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O PRESENTE e outras histórias

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1 ONOFRE dos Santos O PRESENTE e outras histórias

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2 ONOFRE DOS SANTOS Presentemente Juiz Conselheiro Jubilado do Tribunal Constitucional de Angola licenciou-se em Direito e em Ciências Económicas e Políticas pela Universidade de Coimbra em 1964. Advogado em Luanda, desde 1966, onde exerceu cumulativamente as funções de Juiz do Tribunal de Menores e de Execução de Penas de 1973 até 1975. Director Geral das Eleições de Angola em 1992. Consultor das Nações Unidas em várias missões durante as eleições na Guiné-Bissau em 1994; na Serra Leoa em 1996; no Bangladesh em 1996; em Vukovar, na Croácia em 1997, no Lesotho em 1998, na República Centrafricana em 1998; no Níger em 1999; na Costa do Marfim em 2000 e na Guiné-Bissau em 2003/2004. Consultor do Consórcio Eleitoral para o Registo Eleitoral em Angola (2005/2006) Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional de Angola desde 2008 até 2017, sendo desde então Juiz Conselheiro Jubilado. Autor dos seguintes livros : Não ficção: - Um sorriso para a democracia na Guiné Bissau (1994) - Elections in Sierra Leone (1995) - Os (meus) dias da Independência (2002/2013/2020) - Eleições Angolanas 1992 – Uma Lição para o Futuro (2003) - Legislação do Registo Eleitoral Anotada (2005) - Eleições em Tempo de Cólera (2006)

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3 Ficção - O Conto da Sereia (2013) - O Astrónomo de Herodes (2014) - O Gosto Amargo do Quinino (2015) - Memórias de um Dark Horse (2015) - Descompasso (2017) - Lenguluka (2019) - Vida e Morte do Comandante Raul Morales (2020) - E-Books - Luanga - O Último Romance de Camilo - O Peixinho que não sabia nadar - O Intérprete - O Presente e outras histórias - Esta vida é um circo

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4 ÍNDICE O Presente 5 O doce de mamão 10 Tons de azul 24 Ingrid e Manuel – Um amor de furação 28 Ter e não ter 32 O anjo do Kinaxixe 39 Raio de guerra! 45 O homem que viveu duas vezes 50 A flor da cerejeira 56 O homem que gostava de dançar 63 Como luzes e sombras 73 Recado de Santa Efigénia 78 O Natal de Santo Onofre 84

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5 O PRESENTE Estava à porta o dia dos namorados e o velho Caxiluanda, nome de casa persistente até à avançada idade que já se lhe via no andar, subia e descia as calçadas da velha Luanda em busca de uma inspiração para um presente para a sua luminosa Maria da Luz... de facto a luz dos seus olhos quando a sua longevidade o fazia já afundar numa progressiva escuridão. Maria da Luz não era a sua mulher, que já não tinha há muito tempo, mas apenas a sua amiga... sou a tua namorada, dizia-lhe ela por puro humor, com o seu sorriso resplandecente mas só o som dessa palavra namorada arrancava vibrações esquecidas nas estafadas cordas do velho violino cansado de tanto tocar no seu peito ao longo da vida. Namorada... o que essa palavra evocava na sua cabeça branca... quando rapazote, alisando o bigode, se preparava para agradar a mais uma bela jovem no clube do bairro... Antigamente, nem havia dia dos namorados, todo os dias eram...e era bem melhor assim, porque todos os dias são bons para segredarmos ao ouvido do nosso bem querer como a desejamos... não consigo passar uma hora sem pensar em ti...porque é que estás mais linda a cada hora que passa? Mas o tempo passou, vieram os trabalhos e o velho Caxiluanda lá casou com aquela que lhe pareceu ser a mulher da sua vida... só que a sua vida foi muito mais longa do que a dela e um dia Caxiluanda encontrou-se só, como alguém num cruzamento, à espera de uma mão que o guiasse, o orientasse pelos caminhos da vida em que se sentia perdido. Caxiluanda pouco a pouco foi preenchendo o vazio da sua vida regressando ao convívio de antigos companheiros em passeios e noitadas... as recordações também são uma forma de viver... e uma coisa aqui, outra ali, voltaram alguns hábitos completamente esquecidos, como uma pescaria pela madrugada escura na expectativa de ver um peixe a relampejar no anzol acendendo ansiedades no coração... o passatempo de outrora não sabia, no entanto, à mesma coisa agora... no baloiçar do barco, o fresco acumulado na noite a esvair-se, acariciava o rosto curtido de Caxiluanda, deixando vir à tona uma sonolência, um torpor que substituía, para sua grande decepção, a curiosidade

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6 sôfrega com que antes esperava o mais leve estremecer das águas, o debater de uma garoupa antes da sua entrega final... Caxiluanda sentia-se cabisbaixo, os olhos vidrados, apáticos e indiferentes à pressão da linha, ao brilho prateado de uma ou outra captura e dos festejos ruidosos dos seus companheiros...um sorriso frágil era a expressão eloquente de que já nada era como dantes. O seu olhar vagueava na noite, espreitando uma ou outra luz, procurando identificar prédios que não existiam no outro tempo em que tudo era motivo para esbracejar de entusiasmo, explodir de alegria na antecipação de mais uma proeza retumbante. Resignava-se depois à saudade e à escuridão. Mais à escuridão do que à saudade porque Caxiluanda não era dos que se resignava a viver de recordações. Por isso foi tão importante conhecer Maria da Luz... Ela é mesmo um farol que me apareceu no meio da escuridão da minha vida.... Caxiluanda conheceu Maria da Luz na companhia de um amigo. Eles iam de mão dada, Caxiluanda sorriu e murmurou... ainda há gente com muita sorte, olha só este com uma mulher assim, bela, esbelta, seios ainda empinados, umas coxas de respeito que mais parecem as paredes de um cofre forte.... - Nada, meu amigo, a Maria da Luz é minha irmã, esteve muito tempo longe, veio-me visitar... - Irmã? Caxiluanda sentiu que aquele simples pedacinho de informação ribombou como o desmoronar da fortaleza que o confinara, pensava ele, para sempre à mais solitária prisão. - Este é o meu amigo Caxiluanda... velho companheiro. Pela primeira vez, Caxiluanda não gostou que lhe chamassem velho, precisamente no momento que o seu coração começava a reclamar alguns restos de direito à juventude esquecida. - Caxiluanda? - Pode tratar-me assim, estou habituado, mas na intimidade pode chamar-me Manuel... - E vamos ser íntimos, Manuel?

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7 Caxiluanda nem se lembrava já quando ela lhe perguntou... mas chamar-lhe assim só mulher com quem ele já tivesse dormido... agora tudo indicava que tinha de conquistar aquela mulher com quem desejava tanto deitar-se. Maria da Luz engraçou-se como Caxiluanda. Quer ir numa pescaria comigo Miluz? Gostava de lhe chamar assim, foi ele mesmo que inventou porque você é a minha luz... explicou... e ela ria... não acreditava... No barco, o baloiço nas ondas já lhe parecia dança, o marulhar era música para os seus ouvidos, os olhos de Maria da Luz, eram mesmo luzes, Caxiluanda fechou os olhos e aspirou a fragrância que se desprendia do peito daquela mulher tão improvável ali, no meio do mar e da noite... e deu-se o milagre... Caxiluanda recuou no tempo, voltou a sentir aquela vontade ardente de a abraçar, de a tornar sua companheira, deitá-la no luando macio do seu quarto, para só sentir a doçura das suas formas aninhadas nos seus braços, as pernas entrelaçadas, o desejo a crescer... - Você sente o mesmo Miluz? - Sentir mais o quê, Manuel? - Vontade de dormir comigo... - A noite não foi feita só para dormir, estamos a pescar... Caxiluanda resignava-se, aquiescia, mas porque não dizê-lo, mantinha a esperança de que no fim da noite, de uma noite qualquer, tudo ia mudar e ele ia amar Maria da Luz como se fosse a primeira vez dele... e dela. Mas então agora, tinha esse dia dos namorados, ele preferia dizer a noite dos namorados... não se via tanto a idade, os defeitos... Qual então o presente para a Luz das suas noites insones... Caxiluanda era pobre, não podia pensar em joias, pulseiras ou braceletes, cravejadas de pedras flamantes... também a Maria da Luz não era dessas que gostava de enfeites, e ele a gostava também por isso, por ela ser assim desprendida... confiante na sua beleza natural... pensou num vestido, mas a Maria da Luz não apreciava vestidos de cortes muito complicados, ainda por cima muito caros, um escândalo... talvez um pano multicor para lhe embrulhar os braços nus e o peito solto que ele queria tanto descobrir... e cobrir... de beijos... Caxiluanda sonhava com os beijos que

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8 daria na sua Luz, ele próprio se enchendo de luz à medida que ela fosse a pouco e pouco se abrindo para ele... Continuava a correr as ruas da baixa apertando os olhos para melhor perscrutar e divisar atrás dos vidros de qualquer vitrina o presente que abriria o coração e, quem sabe, as pernas de Maria da Luz. Foi então que já vencido pela excitação viu numa montra algo que o fez tremer de entusiasmo... o presente ideal, na cor, no tamanho, em tudo o que nele cabia e nele sobrava com tanta perfeição! Um magnífico biquíni encarnado, enfiado num manequim de transparente acrílico como se fosse vestido por uma mulher invisível que ganhava o rosto e os contornos de quem o desejasse. Caxiluanda viu a sua cara de espanto reflectida no vidro da montra e não pôde evitar contemplar-se cansado, suado, avelhentado, a imagem viva do cliente menos plausível daquelas duas capitosas peças. Por alguns largos momentos Caxiluanda avaliou as proporções das peças expostas comparando- as mentalmente com as medidas que presumia das generosas formas de Maria da Luz... arriscando colocar as mãos em concha, uma em frente da outra, para melhor calcular a probabilidade de coincidência entre o conteúdo (imaginário) e o continente à sua frente... Posso ajudar o senhor? A jovem recepcionista da loja veio prestativa à porta do estabelecimento... Não é para mim... balbuciou o Caxiluanda, um tanto embaraçado... - Calculei... não é? Sua filha? - Sim, podia ser, mas não é... não lhe interessa mesmo saber... qual é o preço? Caxiluanda fez o encontro mental entre o valor indicado e as suas momentâneas economias que transportava desde manhã com aquela ideia pregada na cabeça de fazer um agrado irresistível à Maria da Luz. - Tenho uma surpresa para você Miluz... um presente... - Esse presente tem futuro Manuel? - Só você pode dizer, meu bem, depois de experimentar... - Ah, então é assim, coisa de provar? - Como você está a dizer Miluz... mas tem de me prometer que me deixa logo ver como fica...

