha!E aí é que está: eu não era uma menina bem safadinha, era apenas uma menina descobrin-do o próprio corpo e as sensações que outros corpos e exercícios provocavam em mim.Brincar de médico, ver braços sendo opera-dos em obras de Rembrandt, desenhar pênis, me imaginar dormindo com Marilyn Mon-roe e exercitar prender e soltar fezes... Tudo isso tem a ver com Sexualidade porque sexu-alidade é corpo!Qualquer elemento do nosso corpo é sinô-nimo de sexualidade. O caso é que muitas vezes quando pensamos em a conectamos com a ideia de ato sexual. Porém fazer sexo é apenas uma possibilidade de usar o corpo para obter prazer. Sexualidade é corpo!Certa vez, num grupo de crianças, eu falei exatamente isso: sexualidade é corpo!Então um dedinho se ergueu na roda de con-versa: sexualidade faz cocô?Eu disse: Faz!Todas riram.Outra arriscou: sexualidade faz peido?Sim!Sexualidade é cabelo?Sim!É umbigo?É!E assim seguimos conversando sobre cada pedacinho do nosso corpo e tudo isso foi so-bre sexualidade.Embora as histórias que eu tenha escolhido para contar sobre mim estivessem relaciona-das a prazer, todas elas falam da minha rela-ção com meu próprio corpo.É importante explicar que, em cada fase da vida, aprendemos alguma coisa sobre nós, sobre nossa corporeidade. Um desenvolvi-mento sexual saudável acontece quando res-peitamos o ritmo do processo de descober-tas sobre si de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Nós não adiantamos apren-dizados, nem ngimos que as descobertas não estão acontecendo.O trabalho de uma Ocineira de Gênero e Sexualidade é servir de apoio e suporte nos diálogos e reexões sobre corpo, auto-conhecimento e respeito aos processos dos outros corpos.
46 \\\ SAMPA MUNDIQuando bebês aprendem a apontar as par-tes de seus corpos, por exemplo, eles estão aprendendo sobre sexualidade. Quando uma criança aprende que não pode morder al-guém porque machuca, ela está aprendendo sobre coexistência e respeito aos corpos. A criança aprende algo que adultos deveriam sempre se lembrar: “Você não deve machucar as pessoas só por-que está frustrado.” “Seu amiguinho não precisa querer brincar contigo o tempo inteiro.” “Você precisa aprender a lidar com seus sen-timentos sem agredir os outros.”Tudo isso é sobre sexualidade!Percebe quantos processos importantes deixa-mos de vivenciar quando tratamos a sexuali-dade como sinônimo apenas de ato sexual? A falta de diálogo e reexão gera muitas barreiras no trabalho de uma Ocineira de Sexualidade, principalmente se ela trabalha com o público infantojuvenil. Foto: Midia Ninja
47SAMPA MUNDI ///Antes de pensar em qualquer ação de enfretamento, precisamos tratar as atividades que abordam sexuali-dade junto ao público infantojuvenil com o compro-misso e seriedade que merecem.É preciso que nos debrucemos em estudos sobre se-xualidade – e não estou falando apenas de estudos acadêmicos. Precisamos nos atentar às dinâmicas dos territórios sobre os quais nos propomos a trabalhar e entender qual é nosso lugar de existência e fala nesses lugares. Por exemplo, se eu sou moradora do distrito do Grajaú, no extremo sul da cidade de São Paulo, e me proponho a trabalhar num bairro da Cidade Tira-dentes, eu preciso entender que, embora sejam duas regiões periféricas, as lutas e conquistas da zona Leste e zona Sul foram construídas com histórias e perso-nagens diferentes. Eu tenho uma vivência periférica de um distrito da zona Sul e talvez nossa dinâmica não contemple as vivências da zona Leste e vice-ver-sa. Também pode ocorrer de termos lutas, percursos e vivências diferentes dentro da mesma região, pois, ainda que tenhamos “o mesmo céu e mesmo CEP no lado sul do mapa”1, construímos nossas relações de jeitos diferentes, embora algumas coisas sejam pare-cidas. Como dizem as adolescentes nas ocinas “nem melhor, nem pior, apenas diferente, né?”.Como enfrentar essas barreiras?1”Da ponte pra cá” – Racionais MC’s https://www.youtube.com/watch?v=VDYRbLOdTAI
48 \\\ SAMPA MUNDIÉ preciso estudo de território, sem sentimen-to de superioridade, é preciso (re)conhecer e respeitar os caminhos abertos por quem chegou antes de nós, construiu a resistência e preparou o terreno para semearmos nossa sexualidade aorada.Eu escolhi trilhar o caminho acadêmico, mas tenho ciência de que o saber não se constrói num canto só. Graduei em psicologia, sou es-pecialista em Gênero e Sexualidade, mestra em Educação Sexual e doutoranda em Hu-manidades, Direitos e Outras Legitimidades. Esses títulos nada teriam efeito em meu tra-balho se não fosse o aprendizado que o terri-tório me traz e a boa e velha manha.Certa vez vi um pixo com os dizeres “saber você sabe, cê só não tem as manha”. Eu acho isso genial!Porque não adianta só estudar o território, saber de onde vem sua fala e para onde está indo a escuta, você precisa desenvolver as manhas. Manha para equilibrar o respeito à sua personalidade e também valorizar as crianças e adolescentes, e junto com tudo isso organizar o conteúdo que vai trabalhar. E para desenvolver as manhas, temos dois pontos importantes de reexão:O primeiro é compreender que vivemos numa sociedade que trata assuntos relacionados à sexualidade como tabu e isso diculta nosso diálogo sobre o tema. O segundo ponto é o fato de estarmos numa estrutura racista, ma-chista, classista e adultocêntrica que trata o homem cisgênero branco, rico e adulto como o centro das decisões e único capaz de ree-tir e produzir conhecimento. Esses aspectos juntos fazem com que acreditemos na ideia de que não se deve falar sobre sexualidade com crianças e adolescentes periféricos, anal a prioridade é a educação para o trabalho. A crença de que as crianças e adolescentes de periferia já respondem como adultos por seus atos faz com que tenhamos o desao de enxer-gar meninos nos olhos dos meninos, meninas nos olhos das meninas e menines nos olhes de menines2. Além disso precisamos contribuir para que elas próprias se vejam como crianças e adolescentes, descosturando de seus rostos a venda adultizadora que as violações de direi-tos lhes colocaram. Há, por m, uma estratégia de trabalho para a Ocineira de Sexualidade Infantojuvenil, que é a aproximação com adultas(os) respon-sáveis pelas crianças e adolescentes. Ultimamente tenho adotado a postura de convidar os adultos responsáveis para um momento que chamo de pré-ocina. Eu digo: Nós vamos viver a atividade que farei com as crianças na próxima semana.Essa aproximação tem gerado bons processos e permitido conversar sobre aspectos muitos 2Menina, menino e menine correspondem ao gênero feminino, masculino e neu-tro, respectivamente.