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9 Caxiluanda sorria imaginando o diálogo a travar ao chegar à casa de Maria da Luz aconchegando contra o peito o bonito embrulho que a menina da loja preparou enquanto olhava de soslaio entre admiração e incredulidade o seu cliente daquela tarde... Quem abriu porta foi o seu amigo de mil e uma pescarias... - Eh pá... a Maria da Luz partiu esta manhã... ela não te disse? Caxiluanda estava aturdido... depois da canseira daquele dia a notícia à queima roupa da partida de Maria da Luz foi como um murro no estômago que o obrigou a dobrar-se... o embrulho ainda bem preso entre os braços como um escudo de protecção contra o golpe fatal... - Então velho companheiro, que é isso? Não te esqueças que logo à noite temos pescaria... Caxiluanda mais velho que nunca, parecia andar coxeando, seguia pela berma da marginal... se Maria da Luz o pudesse ver até o perder de vista teria notado que a certa altura ele estendeu o braço e um pequeno embrulho, um presente sem futuro, se soltou da sua mão, voou e descreveu um arco, indo acordar as águas sonolentas da baía.

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10 O DOCE DE MAMÃO “Passa-me esse doce Margarida”. Não era apenas um pedido mas quase um verso de amor, um poema feito de uma guloseima matinal que inundava de alegria o rosto agora tão envelhecido de Margarida, como a luz branca da manhã inundava a sala de refeições da velha casa residencial que ela vem gerindo com mão de ferro há quase três décadas. Depois que o país se voltou para o empreendedorismo, rapidamente ultrapassados os preconceitos comunitários da Independência, também ela com a ajuda das irmãs decidiu criar o seu próprio negócio, transformando a casa dos pais numa guest house de sucesso. Margarida repetia anualmente a receita, um ritual de amor e prazer que se iniciava logo que chegasse a época do bom mamão que ela escolhia a dedo, ou melhor a dedos, porque todos os dez eram convocados, primeiro para acariciar a pele amarelo alaranjada com pinceladas de verde daquele fruto em forma de seio cheio e empertigado, e logo depois para o pressionar e apertar, sentir a sua textura branda ceder especialmente nos polegares que se ferravam como duas garras na sua carne ainda não inteiramente amadurecida. Margarida não cheirava o mamão porque quase nenhum perfume dele se exala, muito menos quando ainda não está sequer maduro. Na verdade o mamão não é pelo cheiro que cativa e nem sequer pelo gosto... uma fatia de mamão precisa de uns quantos pingos de limão para o tornar apetecível. A sua textura macia é no entanto insuperável, uma característica de modéstia que dispensava o perfume e a acidez típica dos outros frutos tropicais que os tornam tão desejados. Margarida aprendera, no entanto com a sua mãe que o mamão tão humilde e desprovido se convertia num doce singular e irresistível bastando cortá-lo em cubos, cozê-lo a fogo lento numa panela de barro, adicionar uma certa dose de açúcar e canela, mexer com muito cuidado sempre para o mesmo lado, deixar caramelizar e depois deixá-lo arrefecer e ganhar aquela contextura grumosa e alaranjada com reflexos aloirados... - Muito gostas tu desse doce de mamão... - É o meu vício Margarida... tu sabes que não tenho muitos...

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11 - E a tua fonte de inspiração... afinal quando é que voltas a escrever uma história bonita e já agora, com um fim feliz... como te podes ter contentado com um grande sucesso e depois, nunca mais seres capaz... cansa-me um bocado ver-te sempre aí no pátio, meio perdido a olhar para uma folha de papel cheia de rabiscos...sem continuação... - Tens razão, não penses que eu não sofro ainda mais que tu... mas depois que acabei de escrever aquela história é como se estivesse no meio de um deserto sem uma ideia capaz de me dar vida às minhas personagens...achas que é da idade?” - A idade pode ser desculpa para muita coisa, Onésio, mas não para escrever, então se tu escreveste tantas histórias porque hás-de ficar aí preso e parado nessa história do doce de mamão? A verdade é que essa minha grande história tinha começado vinte anos atrás, naquela mesma sala, a luz branca da manhã cedinho coada através das portadas das janelas da velha casa colonial. Ela tinha chegado no avião daquela manhã, acompanhada do marido que devia ter a mesma idade dela. Dois jovens perto dos trinta anos o que os distanciava de mim pelo menos em outro tanto de idade. Chegou sozinha à sala de refeições e serviu-se de algumas fatias de pão fresco, verteu um pouco de leite e juntou-lhe o café ainda a fumegar que fez uma auréola de espuma na chávena. Com uma faca de sobremesa barrou uma das fatias do pão com manteiga, deu-lhe uma dentada e saboreou-a na boca com um sorvo do café com leite. - Prove com um pouco deste doce... verá que é muito bom... - Obrigada... é doce de quê? - De mamão, experimente que é delicioso... Ela olhou para mim com um misto de curiosidade e reconhecimento... - É hóspede aqui? O meu nome é Isabel... Expliquei que era residente ali, sem entrar em detalhes que me pareceram desnecessários, nem lhe disse como me chamava, afinal, tudo quanto pretendia era vê-la inteiramente feliz com o seu pequeno almoço e isso assentava na minha crença inabalável de que tal só era possível com o concurso daquele doce de mamão.

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12 - Não é a nossa primeira vez em Angola, conheço muito bem o mamão, é uma excelente fruta, muito saudável, nunca tinha provado o doce... - E então, gostou? - Deixe-me saborear... não lhe quero dar uma opinião assim, sem mais nem menos... - É muito meticulosa... qual é o seu trabalho, ou o do seu marido...? Trabalhamos juntos... temos cá uns negócios, mas ainda estamos na fase de prospecção... vai correr tudo bem, o início custa sempre, é preciso alinhavar as coisas.... - Se eu puder ser útil em alguma coisa, disponha... - Então o que faz? - Escrevo contos... estou sempre a inventar histórias... - Que coisa mais inesperada, todas as pessoas que conheço aqui dedicam-se a negócios, isso compensa, escrever histórias? - Num certo sentido, digamos que, não material, compensa, senão eu não escreveria, não lhe parece? - Não sei que lhe diga, isso me parece um pouco utópico, escrever histórias não é exactamente o que eu chamo de trabalho, isto é, fazer coisas que rendam dinheiro.... não vive disso, pois não? Expliquei-lhe algo penalizado que na verdade vivia à conta da residencial da minha mulher, que ela acabara de conhecer na recepção e que nesse momento dava ainda explicações a Jorge, o seu marido sobre os aposentos que iriam ocupar durante algumas semanas. Ela notou algum embaraço da minha parte e adiantou em tom de alguma cumplicidade: - O casamento é isso, as pessoas completam-se... bom... eu e o Jorge não somos casados... não é importante para nós agora... mas será um dia... - Então que lhe parece o doce de mamão? - Acho que tenho de provar mais algumas vezes para gostar do modo que o senhor gosta. - Não me chame assim... sou o Onésio... - Obrigada, Onésio, oh, ali vem o Jorge, Jorge este senhor é o Onésio, o marido da D. Margarida a dona da guest house.... - O que faz também de si o dono da guest house, o nosso anfitrião...

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13 - Não é bem assim - interrompeu Margarida que entrou de sorriso aberto na sala de refeições... - o Onésio é escritor, é de facto uma das atracões da residencial, conta as suas histórias ao serão, poderão ouvi-lo muitas vezes, mas não tem nada a ver com o meu trabalho nem com a residencial a não ser morar aqui, como hóspede privativo... - E o mais bem tratado... sabem que este doce de mamão... - Onésio! Por favor, os nossos hóspedes já sabem tudo o que precisam para passar connosco estas próximas semanas, será um gosto que se sintam aqui como em vossa casa...apreciem o vosso pequeno almoço, o nosso matabicho...agora se me dão licença... Margarida saiu como entrara com o seu andar de cavalo esporeado rodando a saia e voltando aos seus trabalhos de vigilância e de superintendência de todo o pessoal adstrito à pensão residencial que naquelas primeiras horas do dia giravam pelos quartos edificados nas traseiras da casa principal, nas suas tarefas de limpeza e de mudanças de roupa. - Eu preferia antes que se sentisse como em minha casa - deixei escapar num murmúrio que só terá sido ouvido por Isabel já que Jorge se tinha ido aprovisionar de pão e de fruta expostos na vasta cómoda encostada na parede ao fundo da sala. Não comentou, talvez porque não tivesse entendido bem ou porque o remoque se confundiu com um lamento oriundo de uma qualquer profunda frustração. Por gentileza para comigo limitou-se a dizer: É realmente muito agradável o seu doce de mamão.... -Onésio, estás-me a ouvir ou estás surdo? - Desculpa minha querida... disseste alguma coisa? - Os nossos amigos, a Isabel e o Jorge, vão estar cá outra vez, não é uma coisa extraordinária? Já se passaram vinte anos ou mais.... Apesar dos meus oitenta anos o meu coração começou a bater como se tivesse.... sessenta como quando a conheci? Ou mesmo como um adolescente quando me apaixonei a sério pela primeira vez? Como é que eu podia saber... de tantos amores que vivi posso dizer, com toda a certeza que, como aquele que vivi há vinte anos, nesta mesma casa, nunca tive outro igual.... talvez apenas por ter sido o último...

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14 - Reservaram dois quartos... trazem uma filha...Sílvia... então, não dizes nada? - Que queres que te diga... estou tão surpreendido como tu... Para ser sincero não estava realmente surpreendido. A verdade mesmo é que sempre esperei, ano após ano pela sua vinda, se alguma admiração podia sentir era apenas porque havia demorado tanto tempo a acontecer. Fechei os olhos para que a luz solar não interferisse. Dentro da minha cabeça voltou a fazer-se noite e as luzes da cidade a brilhar enquanto a conduzia de regresso à residencial depois de um dia de tantas voltas em que eu fizera o papel do seu mais atencioso e prestimoso motorista. Senti o seu cansaço, o seu desapontamento, todas aquelas reuniões umas atrás das outras não iam exactamente ao encontro da sua ansiedade de atingir as elevadas expectativas que construía para si mesma. As lágrimas vacilavam em desprender-se-lhe dos olhos. Num movimento instintivo de compreensão, de apoio, sei lá, de carinho, a minha mão voou do volante e foi poisar mansamente sobre a sua, ficando ali colada, como um passarinho nervoso que se tivesse aventurado demais em busca de alimento, aguardando a mínima sacudidela que o enxotasse... mas a sua mão voltou-se, a palma tomou a forma de um ninho abrigando o passarinho tardio que se aninhara entre os seus dedos esguios que se moviam roçando-lhe as penas numa tímida carícia. Margarida sempre mergulhada na sua faina diária, saindo logo de manhã para as compras diárias, dando voltas aos ficheiros, preparando facturas, conversando com todos os hóspedes para confirmar com os seus próprios olhos que tudo ia bem pois o seu lema era que a melhor propaganda da pensão era um hóspede satisfeito que sempre voltaria, não dera por nada, pelo nosso encontro constante ao pequeno almoço, não vendo nada demais quando era eu a barrar de doce de mamão uma torrada que oferecia a Isabel e por vezes a levava á boca quando a rir dizia que já não queria ou não podia mais. Pelo contrário, Margarida dizia que eu devia cobrar pelo transporte e pelo tempo, ao fim e ao cabo, embora reconhecendo que o meu trabalho de escrita não estava sujeito a ponto nem a horário, eu não devia gastar tanto tempo na prestação de um serviço que em parte nenhuma do mundo era gratuito.

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15 - A Isabel e o Jorge têm pago o combustível, eu levo um livro para ler e um caderno para ir escrevendo enquanto espero... não me custa nada, até me ajuda... vou mudando de ambiente, vou vendo pessoas, sempre converso, tenho tido algumas ideias... - Espero que tenhas boas ideias, mas vê lá se tens que pagar ainda por cima... quem está a prestar o serviço somos nós, o carro é da residencial... - Onésio, eu não sei como agradecer a sua ajuda, não quero de modo nenhum atrapalhar a sua vida... - Nada disso Isabel, o que faço é com muito gosto, não atrapalha nada, aliás, eu não tenho nada para fazer... só tenho que escrever e isso depende da inspiração e acredite que nunca tive tanta desde que a conheci... . Não estava a inventar nada. De um dia para o outro comecei a escrever como já não me acontecia há muito tempo... Isabel tinha caído na minha rotina como sopa no mel e não foi por acaso que dei por mim a dar como título à minha história “O doce de mamão” porque foi a propósito desse doce que eu primeiro me aventurei a dirigir-lhe a palavra e porque ela era como um mamão à espera de ser transformado na mais deliciosa compota ou geleia que a minha fantasia fosse capaz de produzir. Tudo quanto escrevia era uma repetição por outra forma da receita da Margarida do seu célebre doce, também eu procurava que as minhas mãos percorressem suavemente o corpo de Isabel, os seus braços, os seus pés que eu acariciava e apertava entre os meus dedos, as minhas mãos subiam pelas suas pernas que experimentavam a pressão regular dos meus polegares avaliando a sua textura branda, depois transportava cada um dos pedaços do seu corpo para a minha cabeça em fogo onde eles giravam à mistura com ideias aromáticas quanto bastassem, até toda ela ganhar a consistência doirada dos seus cabelos descompostos e a doçura do seu sorriso para mim... só para mim. - Gostava de lhe ler o que escrevi a noite toda, até de madrugada... - Não sei se devo, Onésio... - Não sabe se deve ouvir? - Não sei se devo gostar de ouvir o que não passa duma antecipação dos seus desejos... o que quero dizer-lhe é que... é que não deve ter quaisquer expectativas a meu respeito...

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16 - Mas eu não tenho expectativas, Isabel, tenho sentimentos, sentimentos sim, que gostaria de poder exprimir, livremente... - Pois sim, eu não posso falar por si, mas eu não me sinto bem a ouvir essas suas histórias, eu adoro o Jorge e isto não é correcto... - Mas isto é pura ficção, Isabel, como sabe... - Não sei, Onésio, nem tudo é ficção, muito do que tem escrito estes dias passou-se efectivamente e o que não se passou sinto que é o que o Onésio parece pretender a todo o custo que aconteça... mas, por favor, não conte comigo para levar à cena esses seus contos imaginários... - Mas quem foi que lhe disse que eu estou a encenar o que quer que seja?... não tenho assim tanta pretensão... gostava apenas que visse como o que sinto por si me tem dado asas para voar... estou-lhe grato por isso, não posso de algum modo manifestar o meu agradecimento? Bem sei que não a convenci com as minhas palavras mas continuei a escrever furiosamente. Se a princípio me animava a ideia de que Isabel iria ler cada uma das linhas e cada uma das palavras que me brotavam do coração, a partir daquele dia em que me confessou que adorava o seu Jorge eu escrevia empenhadamente apenas para me convencer do contrário. Se o adorava como poderia estar feliz comigo e com as minhas carícias que só podiam ser de amor... pois que outro sentimento ditaria semelhantes actos e comportamentos de parte a parte? Se não recusava a minha presença é porque também ela podia estar tão dividida como eu, nos meus sentimentos com a Margarida. Também eu seria capaz de dizer que a adorava e adorava mesmo. Mas como podia ao mesmo tempo ignorar o ritmo alucinado e as batidas inconsequentes do meu pobre coração? Tinha todavia de reconhecer que no caso de Isabel não era nada assim. Nem um músculo seu se movia quando eu lhe beijava as mãos, os pés, as pernas, os cabelos, como se fosse apenas uma estátua de carne, ou um mamão ainda não inteiramente amadurecido que eu não seria capaz de cozinhar. E, contudo, no meu delírio literário de antecipar a realização dos meus desejos mesmo os mais impossíveis, bati à porta do seu quarto numa tarde quente em que Jorge tinha saído numa deslocação a um subúrbio da cidade. Levava como pretexto o boião dourado com o doce de mamão. - Onésio, não devia estar aqui...

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17 - E quem lhe disse que estou? Admita que está a sonhar, como eu também estou a sonhar, apenas quero que me deixe explicar-lhe a receita deste doce de mamão... - Onésio, não sonhe por favor... Mas dessa vez eu calei finalmente os seus protestos com um beijo que nem por isso foi diferente de todos os que já lhe tinha dado noutros sonhos naquelas noites agitadas que lia e escrevia sem cessar... o boião soltou-se-me das mãos e o doce derramou-se por todo o lado. Despi Isabel devagarinho e cuidadosamente fui rapando com os dedos o doce derramado passando a cobrir o seu corpo à medida que o ia descobrindo, com aquela geleia dourada, mais docemente não podia ser. Ainda que tudo não passasse de um sonho senti na minha boca um gosto novo no doce de mamão, mais ácido e perfumado, um gosto que nunca mais se repetiu até hoje em que o procuro descrever sem a certeza absoluta de alguma vez o ter realmente experimentado. Não sabendo distinguir a verdade da ilusão, dediquei-me febrilmente a completar aquela história que quando viu a luz do dia foi um tão grande e maravilhoso sucesso que logo de seguida me encheu de angústia e amargura, pela certeza, talvez melhor, pelo pressentimento supersticioso que depois daquela história não seria capaz de escrever uma linha decente na vida que fosse digna de ser lida. Ocorreu-me que poderia ser uma partida do feiticeiro que tudo via e sabia... Pertencia a Paulina, irmã de Margarida e foi esta que me disse que todos ali em casa temiam e respeitavam essa estatueta de madeira negra. Uma vez houvera um roubo na casa... o dinheiro de um hóspede desaparecera sem deixar rasto. Paulina convocara para a sala, ao fim do dia, todos os empregados encarregados da limpeza das habitações da residencial. A figura do feiticeiro parecia ainda mais sinistra porque Paulina acendera uma lamparina que projectava tonalidades incendiárias nos seus misteriosos olhos coloridos como duas contas de coral que ora se poderiam julgar cegos ora que vissem realmente para dentro de nós e para além de nós mesmos. Paulina com a sua voz calma e pausada como se recitasse um texto oratório informou que se o dinheiro não fosse trazido até ao feiticeiro... ela não queria saber quem fora o autor do desvio... o feiticeiro iria ter com ele e não apenas o denunciaria como desgraçaria. Que