49SAMPA MUNDI ///primários da sexualidade com pessoas adultas.Mulheres e homens adultos recordam a in-fância, falam de suas primeiras descobertas corporais e assim compreendem a necessi-dade de abordar tais temas com as crianças agora e não só na adolescência. As atividades de pré-ocina que elaborei consistem basicamente em pedir que as pes-soas adultas me contem sobre suas primeiras experiências com determinadas situações. Peço que falem sobre o primeiro brinquedo, primeira vez que quis ver a genitália de ou-tra pessoa, primeira vez que se apaixonou... E por aí vai.Parece uma atividade divertida (e na maioria das vezes é mesmo), mas também traz consigo algu-mas situações delicadas, como quando falamos do primeiro amor em um grupo de mães.Eu estava numa atividade com aproximada-mente vinte mulheres, periféricas, majorita-riamente negras, na faixa etária de 28 a 40 anos e solicitei: Fale sobre a primeira vez que se apaixonou.Inicialmente houve risos, algumas brincaram dizendo ter sido no século passado, mas a primeira que se pronticou a falar seriamen-te sobre o assunto contou que se apaixonou aos nove anos de idade por um menino da mesma turma da escola. Recorda que o garo-to era briguento, batia em todo mundo, mas que nela ele nunca bateu, então ela se sentiu especial e se apaixonou. Outra mulher rela-ta que gostava de um garotinho da sala que sempre a defendia dos valentões que queriam bater nela. Uma moça, a mais jovem do gru-po, relembrou que na infância um garoto a agrediu e para consolá-la alguém disse que ele batia nela por estar apaixonado, então ela se encantou por ele também. Após aquela atividade quei com duas ques-tões martelando: 1) todas as mulheres daque-le grupo tinham vivido sua primeira paixão (ou primeiro amor) na infância, antes dos onze anos; 2) todas elas tinham a violência como um fator que atravessava essa experi-ência de se apaixonar.Decidi car mais atenta às respostas dadas por mulheres, responsáveis por crianças e adolescentes, nos momentos de pré-ocinas. E não houve um só encontro com adultos que essas duas questões não se zessem pre-sentes: a ideia de amor romântico na infância e a violência como fator presente nas experi-ências relatadas.Quando eu perguntava sobre apaixonar-se na infância, os adultos brincavam, dizendo que criança confunde amizade com amor ou que desde pequenas já sentem esse dese-jo “natural” de namorar. Sobre a violência, a maioria dizia nunca sequer ter reparado em tal “coincidência”.Deixo as palavras entre aspas, porque é im-portante olhar para isso que estamos chaman-do de “desejo natural de namorar” antes dos onze anos de idade e também para os relatos
50 \\\ SAMPA MUNDIde “coincidência” de apaixonar-se, ora por al-guém que promoveu uma agressão na infân-cia, ora por alguém que a protegeu de uma situação de violência nesse mesmo período.Recordo novamente um trecho de minha história de vida, pois eu fui uma criança pe-riférica e acredito que falar de mim não é apenas um ato de ressignicação, mas tam-bém um exercício de me aproximar e me entender também como parte da história da infância periférica nos anos 1980 e 1990 na cidade de São Paulo.Fui uma menina que teve a infância perme-ada por canções de amor, livros com prin-cesas se casando e histórias de pessoas que viveram felizes para sempre. No momento em que eu poderia aprender e experimentar diversos sentimentos, fui educada para tratar qualquer afeto como amor. Se eu admirava alguém, era amor, se eu achava alguém inteli-gente, era amor. Tudo era amor e tudo que eu fazia era para alcançar o amor.Eu, quando adolescente, queria muito me casar. Achava que essa seria a coisa mais bo-nita que poderia me acontecer. Hoje consigo perceber que o estímulo que recebi para que-rer viver outras coisas era pouco, quase nulo. Ninguém me ensinou que existia mundo fora do meu bairro. O mundo sempre foi apresen-tado a mim como uma esquina. Eu, na ado-lescência, nunca ouvi os termos: graduação, mestrado, doutorado, intercâmbio, uência em outras línguas, viajar sozinha, aventuras pelo mundo...Eu ouvia era: amor, marido, lhos... E esta-ria tudo bem ouvir isso, porque essas coisas também podem ser parte de uma experiência legal de se viver, mas quando o casamento se torna a única possibilidade de estar feliz, daí vira problema.O trabalho de Ocineira nas temáticas de Sexualidade Infantojuvenil me oportuniza reexões incríveis sobre o percurso históri-co da sexualidade, me faz perceber o quanto nós, adultas(es/os) periféricas(es/os), majori-tariamente pretas, temos lacunas que preju-dicam a construção de uma relação amorosa com nossos próprios corpos. O autoamor que bell hooks menciona em seus textos como uma ferramenta potente para combater o auto-ódio que o racismo ensina, parece algo distante e por vezes é ridiculariza-do ou tratado como uma nãoprioridade. Cul-tivar o autoamor é um processo de constru-ção de percursos e exercícios que promovam maior autonomia sobre nós mesmas. É importante dizer que na infância periférica ainda são poucos os conteúdos relacionados às formas saudáveis de lidar com os senti-mentos e afetividades. Além disso é contra-ditório o modo como falamos de afeto com as crianças, pois de um lado acreditamos e tratamos como brincadeira o “namoro” entre elas e do outro negamos a importância dos temas sobre sexualidade na infância. O trabalho de Ocineira em Sexualidade é uma espécie de convite à ampliação de mun-
51SAMPA MUNDI ///do, mas muitas vezes nosso convite é nega-do e precisamos repensar a festa. Defender a Educação Sexual é um exercício de buscar saídas no breu, e se encantar com uma pe-quena faísca que reacende nossa crença na potência dos afetos. Nesse caso, toda pessoa que se propõe a trabalhar temas de Sexuali-dade Infantojuvenil, leva uma espécie de fa-ísca, facilitando o processo de enxergar a si e aos outros. Finalizo esse artigo citando Manoel de Bar-ros, que me foi apresentado pela amiga e psicanalista Liliane Maria Silva: “vagalumes driblam trevas”.Foto: Carolina Matias
Onde habito comuns> Por Helena Silvestre SAMPA MUNDI /// Foto: Rio Jaguaribe, passagem 12 – nas comunidades pobres, periferia da cidade. by GeoNando is licensed under CC BY 2.0
Nada sangra mais do que não ter lugar1Foram as palavras que o oráculo cantava numa poesia.Todos os dias, descolonizar.Todos os dias, criar raízes e asas.Ter seu lugar é pertencer a um chãoE é também poder nomear esse chão na históriaDo mundo e de mim mesma.O corpo é o primeiro territórioE ai de nós, mulheres de corpo apagado pelo gizBranco, muito branco e muito colonial.Estrangeiras em nossa própria carne...Quanto tempo foi que andei me escondendo de mim?Por quanto tempo o teu barulho ocidental me impediuDe ouvir minhas próprias veias abertasE desejos?Não! Eu não aceito estar encerrada em nenhuma de suas fronteiras! E não tenho pátria, nem bandeira, nem patrão, nem porra nenhuma de auxílio econômico ou vaga na UTI.Não falo desde uma condição sossegadaVenho da vida perturbada pela fome e pela pólvora.Mas não aceito! Não aceito estar encerrada em nenhuma de suas fronteiras,Não tenho pátria e ainda assim sou povo da oresta e a ela pertenço,Sou lha de territórios favelados parindo vida por todas as janelas,Nasci das tradições que sobreviveram criminalizadas nos terreirosOnde pude ouvir as almas dos meus mortos cantando iorubá.Não! Eu não aceito as suas fronteiras e nem tampouco a sua globalização,Que apaga meu mundo e meu corpoNa equivalência geral que assassina a tudo que não é a norma.Eu não sou norma! E me enraízo na terra a que pertenço.Eu não sou norma! E sustento uma comunidade que é quem suporta a alma dos meus dias.Eu não sou norma e é na distinção nomeada que me conecto a outros mundos possíveisEu não aceito ser estrangeira na vidaE mesmo assim desejo a sorte de habitar [comum]idade onde eu esteja.Porque nada sangra mais do que não ter lugar.1Verso do poema de Raíssa Padial Corso
SAMPA MUNDI /// DO MEU ESPELHO:> Por Luciana de Jesus DiasREFLEXOS E REFLEXÕES SOBRE O CINEMA FEMININO NEGROFoto: Erica Lewis - Unsplash
55SAMPA MUNDI ///A tarefa de escrever sobre a produção audiovisual do território das periferias que compõem a cidade de São Paulo e, mais especicamente da zona Sul, de uma perspectiva feminina, é um desao imenso. Tal qual o manuseio da câmera, é fazer um exercício de abertura e fechamento do diafragma, foco e desfoco, com a consciência de que todo enquadramento é um recorte da realidade. Nestes recortes é preciso informar que hoje acompanho esta cena como espectadora, observadora, entusiasta, e que esta produção audiovisual me alimenta nas ativi-dades que exerço no território como: educadora, pro-dutora cultural, pesquisadora das relações raciais. O ci-nema faz parte da minha vida e formação, e com ele fui desenvolvendo o que bell hooks chama de um “olhar opositor”, enquanto espectadora negra que aprende a olhar para uma produção imagética branca, opressora, e desenvolve outras possibilidades de ver. Lá no início dos anos 2000, quando a primeira gera-ção de muitas famílias negras e periféricas chegava à universidade, coletivos jovens retomavam uma práti-ca antiga feita pelos cineclubes e pelo movimento de “Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para o outro, dando nome ao que vemos. O ‘olhar’ tem sido e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado. Subordinados nas relações de poder aprendem pela experiência que existe um olhar critico, aquele que ‘olha’ para registrar, aquele que é opositor. Na luta pela resistência, o poder do dominado de armar uma agência ao reivindicar e cultivar “consciência” politiza as relações de ‘olhar’ – a pessoa aprende a olhar de certo modo como forma de resistência” hooks, bel. Olhares negros: raça e representação, pág 216.