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18 ninguém duvide dos poderes deste feitiço, asseverou sem levantar a voz na mesma cadência com que contaria um segredo a uma criança. O dinheiro apareceu enrolado aos pés da imagem do feiticeiro... como foi descoberto logo na manhã seguinte. Nunca mais foi preciso convocar os ofícios transcendentais daquela miraculosa figura negra como o carvão rodeado de missangas coloridas. Apesar de sempre tão atarefada não escapou a Margarida a minha apatia literária depois da publicação do “Doce de Mamão” que coincidiu quase com a partida de Jorge e Isabel. Não poucas vezes se chegava a inquietar com a minha imobilidade criativa que parecia agravar-se de dia para dia. Consolava-me a ideia de que aquele “doce de mamão” fora tão bom, tão extraordinariamente delicioso que não trocava por toda a abundância de inspiração literária que viesse depois. Preparei-me, pois, para sofrer a minha pena perpétua pelo crime de ter escrito uma obra prima na qual eu me revia, não se passando um dia sem pelo menos acariciar com a ponta dos dedos a capa do meu livro com um corpo de mulher desenhado em silhueta, a branco e negro segurando na mão um boião de vidro resplandecendo o seu conteúdo luminoso e dourado como se este lhe estivesse a revelar o seu destino. Não havia festa ou celebração a que eu tivesse ido durante estes últimos vinte anos que não houvesse uma citação do livro, a leitura de uma passagem mais atrevida ou alucinante, as pessoas lançando-me elogios maldosos, querendo sempre saber o que era ficção ou realidade naquele conto memorável. Dei-me conta de que, apesar da glória que o livro me rendeu ao longo destes últimos vinte anos, tudo isso de bom grado eu trocaria para viver, autêntica e realmente, a cena de amor inventada pela minha imaginação febril, com Isabel e o doce de mamão a escorrer-lhe pelos braços, pelos seios, pelo ventre abaixo, pelas pernas até aos dedos dos pés...que tudo a minha boca insaciável percorreu no mais guloso e mais doce percurso amoroso... O que nunca me passou pela cabeça foi recorrer ao feiticeiro dos olhos de coral... quando sorvia cada resto de doce de mamão que ainda sobrasse sobre o corpo branco de Isabel, ainda fui capaz de lhe dizer - Isabel, ainda que gostasse que isto não fosse um sonho nunca seria capaz de o tornar real... por si, apenas por si... e ela limitava-se a soltar uma das suas risadas provocando-me - e o Onésio não me diz como isso seria possível?

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19 Estive quase a dizer-lhe que tudo era possível naquela casa habitada por um feiticeiro tão poderoso capaz de ler qualquer pensamento e transformar o próprio coração de uma mulher... mas não a quis assustar... e limitei-me a perguntar-lhe - acha que se dependesse de um feitiço a Isabel gostar de mim eu hesitaria? A sua resposta veio imediata e certeira: - O Onésio nunca conquistaria uma mulher que não fosse por mérito próprio... ou estou enganada? Preferi responder que por ela prescindia de boa vontade da minha vaidade mas nunca dispensaria a certeza de que ela gostaria de mim pelo que eu era e não pelo artefacto que de mim fizesse o feiticeiro. Tive logo então a clara sensação de que essa resposta selava o meu destino. Os anos passaram, fui-me contentando com a reedição de alguns dos meus livros cujas pequenas edições se esgotavam de tempos a tempos e iludia os meus leitores acerca da minha inactividade literária. Eu bem tentava recomeçar a escrever mas se era capaz de completar uma frase inicial, o seu desenvolvimento como o de uma frase musical não conseguia passar de uma repetição estéril da mesma ideia ficando a perder de vista a sinfonia de ideias que antes me assaltavam a todo o tempo. Agora, regressada do passado, Isabel voltava à velha residencial com o seu adorado Jorge e com uma menina que deveria ter os anos que durou a sua ausência... Sentado na sala, reconheci-lhe a voz, o seu riso ao encontro de Margarida, a confusão de vozes, de Jorge, de Sílvia e Margarida...”Venham, vamos para dentro, o Onésio está lá na sala metido com as suas intermináveis leituras... está velho e cada vez mais teimoso”. Não vou negar que o riso nervoso de Isabel me deixou em pânico, levantei-me como um tonto em busca de uma via de retirada, embora a minha sala, com os seus sofás tão velhos como confortáveis com almofadas forradas de chita colorida onde eu encostava imperturbavelmente a cabeça, respirasse uma placidez permanente em nada comparável com o campo de batalha que de repente a imaginei. Fugi para o corredor e subi a escadaria de madeira que me levou precipitadamente ao andar superior, com o coração a sair pela boca, a minha respiração alterada. Já lá em cima, no patamar, parei encostado ao corrimão a olhar para baixo como um mamoeiro estéril vergado pela sua desgraça.

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20 - Ainda agora estava aqui... Onésio, olha quem está aqui - foi Margarida dizendo e chamando sem qualquer resposta... - Não faz mal, vocês vão ter muito tempo de o ver e de lhe falar e recordar... Suspenso no andar de cima sentia-me plantado num mundo infecundo e longínquo do mundo que era agora o andar de baixo, um mundo que eu tinha perdido há vinte anos... não bastaria descer aqueles vinte degraus para voltar atrás no tempo... Isabel que eu tinha desejado tanto estava perdida no meu livro, na minha estante...como eu finalmente a quis e deixei...sim, porque não fui capaz de a desejar com mais paixão...com a loucura suficiente para fazê-la esquecer o seu Jorge por uns instantes enquanto eu tive na mão a poção mágica, o feitiço poderoso para a transformar de planta fria em sarça ardente... Sim, eu podia tê-la enfeitiçado... mas nunca o faria... porque não seria eu a conquistá-la mas, por ironia do destino para o conseguir, sem a ajuda do feiticeiro negro dos olhos de coral... também não seria eu... como Isabel bem o sabia, parecendo conhecer-me demasiado bem. - O Onésio é um utópico... gosta de perseguir o impossível...quando o impossível deixa de o ser acaba-se o encanto.... Mas, não era nada disso... sabia que a queria realmente e de verdade mas também não a queria infeliz depois... não era o meu desencanto que eu temia mas o dela e somente o dela... sobretudo depois da sua confissão de amor por Jorge, que me atingiu como uma granada explodindo em todas as direcções deixando desolado e a sangrar o meu cansado coração. Perguntei-me a mim mesmo várias vezes a quem eu queria convencer da minha paixão... renunciar a tudo o que se deseja por amor é uma mentira descarada. Quando se ama não se olha a meios... e eu estava a olhar demais.... ela nunca o saberia... para ela era tudo tão mais simples, tão mais linear... como um cálculo de engenharia que não pode falhar. Nada é mais terrível do que sentir um dúvida sobre uma opção feita há muito tempo. Com a certeza de que no momento em que revivemos essa dúvida já se passou tempo de mais e não é mais possível emendar nada. Como um velho mamoeiro estéril vergado no alto do corrimão procurava descobrir Isabel no andar de baixo, agarrado à súbita ideia salvadora de que vê-la agora me traria a resignação e a paz comigo mesmo. A minha curiosidade pregou-me uma partida

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21 inaudita, pois o que os meus olhos descobriram cá em baixo, vista em contre-plongée, foi precisamente a Isabel de vinte anos atrás. Vi-a a travessar a sala, olhar as estatuetas de artesanato, o feitiço de Paulina, e depois vi o seu braço esguio e muito branco, tal como eu o recordava ainda, avançar para a prateleira e retirar um livro que eu tive a imediata certeza de ser “O Doce de Mamão”. Maravilhado com aquela sobreposição de planos, agarrei com todas as minhas forças o corrimão da escadaria seguro de que o rés-do-chão funcionava como um flash back na minha história. Não podia emendar nada no presente, mas podia fazer tudo o que quisesse no passado. Fui descendo as escadas devagar com mais medo do recuo no tempo do que por precaução para não tropeçar. A luz branca da manhã inundava a sala em que o pequeno almoço estava preparado e pronto a ser servido. Apenas ela estava sentada à mesa todos os demais tinham ido tratar das acomodações dos hóspedes. Com a simplicidade que lhe recordava, o cabelo curto mesmo assim atado num laço que lhe tornava o rosto mais iluminado, os mesmos olhos escuros e curiosos como os de um esquilo descobrindo as maravilhas da natureza num qualquer bosque da floresta tudo nela me trazia a Isabel da minha memória para aquele momento mágico que noutras circunstâncias eu diria só poder ser obra do misterioso feiticeiro negro de olhos de missanga azul. - É com certeza a Sílvia, só pode ser, tal e qual como eu recordo a Isabel... a sua mãe. Muito prazer, o senhor deve ser o escritor, Onésio , a minha mãe fala muito do senhor... eu não o imaginava assim.... - Tão velho, não é o que ia dizer? - Não me referia propriamente à sua idade... sei que tem oitenta anos... mais quarenta que a minha mãe... - E mais sessenta que a Sílvia, é natural que me ache um Matusalém... mas sabe que, quando escrevo, cada história é como um tapete voador que não só muda de espaço, de latitude e longitude como torna possível recuar no tempo, fazer o que se chama em literatura uma analepse... - Pessoalmente estou mais interessada no futuro... - A sua mãe também o estava há vinte anos... e eu fiz-lhe a vontade...o livro que escrevi e que há pouco tinha nas suas mãos...

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22 “O Doce de Mamão”... - Esse mesmo... ele foi escrito ao contrário... não como uma anacronia, um recuo cronológico, mas como uma previsão do futuro... se o ler vai ver que a Sílvia lá se encontra... com outro nome mas isso que importa... foi uma prolepse bem sucedida... - Está-me a deixar um pouco confusa... - Não era a minha intenção, Sílvia, não imagina o prazer que tenho de a conhecer em carne e osso depois de a ter criado em imaginação, há mais de vinte anos... - Podia então ser sua filha nesse romance? - Literariamente, sim, pode dizê-lo... mas nem que fosse realmente minha filha me podia dar mais satisfação que a que agora sinto de ter chegado finalmente a uma certeza... depois de tanto tempo de dúvida... - Não entendi... - Não é necessário que perceba, Sílvia... na verdade só ao vê-la agora compreendo que a minha opção que já não poderia emendar foi a correcta... Barrei uma fatia de pão acabada de sair da torradeira com um pedaço generoso de doce de mamão e levei-a à boca de Sílvia: - Prove tenho a certeza que vai gostar! Margarida que assomara à sala vinda da copa olhou-nos, as nossas silhuetas recortadas a contraluz, e entendeu subconscientemente o meu gesto paternal como um gesto amoroso antigo, como se estivesse a rever uma velha fotografia que já havia esquecido ou tinha querido esquecer. Mais tarde ganhou coragem para mo dizer: - Afinal, foi pela Isabel que estiveste apaixonado este tempo todo.... toda a nossa vida uma mentira pegada... - Não, isso não é verdade...... não posso negar que quando conheci a Isabel o meu coração bateu mais forte, senti o meu sangue a correr mais rápido pelas artérias e veias, a vontade de escrever, de inventar foi mais poderosa que nunca e isso me inebriou... mas Margarida, estes vinte anos foram tanto de amor por ti como os anos antes de eu a conhecer” - Queres, então que eu acredite que ela foi apenas a tua adrenalina... a tua droga para escrever... e eu que pensava que te bastava o doce de mamão...

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23 - Acredita, porque é a pura verdade... - Enganaste-me, não tiveste a coragem de me dizer... essa é que é a verdade nua e crua... e agora nunca mais vou saber se o que li nos teus contos aconteceu mesmo... - É evidente que não aconteceu... - É pouca consolação para mim... o que é que isso me interessa se o que não aconteceu foi exactamente o que tu querias que tivesse acontecido... a tua traição não é menor por teres tudo imaginado...” - Acho que, pelo menos, mereço o benefício da dúvida, Margarida... não sei nem saberei nunca se tive outra opção, mas limitei-me a comer o doce de mamão... ainda que tivesse escrito o contrário.... Naquele mesmo dia despedi-me da pensão... assim, nem cheguei a encontrar a Isabel. A minha idade é um embaraço evidente mas estou confiante que ainda poderei voltar a escrever aquela mesma história agora ao contrário... isto é, começando com o que sei hoje ao chegar ao quarto de Isabel com o doce de mamão... . A menos que Margarida acenda uma luz ao feiticeiro enrolado em missangas de olhos de coral... e lhe peça para eu voltar e parar de escrever!

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24 TONS DE AZUL (Um blues de André Mingas) Estou a tentar desde as primeiras horas da madrugada arrancar às cordas do meu violão as notas de uma canção que me andam a dançar no ouvido... O meu olhar reparte-se entre a janela junto à qual estou sentado e o corpo arredondado do violão que amparo com o mesmo carinho que sempre dispenso à mulher que amo... ou, mais correctamente, às mulheres que amo... aliás, não consigo compor uma canção de amor sem estar verdadeiramente apaixonado! “Sonhei com ela sentado à janela olhando pra estrela que vinha do mar... feito sereia vi minha estrela cabelos de ginga gingando o andar, boca cereja, seios de donzela feito aquarela que eu quero pintar... vi da janela o corpo de bem amar, convidei a estrela e fomos passear...” Cheguei tarde da discoteca onde eu e o meu amigo do peito, Gentil Viana, fizemos estragos na garrafeira... Cheguei a casa desesperado, mas inspirado, sentindo a crescer no coração e na ponta dos dedos a vontade de transformar em notas musicais o seu corpo de estrela trajando de azul feito mar... escondendo como névoa de cacimbo os traços que eu queria pintar... No quarto ao lado quase podia sentir o rumor da respiração da mulher que dormia profundamente resignada com a minha ausência... pé ante pé, como uma fera silenciosa na selva escurecida peguei o violão, abri a janela da sala com mil cuidados, aspirei o fresco do mar e comecei a dedilhar procurando acompanhar cantarolando baixinho como quem conta um segredo, as primeiras nota do blues que trazia na cabeça... à mistura com as lembranças daquela noite que me deixou ferido no mais fundo do meu amor-próprio... Gentil Viana, homem de história e das coisas de andar mantinha aquele seu ar meio trocista, meio interessado, mas genuíno na sua amizade tão antiga... enquanto o meu olhar girava disfarçadamente em todas as direcções, como os

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25 focos luminosos azulados que varriam o salão, pouco à vontade para ver sem encarar a jovem de justo vestido azul deixando ver as pernas balançar com alguma impaciência sentada numa mesa perto de nós. Para a impressionar chamei alto o empregado do bar: - Garçon, licor e bombons para variar... Gentil Viana pôs um ar sardónico e aproximando-se do meu ouvido gritou para ser escutado no meio do burburinho reinante: Mas, é assim que a vais conquistar? Como sempre nestas ocasiões, engoli em seco e decidi-me por um acto heroico: olhei bem para ela e os seus olhos reluziram estranhamente azuis ao reflexo das luzes estroboscópicas como se fosse mesmo a sereia que eu só me arriscava a cantar nos meus versos... Gentil, reza por mim... vou pedir-lhe uma dança... e juntando o gesto à esperança de vê-la aceitar, levantei-me, respirei fundo, pus o meu melhor sorriso e com os olhos a fuzilar fui direito àquele vestido azul ensaiando um convite que ela nem chegou a ouvir com todo o ruído circundante. O tempo parara repentinamente, sentia colado às minhas costas o olhar irónico e curioso do meu amigo Gentil enquanto as minhas mãos como duas conchas do mar avançavam tímida mas determinadamente para aquela sereia que não disse nem sim nem não... ergueu-se olhando com algum desdém para o lado estendendo uma mão que deixou se encontrasse com a minha e eu senti o clique do tempo voltar a contar... um tempo que agora queria durasse uma eternidade... sorri-lhe, ela devolveu o sorriso, e cheio de esperança de a poder amar aproximei o meu rosto do dela enquanto embalei no semba, uma das minhas especialidades em matéria de engates... Devia ser proibido ser tão linda... lancei-me a pronunciar aspirando voraz o seu perfume... Eu já lhe conheço... preveniu a minha sereia. - Deixe pra lá... eu não posso deixá-la voltar para o mar, você é a minha Kianda... - Para o mar?” Kianda? Acho que você bebeu licor de mais...

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26 E dando uma volta graciosa desprendeu-se da minha mão e eu fiquei estacionado no meio do salão a vê-la desaparecer naquela onda azul esverdeada de gente que se sacudia balançada pelo sound... Nem lhe cheguei a pedir um beijo lamentei-me ao chegar à mesa onde o meu amigo Gentil continuava a dominar a cena. Com o seu olhar aparentemente perdido no espaço e no tempo, como se eu mesmo ali não estivesse com ele lado a lado, foi-me dando conselhos e palpites que eu não queria nem ouvir... mas tu és meu amigo ou és meu pai? - Vê lá tu meu rapaz... casado é azar! Mulher não é coisa de usar e deixar... Agora, junto à janela, pensando naquela mulher tão linda, tão bela, tive a certeza que ela daria, pelo menos, uma canção maravilhosa... um blues... sim um blues bem gingado, só para me encontrar, com o teu brilho de cristal, com o seu cheiro a sal e mar... e um alto astral para a poder abraçar... Os meus dedos ganhavam vivacidade, percorriam as cordas do violão conquistando a melodia, dominando a batida, e eu já não cantava mas xinguilava... na minha exaltação pressenti que já não me encontrava sozinho e ela me acompanhava no meu xinguilar, sentindo a envolver-me um halo perfumado, o cheiro agridoce de mulher depois do amor. Mesmo só olhando o céu, dei comigo a navegar... e como um deus eu vi a sua imagem a passar... à luz pálida da manhã que agora enchia a minha janela... Estava a conseguir... os versos saiam como uma torrente... com a chegada da manhãzinha, tinha os olhos a arder fixos nas cordas que titilava com exaltação e depois de procurar na minha mente uma terra para rimar com alto mar... meti ombros para engrenar o grande final: Cantei em França e em Zanzibar Mandei recados pra te dar Cansei de te esperar Pus uma carta em alto mar Deitei flores à Kiandá, Chorei, mas não deixei de te amar...