56 \\\ SAMPA MUNDIvídeo popular: a exibição e debate de lmes. Éramos itinerantes nos bairros da periferia da zona Sul, exibíamos nos becos e vielas, daí o nome CineBecos, estávamos conectados a outros coletivos na cidade e iniciamos o re-gistro de imagem da nossa própria história. Retomando a expressão de Eder Sader: éra-mos novos personagens entrando em cena, no set, na edição e na exibição.Alguns de nós nos especializamos no audio-visual, outros e outras, como é meu caso, se aprofundaram em outras áreas do conheci-mento e contribuíam de outras formas: na escrita de projetos, na produção e circulação destas produções. A urgência que nos infor-mava e ainda nos informa é a de contar nos-sas próprias histórias, a partir de nossos per-sonagens e disputar o discurso hegemônico imagético.Nosso interesse sempre foi dialogar a partir dos lmes com nossas famílias, vizinhos e com outras quebradas. Nas nossas exibições itinerantes conseguíamos juntar donas de casa pra discutir lmes clássicos do cinema nacional a partir da perspectiva feminina, como A hora da Estrela, de Suzana Amaral, ou lmes menos conhecidos como Ôri, de Beatriz Nascimento e Raquel Gerber, lan-çado em 1989 e exibido pelo CineBecos em 2010. Este último me marcou profundamen-te e direi o porquê mais à frente. Neste primeiro momento, estávamos em uma espécie de estudo coletivo devorando e assistindo o que julgávamos que estava fora do mainstream, das salas de cinema e da cha-mada “retomada do cinema brasileiro” que insistia em estereótipos que nunca nos cou-beram. Mesmo sem saber, estava desenvol-vendo meu olhar opositor, exercendo minha agência ao escolher, exibir e debater os lmes em nosso coletivo.Sem a intenção de hierarquizar as produções artísticas, mas olhando sob o ponto de vis-ta dos campos de disputa de cada uma de-las, sempre soubemos que o cinema seria um desao para nós, pois dependia de meios técnicos caríssimos e inacessíveis e de uma especialização contínua em suas subáreas: fotograa, iluminação, edição e etc. Neste sentido, as políticas de fomento cultural para coletivos culturais como o VAI – Programa de Iniciativas Culturais do município de São Paulo – foram fundamentais, pois nos per-mitiram ter o primeiro projetor, a primeira câmera e a possibilidade de locação de alguns equipamentos de som e luz. Nos permitiam fazer curtas-metragens de baixíssimo orça-mento e circular esta produção entre os pares periféricos criando circuitos, redes e fóruns de cinema e também nos conectar com as ce-nas artísticas dos saraus e do teatro. O foco na produção de lmes foi pouco a pouco crescendo entre os coletivos audio-visuais periféricos, alguns de nós fundaram suas próprias produtoras, outros transitaram como colaboradores em diversos projetos. Neste corte de tempo localizo que algumas mulheres se especializaram e construíram suas próprias narrativas e carreiras no audio-visual, mas as oportunidades para que seus roteiros, fotograas e produções cresçam en-contram um gargalo quando falamos de fo-mento e distribuição de recursos.