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27 Repeti emocionado esta estrofe várias vezes... afinal a noite tinha valido a pena, sentia-me de novo recuperado, por fim a autoestima resgatada, como se tivesse levado a sereia comigo para casa, para falar de amor, de carinho, de paz, fazer poesia com todas as letras que é outra maneira de fazer amor pela noite fora... Com alegria furiosa repeti mais uma vez... Cantei em França e em Zanzibar... quando senti duas mãos de mulher apoiadas nos meus ombros, afectuosamente afeiçoadas ao meu corpo e eu voltei-me sorrindo para ela. - Olá Betty, acordei-te, meu amor? - Valeu André... estou tão feliz...é linda esta tua canção.. vamos cantar juntos, outra vez? - Vamos lá então: Fiz das notas cor de azul Pra te ver ao luar Veio a noite e eu fiz um blues... (História inspirada nas letras de “Bombons”, “Tons de azul” e “O que eu quero” de André Mingas)

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28 Ingrid e Manuel UM AMOR DE FURACÃO "MANUEL" e o ciclone tropical "INGRID", este originado no Atlântico e que chegou a ser furacão, afetaram simultaneamente o território mexicano no último fim de semana, coincidência que não acontecia desde 1958. (Reuters, 18 de Setembro de 2013) No tempo em que os animais falavam e os deuses desciam da montanha sagrada disfarçados de gente, num lago de bordos verdejantes e protegidos por juncos cravados como lanças à sua volta, singrava serenamente um bando de cisnes, deslocando-se como flocos de neve sobre a superfície metalizada das águas. Uma menina de beleza sem par vinha por um carreiro que conduzia ao lago viu os cisnes, o seu rosto iluminou-se de alegria inocente e correu pela vereda abaixo para de mais perto os observar. O deus do ar e do vento que por ali pairava em tranquilo remanso logo se agitou à sua vista e um breve sobressalto sacudiu as canas dos juncos que agitados ora baloiçavam para um lado como para outro ao sabor dos seus sopros e movimentos no afã de a mirar e apreciar a sua beleza ora daqui ora dali. O sol que raiava no horizonte sentiu ciúmes do vento e começou a desferir os seus dardos flamejantes sobre o lago e a menina colheu o seu reflexo dourado no rosto o que de imediato provocou um aquecimento súbito e tresloucado naquele deus inconstante e arrebatado. As águas até aí enternecidamente quietas sentiram um arrepio e mudaram de cor. Os cisnes pararam, atentos à mudança do vento, deram meia volta e internaram-se junto à folhagem aquática abrindo caminho entre ela e procurando abrigo num túnel de juncos. Instantaneamente o rosto da menina traduziu preocupação... mas ainda não susto... O deus do ar e do vento sentiu então uma depressão ao contemplar o seu olhar vago e perdido que se voltava com apreensão para o céu agora mais baixo, mais denso e mais frio, como um escudo de gelo interposto entre o lago e o astro intrometido, como para contrariar a sua fulgência àquela hora inusitada.

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29 O vento continuava a rondar a menina na sua dança de sedução, rodopiava e rodopiava fazendo ondas no lago... os últimos cisnes sentiram-se empurrados no seu abrigo, protegendo-se uns aos outros com as suas asas como se fossem uma cerca de penas ao seu redor. A menina sentiu a sua cabeça rodar e pressentiu a tormenta, os seus cabelos esvoaçaram e instintivamente afastou os braços para se manter em equilíbrio mas a força do vento levantava-a no ar como um colorido papagaio de papel. Os seus olhos brilharam e fuzilaram o vento atrevido enquanto os seus dedos se foram alongando sem medida crescendo como fitas que se encaracolavam e entrançavam com os seus cabelos doirados. O vento inquieto continuava a voltear sem paragem e interrogava-se se não eram aqueles sinais mais que reflexos enganosos do sol, mas a menina era já uma espiral de luz rosa e ouro que se espevitava e contorcia, elevando-se cada vez mais para o alto. A menina atormentada era agora ela própria um presságio de tempestade... uma tempestade de amor provocada por Huracán, o deus do vento que soprando vertiginosamente em círculo pelo lago vibrava os juncos como se fossem teclas de um imenso harmónio, sussurrando o seu nome: IN-GRID, IN-GRID. Nesse momento, o arrefecimento do céu cinzento contrastava violentamente com o súbito aquecimento abrasivo junto à superfície do lago... os cisnes tinha desparecido completamente de vista, como se nunca tivessem estado ali. O novelo de cabelos e incontáveis bolhas de água coloridas meneava freneticamente pelo lago acima como uma dançarina do ventre estendendo os braços para o alto como se indicasse um caminho, um destino, mas não se desprendia das águas, antes se alongava, esticava e quanto mais ondulava e remoinhava mais alto crescia... INGRID, INGRID... Sorrateiramente, Huracán ondulou ele também por cima do lago beijando os pés de Ingrid que ostensivamente o sacudiu do alto da sua auréola ruborizada, afastando-se a girar sobre si própria numa rotação acelerada como se já não controlasse a sua dança aérea e vogasse perdidamente para longe.

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30 Huracán despeitado, inflou os seus protestos de amor, ameaçou tempestades, tufões e furacões, mostrou as suas garras e rugiu em sua perseguição que não a deixaria escapar. INGRID navegava, entretanto, com velocidade ciclónica já muito longe do lago dirigindo-se para o mar que avistava no seu horizonte como uma alucinação que via e não via no seu louco turbilhão. Na sua fuga cega e precipitada INGRID não fazia nem ideia dos efeitos da sua devastadora e furiosa energia. Um rebanho que pastava tranquilo apanhado no seu explosivo corrupio levantou voo como se as ovelhas ganhassem asas e voassem como nuvenzinhas minúsculas gravitando em torno de INGRID, mais parecendo uma grinalda de noiva, de flores brancas... Um carro puxado a cavalos que seguia à desfilada fugindo desesperadamente àquela enorme surpresa da natureza, descolou à aproximação de INGRID e a carroça voou desfeita em mil pedaços enquanto os cavalos de patas para o ar flutuavam no espaço com o cocheiro a nadar no ar agarrado a uma rédea sem serventia... Huracán ria e gemia à vista dos estragos mas nada o impediria de tentar alcançar e abraçar aquela coluna giratória e movediça que de longe o desafiava e humilhava. O velhaco sabia que toda aquela resistência e frenesim acabaria por amainar junto à costa... já antevia o litoral bonançoso onde aquele seu amor descontrolado ia fazer cair a borrasca e desabar o temporal, tudo o que ainda fosse necessário para a ultrapassar, dominar, amansar, acariciar, beijar, amar com paixão de furação. INGRID seguia envolta em volutas de espuma branca, azul, rósea, ameaçando dobrar-se sobre si mesma acusando o esforço sobrenatural e soltando um gemido que chegou a zumbir aos ouvidos de Huracán levando a pergunta incessante e ansiosa: QUEM ÉS TÚ?... QUEM ÉS TU? MANUEL, respondia Huracán procurando aplacar a fúria, reduzir a cólera surda de INGRID com um nome assim tão doce, quase soando a um cumprimento, a um convite às pazes, à bonança... Mas Huracán, ou MANUEL como ele se queria enganosamente chamar, já tinha ultrapassado o limite da velocidade consentido por todas as regras do decoro mesmo entre os deuses e era já um ciclone lançando em polvorosa toda a costa mexicana... Viu Acapulco lá adiante, as suas rochas alcantiladas tornaram a

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31 sua louca correria numa corrida de obstáculos... para alcançar INGRID MANUEL teve de seguir à velocidade da luz e agora não eram só animais, mas telhados e casa inteiras que se viam ir pelo ar, dando reviravoltas e cambalhotas para logo se precipitarem estrondosamente no solo espalhando o pânico entre os mortais que fugiam espavoridos para todos os lados e lado nenhum como um carreiro desfeito de formigas. INGRID olhou para a devastação nas cercanias e começou a cair em si. Também ela contemplava a silhueta romântica de Acapulco e anelou aninhar-se á sua sombra, já sem forças, esgotada e tonta de tanto rodar, não era mais do que uma tempestade tropical a esmorecer... a transformar-se lentamente outra vez num simples papagaio de papel pronto a pousar no remanso das águas lá em baixo... MANUEL estava ainda entretido a jogar às escondidas entre rochedos e penhascos e antecipando já o cansaço gostoso de quem abranda no final da prova extenuante... também ele amorteceu, perdeu o vigor, mas não o doce carinho que sentia e queria derramar sobre aquela menina que parecia aguardá-lo junto ao lago. Teve uma ideia, uma ideia brilhante. De entre os juncos um cisne surgiu majestoso, o colo erguido, o modo altivo, deslizando suave mas distintamente em direcção à menina que descansava descuidada, a blusa aberta, saboreando o sol, os pés nus chapinhando o lago. O cisne aproximou-se, a menina curiosa e feliz estendeu-lhe o braço numa carícia. O cisne alongou então o pescoço como uma serpente do paraíso e languidamente deixou repousar o bico entre os seios de INGRID.