57SAMPA MUNDI ///Historicamente temos o registro de raras presenças de mulheres negras na produção mainstream do cinema nacional; mas é pre-ciso fazer uma ressalva, porque há uma pro-dução feminina invisibilizada por ser realiza-da em outros suportes audiovisuais que não circulam no circuito comercial ou em outras funções diferentes da direção1. Fazendo o re-corte apenas do circuito comercial, o registro da primeira mulher negra a dirigir um longa metragem de cção é Adélia Sampaio com o lme Amor Maldito, de 1984. Somente três décadas depois, teremos um longa-metragem dirigido por outra mulher negra, com o do-cumentário O caso do homem errado, de 2017, da diretora Camila de Moraes, e o lon-ga ccional O dia de Jerusa, de Viviane Fer-reira, que acaba de ser lançado em 2020. O debate sobre a ausência feminina e a au-sência de mulheres negras neste mercado es-pecíco começou a ser qualicado há pouco 1Como por exemplo a trajetória de Cristina Amaral uma das mais DE importantes montadoras do nosso cinema com mais sessenta lmes em seu currículo. 2Importante fonte de pesquisa são os boletins publicados pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Armativa), com sede no IESP-UERJ, e a Pesquisa Mulheres no Audiovisual da Ancine, que, a partir de dados de 2016, fez o seu primeiro levantamento com enfoque interseccional entre raça e gênero.tempo com reexões, estudos2 e debates. Se por um lado há uma bolha de homens bran-cos que domina este mercado, é preciso pon-tuar que existe muita mulher, negra, periféri-ca produzindo audiovisual quando olhamos para outros circuitos, como o do cinema in-dependente e para outros formatos de lmes, como os curtas-metragens. Porém, quando se trata de acessar mecanismos de nancia-mento e distribuição de produções mais ro-bustas, como os longas-metragens com cir-culação no circuito comercial, esta presença se torna praticamente nula. Está explicitado aí um sistema racista, sexis-ta e classista do cinema nacional, que deli-mita quem terá acesso ou não à distribuição de recursos, à construção de imagéticas e ao direito de contar suas histórias em diversos formatos e suportes, com alcance a uma di-versidade de públicos. É neste ponto, sobre o apagamento histórico de certas narrativas,
58 \\\ SAMPA MUNDIque gostaria de me deter, no que tange ao que o cinema feito por mulheres e, especialmente o feito por mulheres negras, traz como potência e necessidade urgente a direitos usurpados.Escrevo este texto ainda sob os efeitos de um debate que ocorreu na internet, no qual uma cineasta gaúcha que, ao ser questionada sobre a europeização do cinema gaúcho, respondeu que não há como fugir da ascendência europeia da maioria de seus artistas, citando diversos sobrenomes. E ela continua dizendo: “não adianta a gente tentar fazer um lme da senzala, entende? (...) Eu inclusive tenho sangue francês (...) Cada um faz [lme] sobre a sua história....”. Está explicitada aí uma cisão, uma fratura que é da própria sociedade brasileira e que se transporta para as telas do cinema3.Quando ela evoca a sua ascendência, como a dos outros participan-tes do debate, exceto da única participante negra, ela está acionando um discurso racista que demonstra duas posturas muito comuns das nossas velhas elites, desde os tempos coloniais: a de que existe um “nós”, que são os descendentes dos europeus, e os “outros”, os da sen-zala, e que cada qual só pode fazer cinema a partir destes lugares. Os “outros” é o Brasil sobre o qual não se quer saber, conhecer, contar e re-conhecer em sua humanidade. A redução dos “outros” à experiência da senzala como local de subal-ternidade e prisão imagética é a repetição que o racismo brasileiro impõe a todos os negros que ousam qualquer mobilidade social ou disputar campos de poder com grupos hegemônicos. É um locus de aprisionamento e de limitação que eles ainda acionam e engendram para impor lógicas de desigualdades. 3O fato foi amplamente noticiado; ver, por exemplo: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/07/mariani-ferreira-luciana-tomasi-lme-de--senzala.htm?a_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996
59SAMPA MUNDI ///Mal sabem que foi nas senzalas que se planejaram fugas, rebeliões e os qui-lombos, que nas senzalas existiam “ores” ancestrais e experiências cul-turais, afetos e projetos que permitiram a sobrevivência de boa parte da população brasileira, apesar das insistências em nos exterminar e apagar. Já nos aquilombamos no set de cinema e isto já acontece nas muitas pro-duções audiovisuais de coletivos que levantam seus quilombos volantes (aqueles quilombos transitórios, erguidos durante a fuga até a chegada ao quilombo denitivo) quando se juntam colaboradores negros em todas as instâncias de produção. Aqui me lembro de um outro lme que marcou as exibições do CineBecos, o Encontro com Milton Santos: o mundo globalizado do lado de cá, de Silvio Tendler, em 2006. Milton, no alvorecer do século XXI, dizia que era das pe-riferias que emergia um outro modo de produção cultural e político, baseado na solidariedade e em outra ética e que, utilizando-nos do lixo tecnológico que nos chegava por meio da globalização, estávamos produzindo formas de ações inovadoras, ecazes e narrativas contra-hegemônicas. Nestes jogos de poder e de linguagem, o racismo antinegro informa os luga-res estruturais e imaginários que nos caberiam no cinema nacional, tal como era a senzala: apartado, marginalizado, de anonimato e aprisionamento de signos. O cinema como linguagem artística, que nasce no m do século XIX, serviu para contar um Brasil que, mesmo depois de 130 anos da abolição da escravatura, se pensa apenas branco. Desta forma, é necessária uma repara-ção histórica que o cinema nos deve e esta reparação irá promover mudanças estruturais nos códigos, modos de fazer, histórias a serem contadas...Temos uma urgência de narrar e, ao olharmos para a produção audiovisual periférica da última década e, em especial, para a produção de mulheres ne-gras, encontramos um universo em que nossas histórias são contadas. Aqui cito alguns trabalhos que chegaram a mim, o que não signica que este uni-verso não seja muito maior e em constante expansão: Lilian Solá Santiago, Renata Martins, Larissa Fulana de Tal, Janaina Oliveira ReFEM, Yasmim Tay-ná, Juliana Vicente, Joyce Prado, Carol Rodrigues, Day Rodrigues, Karoline Maia, ais Scabio, Jessica Queiroz.
60 \\\ SAMPA MUNDIÉ importante dizer que essas mulheres negras também produzem lmes em diferentes formatos, fundam produtoras, estão à frente de Festivais e Mos-tras, da organização política do cinema negro no país, com iniciativas como a Associação de Prossionais do Audiovisual Negros (APAN) e o site Griottes Narrativas, que mapeia roteiristas negros. Desta forma, quando meu olhar opositor de espectadora, como nos diz hooks, encontra na produção destas mulheres desaos imagéticos deslocan-do os estereótipos racistas e machistas, elas me convidam a olhar de um jeito diferente, a partir de um olhar cúmplice que desenvolve códigos próprios pra arquitetar a fuga da casa grande e fundar o próprio quilombo. Nesta troca de olhares me apontam a possibilidade de produção de uma outra narrativa, de uma “subjetividade negra radical”.No que tange aos códigos estabelecidos de um cinema branco é preciso dizer que já está ocorrendo uma reinvenção dos mesmos a partir de outras cos-mologias e cosmogonias. Talvez estejamos vivendo no cinema operações de transgressões que nossos antepassados realizaram na ordem escravocrata ao agenciar as narrativas que lhes eram impostas, como por exemplo no con-texto simbólico-religioso católico do Congado, tão brilhantemente analisado por Martins (1997):“(...) Em todas as narrativas os sintagmas ver, poder, resistir, insistir, transgredir, apa-rentar e lutar são atributos do negro em oposição ao branco que quer, olha, agride é vencido. O branco olha a imagem, mas é o negro que a vê. O branco quer entronizar a Santa, mas ela se senta nos tambores negros (...) “No âmbito de sua simbologia, o discurso narrado pela tradição e performado pela transmissão movimenta o código das aparências, não apenas na transgressão do sistema simbólico dominante, mas também na inscrição de uma perspectiva de mudança nas posições do negro na or-dem escravocrata”. (Martins, 1987, p. 60) Podemos dizer que estamos vivendo movimentos de tensionamentos e trans-gressões raciais no cinema assim como na sociedade brasileira como um todo, e este é um processo de longa duração que se inicia lá atrás com nossos antepassados e nos lembra das estratégias de resistência dentro das estruturas racistas e machistas que vivemos. Assim como no Congado, que transgride o sistema simbólico e reposiciona o negro na ordem escravocrata, o cinema