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32 TER E NÃO TER Casimiro da Silva é um angolano novo, novinho em folha, pondo o pé na rua de bilhete de identidade no bolso do casaco. Deu duas pancadinhas no peito, respirou a brisa do mar em frente e decidiu que a sua promoção merecia uma ou duas cervejas bem geladas na ponta da ilha. Puxa, estava a ver que não saía... mas afinal... já cá canta! disse Casimiro para os seus botões um sorriso aberto de orelha a orelha encaminhando-se para o Jimmy estacionado uns cens metros à frente. - Amigo, limpei o carro, estava muito sujo, muita poeira, são só mil kwanzas... - Mas quem mandou limpar? Eu disse guardar... toma lá duzentos e muito obrigado. - Chi... e o meu trabalho? O carro está limpo, a brilhar mesmo, tens de me pagar... - Não queres os duzentos, paciência, mais fica no bolso... - Mas esses tugas são mesmo arrogantes... vais pagar, sim... - Não sou tuga seu filho da puta, sou angolano, olha o meu BI... - Então você é angolano e já estás a insultar um teu patrício que te ajudou a ter o carro a brilhar? Então é assim? - É assim mesmo e é se quiseres, já te disse, não queres os duzentos, mais fica... Casimiro da Silva abriu a porta do Jimmy, recostou-se ao volante, meteu a chave na ranhura da ignição e ligou o motor sem se dignar encarar o outro. Então, a porta abriu-se com violência: Eu vou-te matar.... Casimiro assustado tentou fugir com o Jeep mas tinha de manobrar pois estava estacionado muito apertado entre outras duas viaturas. Escapou aos olhos ameaçadores à sua frente que quase o fuzilavam e agarrou o braço do rapaz para o afastar do manípulo da porta que continuava a segurar furiosamente. Foi um gesto imprevidente porque baixou a guarda e deu oportunidade ao outro de lhe enfiar um murro com a mão livre. Casimiro a sangrar deixou-se arrastar para fora do carro como um farrapo imprestável rolando no asfalto esfarelado e coberto da poeira acumulada

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33 com a falta das chuvas. O rapaz deu-lhe um pontapé na cara para se assegurar que não haveria mais conversa e limitou-se depois a meter-lhe a mão no bolso do casaco, tirar-lhe a carteira com as notas a saltar e o BI acabado de emitir, mandando-lhe com desprezo uma cuspidela em cima, rodopiando e desaparecendo como se nunca tivesse estado lá. Casimiro ficou por momentos prostrado no solo, e pouco a pouco foi procurando reconstituir os acontecimentos como se juntasse os cacos de uma taça de cristal que inesperadamente lhe saltara das mãos. Apelou para um rewind na sua memória... visionou a sequência dos acontecimentos da frente para trás... tentou novamente em câmara lenta...e não queria acreditar... ainda há pouco estava a sair feliz e contente do posto do registo e agora ali estava desprovido de tudo, dolorido e o pior, sem o seu precioso BI que tanto lhe custara a obter. Do outro lado da rua aproximou-se um indivíduo de cigarro na boca não disfarçando um sorriso de troça, uma mão displicente no bolso e outra estendida para ajudar Casimiro. - Você viu o que me aconteceu? - Por acaso vi... e o meu amigo teve muita sorte por ele não lhe ter levado o Jeep... - Sorte? Isto foi o maior azar... levou-me o dinheiro e os documentos, o meu BI acabado de tirar...ali - Isso é o menos... tira outro, qual é o problema... mas você é angolano mesmo? - Como não sou angolano... por ser branco? - Não por ser branco, mas por ter sido tão estúpido... eu vi como você tratou o rapaz, qualquer outro no lugar dele faria pior depois de ter insultado a mãe dele... - Eu nem conheço a mãe dele, só sei é que queria tirar uma vantagem e eu não deixei, não quis insultar ninguém... - Eu sei meu amigo... mas insultou e lhe deu o pretexto e a oportunidade para lhe arrear e se pagar pelas próprias mãos, o que é sempre um pouco menos justo... mas aceitável nas circunstâncias...

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34 - Aceitável? Como pode dizer uma coisa dessas homem? perguntou o Casimiro acabando de sacudir a poeira e a sujidade das calças tentando recompor-se do desaire sofrido. - Aquele homem conseguiu estragar o meu dia, completamente, arruinou a minha felicidade que ainda há pouco transbordava... - Vida de angolano é assim... você não passou a ser angolano agora? Então tem que alinhar... começar também a compreender a nossa gente melhor... - Compreender melhor? Eu vim para Angola para viver melhor... e esta não foi a melhor maneira de começar, podes crer... - Prazer em conhecê-lo, eu sou o Jacinto Mateus, o mulato mais afortunado desta terra... - Obrigado, preferia tê-lo conhecido uns minutos antes, tudo isto podia ter sido evitado... o meu nome é Casimiro... Casimiro da Silva. - Pois sim, há uns minutos atrás você nem me dirigia a palavra, estava tão cheio de si... aposto que não me convidava nem para beber umas cervejas... - E agora também não convido... fiquei sem a carteira, sem o dinheiro e, nem quero lembrar-me, ... sem o meu precioso BI... - Pois convido eu Sr. Casimiro, afinal, mesmo sem BI o senhor continua a ser angolano e logo meu patrício... você está é a precisar de um trago... vamos até ali ao Jango Veleiro, vai ver que a bebida fresca, o ar do mar e um por do sol dos nossos lhe vai fazer esquecer tudo isto que se passou... Vai ser muito difícil, adiantou o Casimiro limpando ainda com o lenço sujo de terra e de sangue o lábio ferido do soco que levou na cara... - Não acha que seria melhor ir já fazer a participação à polícia? O outro voltou a exibir o seu sorriso trocista: você é mesmo angolano? Você vai participar para quê? Para desabafar estou eu aqui Sr. Casimiro. - Uma participação vai fazer prova de que me roubaram o bilhete de identidade, amanhã mesmo quero pedir uma segunda via... a participação vai ser necessária... - Daqui a pouco você vai-me dizer que também quer ir ao hospital fazer um exame médico para provar que levou uma surra... - Sim, parece-me uma boa ideia...

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35 - Você é mesmo angolano Sr. Casimiro? Qualquer pessoa vê que você levou cá uma pancada que eu vou-te contar... não precisa ser médico nem de atestado... e o médico não vai dizer que lhe deram surra para lhe roubar o BI, não é verdade? - De facto... - Claro que de facto... o homem quis foi pagar-se de uma lavagem do carro, o que aqui em Angola são pelo menos dois mil kwanzas... às vezes é melhor pagar mais para eles não lavarem... - Mas eu não pedi para ele me lavar o carro... - E isso o que é que interessa? Ele lavou não lavou? O carro estava limpo não estava? Você ia embora sem pagar um serviço... - E o que é que eu podia fazer? Mandar sujar o carro com terra para o repor nas condições anteriores? - Não está a ser razoável amigo Casimiro... agora seguiam lado a lado pelo passeio, junto à Celamar e ao restaurante chinês... veja só que isso iria penalizar ainda mais o pobre rapaz... - Pobre uma ova... agora tem a minha carteira bem recheada... e o meu BI que também deve valer dinheiro no mercado... - Isso não sei, não vi a sua carteira... acredito que ficou sem o BI mas acredito que com um bocadinho de sorte até é capaz de o recuperar mais cedo do que você pode imaginar... - Você acha? - É claro que acho... você sabe, o ladrão angolano tem consciência...ele vai ficar com o dinheiro mas vai devolver os documentos... - Não acredito, realmente... - Sr. Casimiro, o Sr. disse que é angolano mas precisa aprender a ser angolano... - E você me ensina... como? - Olhe bem para mim, só tem que me imitar... Estavam agora sentados na esplanada de cima do Jango Veleiro, numa mesa encostada à vedação de madeira que serve de balaustrada ao restaurante. Jacinto Mateus relaxou o braço esquerdo sobre o parapeito desse varandim, acariciando a madeira com uma mão enquanto floreava com a outra convidando

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36 Casimiro a apreciar o sol, o seu reflexo no mar, o remanso das ondas descansando na praia adiante... - Sr. Casimiro tudo na vida tem troca... muito amor perdido eu vi transformar-se aqui em poesia, em passes de dança, em música e até em comida... oh sim a comida... ela não enche apenas a barriga... também o espírito... a alma, sobretudo se for bem regada com uma boa bebida! Mandaram vir duas cervejas. Vieram as cervejas e uns amendoins. Ainda faltava muito tempo para o pôr do sol e Casimiro deixava a cerveja gelada a embeber o seu lábio torturado. Sentiu um ardor que lentamente desaparecia para dar lugar a uma desejada insensibilidade. Deixou os golos de cerveja voltear na sua boca antes de os deixar escorrer pela garganta dolorida. - Prove a jinguba, amigo Casimiro, posso trata-lo assim, não? - Como você disse somos patrícios, os patrícios devem ser amigos... - Não se esqueça que o rapaz que lhe bateu e lhe levou a carteira também é seu patrício... Porque é que veio pra Angola amigo Casimiro? - Olhe, porque aquilo lá em Portugal já não se aguenta. Eu se pudesse até lá ficava, deixei lá a minha família... mas chegou a um ponto que me decidi... a lei diz que eu sou angolano, nasci aqui antes da independência... - E só agora que isto está bom você veio... mas eu compreendo, quem sou eu para não compreender... os meus pais também acharam que eu estaria melhor fora daqui... tinham medo que eu fosse para a guerra... afinal foi o meu pai quem morreu e a minha mãe ficou só, na sua casa de terra no muceque para onde voltou... eu podia ter ficado por lá... mas voltei! Porque é que voltaste Jacinto? Ai meu filho esta terra é uma desgraça, é só guerra... o teu pai queria tanto que estudasses... Mãe, aqui também se aprende e comigo ao pé de ti nada te vai faltar... Jacinto foi contando a Casimiro a sua história de português mulato em Lisboa, os seus estudos na universidade, o curso deixado a meio para vir assim de repente para Luanda cuidar da velhota. Angola era uma terra de esquemas e ele rapidamente encontrou o seu aprendendo com quem sabia, merecendo a sociedade primeiro e conquistando depois a chefia do negócio que prosperava sem limites, passando a ser o seu homem da linha da frente. Até a sua mãe ficou assustada quando ele a transplantou da sua cubata para uma casa na ilha, num