61SAMPA MUNDI ///é uma linguagem poderosa de resistência e agência que nos impulsiona a um desao colocado por hooks: “(...) eu não só vou olhar. Eu quero que meu olhar mude a realidade”.Em que medida o cinema feminino, negro, periférico pode mudar a realida-de? Para me aproximar desta resposta, invoco novamente hooks, que invoca Stuart Hall, que invoca Fanon: nosso cinema é disputa de imaginário, por-tanto, de poder; politizamos as relações de olhar, cultivamos possibilidades de ser e estar para além dos aprisionamentos que nos impuseram. E o poder, assim como a identidade, é construído em uma constante dialética entre o que está dentro e o que está fora de nós.E, para alagar esta roda ancestral de conhecimentos diaspóricos, recuperan-do a metáfora do espelho citado por Hall e hooks, o cinema não é “espelho de segunda mão”. Para espectadoras opositoras do cinema feminino negro, este cinema é, tal qual espelho de Oxum, não apenas o que reete aquilo que é interior, mas também é arma que cega a vista dos inimigos e antecipa um ataque. Podemos vislumbrar que este espelho de Oxum é um mosaico, e o cinema é um destes fragmentos identitários que compõem os espelhos individuais e nos informam quem somos, compõem as nossas imagens e nos permitem vislumbrar o que virá.Me lembro o quanto foi impactante ouvir na narração do lme Ôri, nas pala-vras de Maria Beatriz Nascimento: “É preciso imagem para recuperar a iden-tidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reexo do outro, o corpo de um é o reexo do outro e em cada um o reexo de todos os corpos (...)”. A imagem e a voz dela me marcaram profundamente por ela ser: mu-lher negra, sergipana como minha mãe, intelectual como eu pretendia ser, falando em primeira pessoa de sua experiência que informava a minha. Pude ressignicar a minha infância com os lmes Lápis de cor, de Larissa Santos, e Cores e Botas, de Juliana Vicente. Não à toa, em ambos os lmes as crianças se tam em espelhos e nas lentes das câmeras e performam quem são. Nos lmes de ais Scabio pude imaginar, sonhar junto, fabular com seus pequenos personagens de Caixa d’água e Barco de Papel. No lme A boneca e o silêncio, de Carol Rodrigues, me vejo na jovem que sente solidão ao decidir sobre o próprio corpo e vida. No Aquém das Nuvens, vislumbro
62 \\\ SAMPA MUNDIa possibilidade de afeto em uma família negra longeva. Minha dança encon-trou potência quando conheci Mercedes Batista por meio do Balé de pé no chão, de Lilian Solá Santiago, e passei a assistir a videoclipes de outra forma depois da produção de Joyce Prado.Com tantas histórias a contar, com tanta potência, as perguntas são muitas: Por que esse cinema não tem maior alcance? Por que não temos nossas narra-tivas nas telas do cinema? Por que nas últimas três décadas não tivemos aces-so aos mecanismos de nanciamento e distribuição no cinema comercial? É justamente esta nossa geração do interstício que vem cobrar e que tenta produzir, como resposta a este vácuo de representação. Os tensionamentos de que falei anteriormente se apresentam no cinema de uma forma explícita e já vêm de longa data: precisamos de políticas públicas que nos permitam acessar o que nos é de direito, como participantes de uma política cultural que se diz pra todos, mas é acessada por uma elite branca que é, ao mesmo tempo, elite econômica e cultural. Não estamos interessadas em ser mãodeobra para este cinema que se pensa branco e poderia “ceder” o espaço para um câmera negro aqui, uma roteirista negra acolá, e se dizer antirracista. Estamos falando de um outro cinema, que irá narrar memórias silenciadas, que irá se organizar de um outro lugar, que vai fazer escolhas estéticas a partir de outras referências, que vai dialogar com outros cinemas das diásporas e com o cinema africano. Como espectadoras estamos sedentas destas experiências, pois estamos can-sadas de sermos “abusadas pelo olhar” como bem deniu uma das entrevis-tadas de bell hooks e cansadas das imagens de controle como nos ensinou Patrícia Hill Collins. Deixei de assistir a muitos lmes por já saber o que encontraria no que tange à representação de corpos femininos negros nas narrativas hegemônicas: empregada doméstica, a mulata exportação, a trai-çoeira, a lasciva... Aos poucos você vai identicando todos estes elementos e entende que é uma tentativa de desumanização dos nossos corpos por um grupo que tem o poder de controlar o imaginário.
63SAMPA MUNDI ///Oladimeji Odunsi / UnsplashFoto: Nadeena Granville / Unsplash
64 \\\ SAMPA MUNDIPara mim o cinema é possibilidade de recuperarmos a humanização dos nos-sos corpos e representações, nossas memórias ancestrais em diversos níveis, e de deixar um legado de nossas experiências para os que virão com elementos simbólicos, imagéticos, discursivos, com documentos, depoimentos, paisa-gens. Negar o acesso ao cinema soa para mim como uma nova tentativa de se contar um Brasil a partir de uma encomenda para terceiros, como na época dos gravuristas europeus que vinham em missões no Brasil imperial e retratavam o que viam sob a ótica branca, com um agravante: não é preciso importar o olhar estrangeiro, ele agora é endógeno. Aqui lembro do lme potente Filha Natural, de Aline Motta, que, utilizando a iconograa histórica e relatos orais de sua própria família, recupera a me-mória de sua tataravó, que viveu em uma fazenda escravista em Vassouras (RJ). Este vídeo nos diz que a partir de agora vamos interrogar o passado, construir contramemória, recuperar nossas histórias. Mesmo quando buscamos nas referências mais ousadas na história do cine-ma brasileiro, como o Cinema Novo, encontramos tentativas frustradas deste diálogo entre a sétima arte e o povo negro, pois como bem observou Carvalho e Domingues (2017): “O cinemanovismo foi um movimento tremendamente inovador em termos políticos e estéticos, mas em termos sociais consistia em um grupo de homens brancos da classe média. Ao retratarem negros, eles estavam também retratando a si próprios e suas próprias projeções, fantasias, alegorias e identicações.” Contemporâneos do Cinema Novo temos uma geração de atores e atrizes ne-gros que iniciaram suas carreiras nestes lmes, como Milton Gonçalves, Léa Garcia, Jorge Coutinho, Antonio Pitanga, Zózimo Bulbul, e é nos anos 1970 que estes dois últimos também se tornam diretores. O próprio Zózimo fez a crítica do Cinema Novo e trilhou seu próprio caminho, aliado ao movimento negro brasileiro, sendo um referencial para este, o cinema negro brasileiro, com várias produções e iniciativas que reverberam até hoje, como a criação do Centro Afro Carioca de Cinema no Rio de Janeiro.
65SAMPA MUNDI ///Nos anos 2000, temos mais dois importantes movimentos de cineastas negros que reivindicam uma nova forma de organização do cinema brasileiro e que tencionam e disputam este campo de forma pública, chamando o debate com interlocutores em várias esferas, propondo agendas e postulando estéticas. São eles: O dogma feijoada (2000) e o Manifesto do Recife (2001). Passados vinte anos destes dois manifestos, e com a chegada de uma nova geração no cinema negro cuja expressão feminina é um fator preponderante, podemos dizer que estamos pautando este debate público há muito tempo, com pou-cas respostas estruturais no que tange a estes mecanismos de reprodução de privilégios da branquitude no campo cinematográco.O cinema feito por mulheres negras é, como bem deniu Edileuza Souza (2017) um cinema de “identidade e afetos” e essas identidades são múltiplas porque somos múltiplas. Ao construir nossos roteiros, lmar nossas histórias, temos muitos cinemas femininos negros, plurais em seus conteúdos, formas e linguagens. Quando estas imagens e sons se ampliarem, será inevitável que componham as identidades e subjetividades de outras mulheres e que, não tenho dúvida, se apresentarão como possibilidades transgressoras de ser e estar numa sociedade machista e racista como a nossa, pois são poéticas e imagéticas transgressoras.Um próximo passo concomitante é o encontro entre vários olhares oposito-res e a consolidação de uma prática de escrita crítica de espectadoras negras, pois somos muitas e estes olhares informam práticas de resistência. Quero que, quando as luzes se apagarem nos cinemas, nas salas de aula, nos cine-clubes, a possibilidade de uma “subjetividade negra radical”, como diz hooks, se materialize, e aconteça, como em um ritual da Congada, a transgressão de sistemas e a possibilidade de mudanças. Vislumbro que ao término das exibições, possamos reverberar em muitos espaços discursivos: novas produ-ções, críticas, debates, encontros e reinvenções do futuro. Nestas exibições, espelhos serão forjados, olhares opositores, lapidados e uma nova ordem na disputa de imaginários, continuada.
66 \\\ SAMPA MUNDI> Referências BibliográcasAGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA. Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016. Dis-ponível em: https://www.ancine.gov.br/sites/default/les/apresentacoes/Apresentra%C3%A7%C3%A3o%20Diversidade%20FINAL%20EM%2025-01-18%20HOJE.pdfBUENO, Winnie. Imagens de Controle: um Conceito do Pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Edi-tora Zouk. 2020.CARVALHO, Noel dos Santos; Domingues, Petrônio. A representação do negro em dois manifestos do cinema brasileiro.Estudos Avançados, São Paulo , v. 31,n. 89,p. 377-394, abr. 2017 .HALL, Stuart. O espetáculo do “Outro”. In: Cultura e Representação. Organização e revisão técnica: Arthur Ituassu; Tradução: Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. Editora Elefante, 2019.JUNIOR, João Feres. Boletim GEMAA: Raça e Gênero no cinema brasileiro (1970-2016). Grupo de Estudos Mutidisciplinares de Ação Armativa (GEMAA). Rio de Janeiro: IESP-UERJ, 2017. Disponível em: <http://gemaa.iesp.uerj.br/boletins/boletimgemaa-2-raca-e-genero-no-cinema-brasileiro-1970-2016/>.MARTINS, Leda Maria. Afrograas da memória: o reinado do rosário no Jatobá. Perspectiva e Mazza Edições, 1997. OLIVEIRA, Janaína; FREITAS, Kênia (org). Cinema negro contemporâneo e protagonismo feminino. In: Dire-toras Negras no Cinema Brasileiro, 2017, (Catálogo).SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma or – esperanças e recordações na formação da família escrava: Bra-sil Sudeste, século XIX. 2ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.SOUZA, Edileuza. Diretoras Negras: Construindo um cinema de identidades e afeto. FREITAS, Kênia (org.) In: Diretoras Negras no Cinema Brasileiro, 2017, (Catálogo)SILVA, Cleonice Elias da. Mulheres negras no audiovisual brasileiro. Revista Digital de Cinema Documentá-rio DOC ONLINE. 2018. In: http://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/index.php/doc/article/view/370/203
67SAMPA MUNDI ///> Filmes citados: Ferreira, Viviane. O dia de Jerusa, curta-metragem de 2014; o longa, de mesmo nome, foi lançado em 2020.Gerber, Raquel. Ôri, roteiro: Maria Beatriz Nascimento, 1989.Martins, Renata. Aquém das nuvens, 2010.Moraes, Camila. O caso do homem errado, 2017.Motta, Aline. Filha natural, 2018/2019.Prado, Joyce. Direção dos videoclipes da cantora Luedji Luna como: Um corpo no mundo e Banho de folha, entre outros, 2017.Rodrigues, Carol. A boneca e o silêncio, 2015.Rodrigues, Day. Mulheres negras: projetos de mundo, 2016.Sampaio, Adélia. Amor maldito, 1984.Santos, Larissa. Lápis de cor, 2015.Scabio, ais. Barco de papel, 2018, e Caixa d’agua, 2013.Solá Santiago, Lilian. Família Alcântara e Bale de pé no chão, 2005.Tendler, Silvio. Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá, 2006.ayná, Yasmin. Kbela, 2015.Vicente, Juliana. Cores e botas, 2010.
Lajes SAMPA MUNDI /// > Por Shirlei do Carmo
Nas lembranças da infância existiram os domingos que pareciam festa, gente falando alto, uns subindo e descendo latas, com o cheiro do chur-rasquinho, que celebrava o rito concreto, também preenchiam a laje. Para encher uma laje os vizinhos se reúnem, o domingo começa cedo, para dar tempo de jogar água e ligar os grãos de areia com o cimento, enquanto os copos também passam frequentes brindando o esforço dos corpos, e o anúncio da moradia.
70 \\\ SAMPA MUNDIAs lajes da minha infância nunca foram solitárias e permanecem as-sim nos dias; espaços de convívio, para estender roupas que dançam o balé do vento, de olhar para o céu e estender o corpo com a linha da pipa, para voar até o innito, onde tudo é só liberdade; para colo-car as plantas e chamar a memória da terra deixada pelos nossos em busca do pão de cada dia, que é pago com o suor da gente.Dia desses fui à casa de uma amiga, laje alta, com vista bonita dos morros e da represa, com o vento bom que percorre o corpo, arrepia os pelos, e a gente tomou banho de mangueira, assou umas carnes; naquele espaço voltou a ser criança, numa tarde, estava todo mundo lá, até quem não foi, mas já brincou nas lajes da memória da gente.Repara que é diferente car debaixo da laje, os espaços cam bem menores, divididos nos cômodos que chamam os fazeres, para pre-encher o tempo, sem o sol ou as estrelas, reservado para as intimida-des, ou para as histórias que entre quatro paredes cam só na imagi-nação da gente.Outro dia, no caminho para o mercado, fui reparando nas lajes, em como elas desenham nossa diversidade, dos mais festeiros aos vizi-nhos que botam logo um telhado em cima, o jeito da nossa casa con-ta um pouco sobre a gente, de frente aparentemente, mas se chegar na laje já passou por dentro, pelo corredor ou escada, pelas portas das famílias que dividem quintais, e histórias de sobrevivência. Já foi numa festa na laje? Dá nem para acreditar que cabe tanta gente.Tem muita laje que é jardim, com beirais de erva cidreira, de espada de São Jorge, acompanhado de quintal com samambaias, e vasos que já foram tantas coisas, agora são pouso da resistência, desse chamado para a terra, que insistem em concretar nas cidades.
71SAMPA MUNDI ///A laje da minha casa é meio horta de temperos e ervas, um tanto pomar, casa de gatos que não sei o nome, dos passarinhos que me acordam, da esperança que veio me visitar. É pouso de pipas manda-dos, da minha saudade do sol, dos silêncios que guardam segredos e curas, da vontade de ter terra para plantar.Os dias começam com o cheiro de café embaixo da laje, seguidos da subida na escada para acessar o mundo laje, e do esguicho da man-gueira que rega minhas plantas e as da minha mãe, que moram no telhado vizinho. Uns dias o jasmineiro perfuma a vista; noutros o manjericão com as abelhas em voo sonoro, o vento espalhou as se-mentes de salsinha que cobriram os vasos, temperando a insistência das garrafas recortadas, que viraram casa das raízes, sou cheia de sau-dades e esperanças, feito a subversão do concreto de puxar a memó-ria do sítio, que também chamava boa vista.Minha casa não tem vista para a rua, ca nos fundos, feito a gente das periferias, que guardamos universos; para ver é preciso entrar nos corredores, becos e vielas, entrar com calma, senão nem se dá conta da laje, só enxerga os beirais que cam à vista nas ruas.Tem um ditado popular que diz que a vida não dá colher de chá, por isso a gente insiste, e planta, o chá da gente, se cura e semeia, junta gente para dar forma nos nossos sonhos, e esquenta a teimosia de fazer dos nossos espaços concretos o terreiro da memória. Famílias crescem, as lajes ganham rumos de outros lares, que abri-gam os sonhos dos lhos, dos netos; muitos quintais viram garagens, mas as lajes continuam lá, camada por camada, anunciando o dia do churrasco, da festa de aniversário, do baile noite adentro, da passa-gem do tempo, dessa geograa periférica, do exercício de olhar para longe e mesmo assim car cada vez mais perto.
72 \\\ SAMPA MUNDICalma> Por Hayara Alves SAMPA MUNDI /// Ilustração: Rodrigo kenan
Ainda deixo chá de morango no armário na espera que você apareça. Sonhei que chegava no Rio contigo, cê tava de biquíni branco, com o cabelo colorido. Escuto Planos do BK e ainda penso em você; aliás como me esquecer de você? Eu disse que caria a te esperar, que entenderia quando faltasse fôlego e teria paciência. Eu pedi calma, logo eu que vivia correndo, mas te pedi calma... Eu via nossa juventude, nossa euforia e eu te pedi calma...Eu sempre soube que amar era gatilho, que eu tinha medo, mas precisava sentir isso. Eu odeio o quanto eu aprendo com o adeus, mas eu amo poder celebrar os momentos além das fotos, mesmo que seu amor já não seja mais meu. Eu co aqui, e tô rezando pra que você encontre um caminho de esperança Que nada pare o teu sorriso de criança, e que você me perdoe por ter te pedido cal-ma. Eu nem respirava quando te beijava, e ainda sim te pedi calma... Eu mataria alguém que atrapalhasse nossas transas, mas eu te pedi calma... Eu só te pedi calma.Eu não quero de volta nossas noites juntas, nossas fotos, os churrascos e os ani-versários em família. Eu só queria você aqui. Mas eu nunca mais vou te pedir calma. Eu sigo andando acelerado, tendo crises de ansiedade e o coração descompas-sado. Mas eu tô conhecendo os meus espaços, reescrevendo os meus relatos. Musicando os acasos, e fazendo poesias pra todos os apaixonados. Eu nunca mais vou te pedir calma. Vou ter a oportunidade de ir aos lugares que tínhamos vontade; com você no peito, mas não do meu lado. Eu estarei vestida de vermelho na plateia pra aplaudir sua vitória; eu sonho com teu sucesso e isso vai além da nossa história. Patroa, ca calma. Vai dar tudo certo, sua história tá pra ser mais bonita que imagina. Aproveite a magia da vida, menina. Eu só queria te amar, mas também queria calma. E eu nunca vou poder voltar, enquanto eu não encontrar essa calma.
SAMPA MUNDI ///
> Por Sol AlmeidaO segredo das ores intergalácticas do Capão
76 \\\ SAMPA MUNDIEm 1995, sob a constelação de Leão regendo o signo solar, nasci Tereza, lha de migrantes nordestinos. Com a genética tupi-nagô, sou lábios volumosos e cabelo crespo. Fui batizada com nome de menino.Se eu fosse uma or seria um lírio amarelo ou alaranjado. Seria um campo inteiro de lírios…. Aconteceu que não nasci nem lírio, nem mulher; tampouco nasci no verão e por isso odiava comemorar meus aniversários quando criança. Sou de agosto e quando é meu aniversário não tem noites calo-rentas como no verão, em que se podia pular corda na rua até bem tarde.Flores de camomila lembram muito as de margarida; camo-milas me lembram Oxum e Oxalá, pelas cores e tal. Hoje con-trolei minha indigestão com chá de camomila. Cresci cercada de expectativas para romper com os estigmas da realidade compartilhada em família; a solidão afetiva, o não término dos estudos, a inalcançável prossão por alguma graduação e a chegada do metrô na extrema zona sul de São Paulo. Na mi-nha casa fui a única que aprendeu a gostar de chás. Fazia parte de nossa educação comer cuscuz e ler o dicionário desde mui-to pequena, o que fez de mim criança bem nutrida e tímida. Não sei denir quem eu acreditava ser quando nasci, mas hoje posso enfeitar os cabelos com lírios e comemorar férias de verão com meus sobrinhos, como faziam minhas tias.Na minha família eu sou a primeira. Sou a primeira travesti. Estudante de escolas públicas, desaprendi sobre as tecnolo-gias e sabedorias ancestrais de casa e fui apresentada às in-tempéries do sistema escolar, que ensina todas as pessoas a pensarem como velhos homens brancos. O que ia na con-tramão da minha já identidade, forticada de algum modo pelas tradicionais reuniões em família, em que se ouvia black charm, forró e samba, em que se comia comida forte, bem temperada, com sabor do sul da Bahia e do norte do Piauí,
77SAMPA MUNDI ///onde também se ouvia falar tanto da trajetória de luta dos avós maternos feirantes e na dos bisavós paternos ocupados no plantio de milho, cana e mandioca.Uma vez, num churrasco de laje na casa de um dos meus primos, teve uma roda com minhas tias e a minha mãe; era muito comum vê-las assim, juntas e em roda. Minha tia mais velha contou, fazendo voz de segredo, que nunca teve nin-guém “assim” antes na família, que eu era primeira… Lembro que não existia mesmo ninguém parecida comigo, ninguém gostava do verão como eu. Para algumas crianças noventis-tas não era importante saber, mas em casa fui instruída, dia após dia, sobre o lugar em que cresci, a casa que veio da luta popular de ocupação, a primeira avenida do bairro, feita de barro batido, que era uma promessa de acesso à cidade, e o milagre da multiplicação, que fazia casas crescerem uma em cima da outra. Foi ali que fui coroada a primeira. Lembro um pouco do gos-to que tinha saber da notícia, era como um pudim de leite agridoce, temperado com choro. Minha mãe me acudiu por alguns minutos na escada, ouvi por acaso o assunto, e não consegui descer as escadas sozinha, nem parar de chorar, nem parar de comer o pudim. Minha mãe nunca me con-tou, ela sabia antes da minha tia, ela soube antes de mim, eu que demorei muitos anos pra entender que ia ser a primeira “assim” em muitos lugares. Esse lugar é o Jardim Jangadeiro, bairro encruzilhada que une Jardim Ângela e Capão Redon-do, que na época juntinho com o Jardim São Luiz formavam o triângulo da morte, como anunciavam as manchetes por conta do alto índice de violência (outra coisa que nem todas as crianças precisavam saber ou se preocupar). Nesse bairro foi possível ainda ter uma infância saudável, com possibili-dade de brincar e imaginar o futuro, até antes das 20h, horá-rio marcado como toque de recolher e de ajustar o corpo na cama pra poder sonhar com o futuro imaginado durante o dia inteiro.
78 \\\ SAMPA MUNDIAs memórias que tenho de minha tia falando sobre a digestão, que não eram memórias, eram broncas, hoje me são úteis pra tomar meu tempo quieta e fazer meu estômago entender o que estou sentindo e aproveitar somente o melhor do que ingeri. Não é engraçado, mas faço questão de rir porque sempre viro os olhos para as perigosas falas que naturalizam o processo de aprender com a dor, o calvário e etcetera, ou então estou falando de gastrite mesmo. Talvez saber pela minha mãe me ajudaria a entender por que conti-nuei crescendo assim, usando sutiãs dela escondida, arrastando os salto altos dela como carrinhos pela casa e escrevendo cartas como pretexto para usar batons e deixar marcado um beijo meu nas folhas. Minha mãe nunca se importou que eu fosse “assim”, foi ela inclusive quem deu meu primeiro vestido. Foi importante aprender a valorizar os tijolos baianos sem reboco, chegados pouco antes de mim ao mun-do, assim como a responsabilidade coletiva dos vizinhos em proteger e alimentar as crianças daqui. Dar valor, neste caso, signica encon-trar o “x” da equação, a quantidade de trabalho em relação aos gastos pra bater a laje e manter o feijão com arroz quentes todos os dias. Foi assim inclusive que aprendi matemática, pra não trazer o troco do pão errado, nem gastar a mais no detergente, que só tinha uma função na casa inteira, mesmo depois da virada do milênio, enquanto trocava os meus dentes de leite e me acostumava com a janelinha. Se eu tivesse nascido lírio, talvez nos aplicativos de namoro leria me-nos que sou a primeira travesti por quem alguém se interessou. Não que houvesse um pódio, nem que isso fosse uma corrida, mas na ver-dade é... Não importa de que esfera seja, meu estômago me fala sobre meus sentimentos e sempre foi assim, quando co triste sinto um oco, quando me irrito ele queima, quando sorrio ele traz a sensação de conforto de um corpo bem alimentado. Todo dia é como um úl-timo dia e conto cada segundo do tempo para realizar alguma coisa da minha lista de sonhos possíveis ao máximo, antes de fazer trinta e cinco anos, na dúvida de atravessar ou não a estatística de outras que, como eu, também negras, também travestis, não puderam orir lírio.São mais de trinta dias de um maio ensolarado, divididos entre ma-nhãs geladas e tardes quentes. Acordo todos os dias às seis, mesmo
79SAMPA MUNDI ///que tenha ido dormir às quatro; durmo até as dez para tentar regular o mínimo de rotina. Até as quinze já folheei os três livros que peguei pra ler, rabisquei uma folha inteira de caderno conversando com o cachorro, enquanto ele me olha implorando silêncio; ouvi o mesmo cd duas vezes, estudei coisas pro trabalho, pensei na minha mãe, con-versei com as poucas amigas e só parei pra pensar que não faz sentido criar um ritmo para estes dias no banheiro, no exato momento do xixi losóco em que a cabeça esvazia junto com a bexiga. Venho entendendo que quase sempre quando falam que sou a pri-meira, é só um apelo sigiloso do interlocutor ou da interlocutora pra não demonstrar que nunca pensou e também não entende muito bem como poderia um dia explicar a presença de uma travesti na sua vida afetiva. Isso já me fez sentir muito culpada.Fui criança de catequese, criada para crismar, estar mais perto de Deus. Quando saí da igreja, por culpa, ia percebendo as responsabi-lidades de ser adolescente para além de comprar pão e lavar a louça; fui lidando como podia com os novos pelos que cresciam nos bra-ços, pernas, rosto, nos meus não seios. Reparar que nesse momento o então pai já não estava em casa, sua presença era como um feriado: ele aparecia e no m do dia tudo era história e não se sabia dele até a próxima visita.Isso já me fez sentir muito culpada.Outras vezes ouvir que sou a primeira fez com que me sentisse como uma extraterrestre enviada somente para confundir a sexualidade humana. Quando não posso mais comigo, me pego dizendo a mim mesma que não tem sentido querer engolir a seco o medo que estou sentindo, não tem por que fazer maratonas e maratonas de séries e lmes se não presto atenção em nada, não é preciso comer tanto, pra tentar diminuir o tédio. Mas isso eu faço porque gosto de comer. Acontece que é tanta coisa, o papa rezando deitado, o reality show mantendo as pessoas ativas, o lme que eu vi há cinco dias atrás e não consigo esquecer porque fala do racismo estrutural que nega aos negros a oportunidade de terem um dia inteiro sem violência.
80 \\\ SAMPA MUNDIApesar disso, até nutria um sonho de professorar e ir pro exterior gastar o verbo to be que estava aprendendo. Já que antes era possível imaginar entrar num avião, fazer intercâmbio com uma família es-trangeira e voltar pro solo brasileiro com a glória de ter um carimbo no passaporte. Ainda que não tivesse acontecido a grande inaugu-ração do Hospital M’Boi Mirim, outra grande promessa, depois da chegada da linha lilás do metrô até o Jardim Ângela na época. Só pu-der ver concluídas as obras do hospital pouco tempo depois do meu primeiro beijo de boca na boca. Não fosse o fato de viver num país que lidera o número de violência contra pessoas trans e que também está no ranking de países que mais consomem pornograa trans no mundo, talvez eu nunca en-tenderia o porquê de algumas pessoas acharem mesmo que somos de outro planeta e que por isso somos “assim”. Já faz uns dias sem usar brinco e evitando o espelho, e tal. O caso é que de longe eu já tinha vivido tanta coisa, em tão pouco tempo... Es-tou sempre pensando em como tenho abandonado as certezas, como a do porquê de que durante a vida inteira deixei de ir a banheiros públicos. Ainda vivo no mesmo lugar, certa de que o lugar onde vivo mudou mais do que o meu corpo; uso vez ou outra meus próprios su-tiãs, quando ando por aqui deslo pelas calçadas usando um batom roxo e revivendo as experiências de crescer junto com este bairro, assim como os meus pelos, dentes siso e cabelos e as enormes cartas beijadas que distribuía para cada membro da família.Minha madrinha sempre fala que quando nasci tinha cólicas que mi-nha mãe controlava com chá de camomila morno; eu não tinha o nome de estrela que tenho hoje. Quando fui criança comia cuscuz com prazer porque era uma das poucas coisas que eu fazia com meu pai, hoje meu estômago diz muito sobre comer cuscuz e me enjoa ainda um pouco.
81SAMPA MUNDI ///Não acredito muito que existam travestis em outros planetas, como somos aqui; com certeza em outros somos respeitadas em nossas sin-gularidades, admiradas por nossos conhecimentos, não precisamos ter medo de morrer solitárias, estamos em todos os lugares e ultra-passamos os setenta anos de vida alienígena com muita dignidade.Quase fui convencida de que tinha nascido no corpo errado, no lugar errado, essas mesmas certezas me zeram tecer um conto que fala sobre identidade, em que falar de mim era encontrar uma maneira de falar de como fui sendo construída junto com esse bairro. O “não lugar” encruzilhada, entre o amontoado de casas e inúmeros bairros crescentes no agora distrito do Capão Redondo e à beira da Estrada do M’Boi Mirim e das águas mananciais da Represa do Guarapiran-ga, na margem. Sou Capão Redondo, imensidão laranja de casas, que mais parece um campo de lírios irrigado por milhares de caixas d’água azuis. Ser gente ainda vai ser sobre estar junto, aproximando nossas comunida-des de quem somos, de alguma maneira fortalecendo um canto para acolher os “não lugares” de quem somos e manter aceso o prazer de estarmos vivas e encararmos com mais vigor e orgulho os desaos da nossa “rebeldia” de gênero. Venho me fazendo Sol Tereza, lha de migrantes nordestinos, batizada com nome de menino, criada no triângulo da morte, educada com cuscuz e dicionário, conhecida por meus vizinhos como a do cabelo black, hoje em dia assunto nos chur-rascos de família por sempre deixar de ir. Nunca estive em outro lugar senão aqui, na margem de tudo. Ambos na periferia do mundo.Eu Capão.
Artes: Carolina Itzá
84 \\\ SAMPA MUNDIArtes: Carolina Itzá