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37 primeiro andar cuja escada ela tratou de debruar de vasos de flores e fetos transbordantes que eram o seu orgulho. Jacinto adorava dar uma passada de manhã pela frente da casa, depois da sua volta pelos seus pontos de venda, só para a ver de degrau em degrau, vacilante nas pernas mas firme de mãos sustendo o regador a dar de beber às plantas que lhe retribuíam com um sorriso verde só invisível aos olhos dos demais. Vieram mais duas cervejas... o telefone do Jacinto Mateus tocou uma, duas vezes, ele atendendo por monossílabos... numa das vezes levantou-se e ficou alguns minutos falando ao telefone virado para o mar que se afogueava como uma mulher ouvindo palavras de amor pela primeira vez. Casimiro começava a acusar os sintomas da anestesia instilada suavemente pelo Jacinto que lhe tinha aparecido como um samaritano... não um anjo salvador como ele teria preferido, mas como um anjo reparador, que lhe vinha pondo, quase sem ele se aperceber, algum bálsamo nas suas recentes feridas. Contou também parte da sua história... era o mais novo de cinco irmãos... todos estudaram, tiraram cursos superiores só ele se contentou com o liceu arrancado a ferros graças aos esforços da sua mãe e de pesados castigos do pai. Queria trabalhar, qualquer emprego servia, desde que desse dinheiro para se poder divertir do modo que queria, perdendo noites e desbaratando tudo o que ganhava em sensacionais fins de semana. Não tinha namorada certa, o casamento também não estava nos seus planos... nos tempos que correm, dizia, só a liberdade compensa. O pior foi a crise que ia tomando conta de todos os trabalhos que conseguia arranjar, cada um pior que outro, ganhando cada vez menos, os amigos desaparecendo aos poucos, rareando cada vez mais as noites infindáveis de pândegas que tinham sido o seu apanágio. Como um filho pródigo voltou a casa dos pais, enfrentando a frieza dos irmãos, mas sobrevivendo das sobras da casa paterna. Até que viu um anúncio que lhe despertou a atenção porque se referia a pessoas que tivessem nascido em Angola e para ali quisessem voltar para trabalhar. - Vai mais uma cerveja Casimiro? Já viu a maravilha deste pôr de sol... é o que eu sempre digo, esta beleza é a única riqueza inesgotável desta terra...

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38 Pediram ao empregado mais bebidas e mais jinguba. A mesa estava agora cheia de cascas agitadas pelo leve sopro do vento que mudava de direcção. Casimiro passou os dedos pelos cabelos procurando fazê-los voltar à sua posição normal. Não gostava de se sentir despenteado mesmo que não estivesse ali ninguém a quem pudesse agradar. O sentimento de revolta pelo roubo de que tinha sido vítima estava quase completamente apaziguado e na sua vez crescia um sentimento de culpa pelos insultos dirigidos ao rapaz que lhe lavara o carro por seu único alvedrio. Estava tão contente consigo próprio e com o seu novo Bilhete de Identidade que nem quis saber do pobre lavador do carro ao ponto de o tratar daquela forma desprezível. Tudo fora afinal por sua culpa e estava quase a ponto de chorar... e mesmo assim, voltou a aceitar o pedido de mais umas cervejas. - É assim, Casimiro, o regresso à Pátria tem que se lhe diga... eu vim pela minha mãe... você veio por não ter trabalho em Portugal... mas sabes, nada disso tem qualquer importância... o importante vai ser o que nós vamos ser capazes de fazer aqui... Jacinto Mateus levantou-se, pagou a conta e acendeu mais um cigarro que lhe dava um trejeito de escárnio ainda que agora não parecesse menos amigável - Venha comigo... você está sem dinheiro, e a noite ainda vai começar...

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39 O ANJO DO KINAXIXE Casimiro olhava curioso mas ainda mais ansioso para o funcionário da identificação civil que lia com a maior lentidão, linha a linha, cada uma das certidões dispostas sobre o tampo da secretaria do seu gabinete ali ao Kinaxixe. - O Sr. Casimiro sabe que é crime a solicitação de nacionalidade falsa? A curiosidade dissipou-se no mesmo instante dando lugar à preocupação e ao medo. - Mas, Sr. Elias, eu não... - Dr. Elias... - Não quis ofender Dr. Elias, mas eu não estou a cometer crime nenhum... eu nasci em Angola, vê? Em 1974... e a minha mãe também... eu já sou angolano de segunda geração... - Então onde está o BI da sua mãe que prova que ela é angolana? - A minha mãezinha já morreu Dr. Elias, mas está aqui a certidão de nascimento dela, a dizer que nasceu em Luanda... veja em 1942... - Mas ela nunca legalizou essa situação, está a ver? Ele viveu e morreu como portuguesa e consequentemente o Sr. Casimiro é filho de pais portugueses... tenho muita pena, mas eu vejo a sua situação muito complicada... muito complicada mesmo. Casimiro da Silva engoliu em seco, estava a precisar urgentemente de uma bebida qualquer para se sentir capaz de raciocinar, mas lá encontrou uma coisa para dizer e para contrariar a acusação que lhe havia sido feita. - Aceito que a situação pode ser complicada, mas o Dr. Elias deve concordar comigo que não estou a praticar nenhum crime de solicitação de nacionalidade falsa... penso que a minha nacionalidade está na lei... - Isso é o que o Sr. Casimiro pensa... o que eu sei é que tenho aqui um despacho do meu ministro, que para mim vale tanto ou mais que qualquer lei e que diz precisamente o contrário... que não se passam Bis a quem tenha nascido em Angola se não tiver pai ou mãe angolana, está a ver a situação? - Estou a ver, sim, Dr. Elias, embora eu não compreenda... porque a Lei da Nacionalidade diz preto no branco que quem nasceu em Angola antes da

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40 independência é angolano... - Oh Sr. Casimiro, isso já foi, isso já se passou há mais de 30 anos... a questão é que o tempo tem os seus efeitos... uma coisa era o Sr. tirar o BI nessa altura em que nós precisávamos do Sr. aqui, outra coisa é querer o BI agora em que o Sr. não faz cá falta nenhuma... - Dr. Elias, o senhor já viu aí pela minha certidão, a idade que eu tinha em 1975, quando essa lei foi passada?” Um ano de idade... um angolano de pleno direito, ainda a gatinhar, como o próprio país... acha que eu podia fazer o quê? - Não estou a discutir isso mas os anos passaram e nunca cá pôs os pés... - Se o Dr. Elias tivesse um filho com a mesma idade e o tivesse mandado para Portugal por qualquer razão, e ele viesse só agora para Angola o senhor também lhe recusava o BI? - Não compare coisas que não são iguais ... o meu filho é filho de pai e de mãe angolanos... além de que nunca mandei filho nenhum para Portugal... Casimiro transpirava e sentia uma impaciência crescente a transformar-se em fúria com a argumentação daquele zeloso funcionário para quem a lei se reconduzia a uma orientação hierárquica. O Dr. Elias Samuel de rosto voltado para as certidões olhou-o por cima dos óculos. Parecia hesitar. A pouco e pouco o seu rosto foi esboçando um vago sorriso de compreensão. Eles estava farto de repetir aquele discurso a todos os candidatos à nacionalidade que transpunham a sua porta e sabia bem como aquela conversa toda iria terminar. Mas ainda tinha alguma coisa a acrescentar. - O Sr. Casimiro sabe muito bem, ou devia já saber, que todos estes papéis cheios de carimbos para impressionar, são insuficientes para que lhe seja passada a documentação da identidade angolana e se isto não é crime, anda por lá muito perto e o que eu devia fazer, na dúvida, era mandar autuar um processo contra si... - Por amor de Deus Dr. Elias, não me complique ainda mais a vida... - Mas não sou eu que lhe complico a vida... o Sr. Casimiro é o único responsável por toda esta complicação vindo aqui apresentar documentos para obter uma nacionalidade que sabe que é falsa... que o Sr. Casimiro é português e nada mais”. Quer que lhe meta um processo ou prefere ir

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41 embora? - Embora para onde? - Embora para onde veio... logo que lhe acabe o visto ou antes, como eu o aconselho... - Dr. Elias, o senhor está enganado... olhe, eu tenho o cartão de residente em Portugal passado pelo consulado em Lisboa, eu não estou a vir agora pedir nada a que não tenha direito, tenho o passaporte angolano emitido em Lisboa, veja... O Dr. Elias Samuel puxou os óculos mais para cima do nariz e olhou com alguma admiração para os novos documentos produzidos pelo Casimiro, ficando vários segundos avaliando a situação. - E só agora é que me mostra esses documentos? - Dr. Elias só os mostrei para lhe provar que eu não decidi vir agora aqui neste momento ser angolano... - Pois a mim parece-me que esses documentos não são válidos porque foram emitidos sem base consistente... não poderiam ser emitidos pelo consulado pela mesma razão que eu não lhe posso emitir o bilhete de identidade Sr. Casimiro. - Eu estou de boa fé Dr. Elias! - E eu estou então de má fé, é isso? Ora passe para cá esses documentos! - Ah, isso é que não, Dr. Elias, santa paciência, sem o passaporte eu não posso viajar... - Tem o português, viaje com ele... - Sem visto, isso é que era bom, já não basta recusar-me um documento de identidade e ainda me quer apreender um documento legalmente passado pelo Consulado? - Prefere ir preso por desobediência Sr. Casimiro? E o Dr. Elias juntando o gesto à palavra tocou uma campainha debaixo do tampo da secretaria para chamar um guarda enquanto o pânico invadiu o seu infeliz interlocutor. Casimiro levantou-se de um salto, apanhou de sopetão os documentos da secretária e desapareceu escadas abaixo descendo os degraus de dois em dois, escapando por pouco a um entorse do tornozelo e emergiu à luz do dia a coxear, meio tonto, mas livre daquele pesadelo

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42 por uns instantes. Um tipo alto, elegante, de casaco desportivo e óculos escuros, dirigiu-se a ele com um sorriso. - Correu mal aquilo lá em cima, não foi? - Não correu bem, mas isso não lhe diz respeito, que eu saiba... - Aqui tudo o que se passa à volta me diz respeito... como é que o amigo se chama? - Casimiro Silva, em que é que lhe posso ser útil? - Desculpe Sr. Casimiro mas a pergunta é exactamente ao contrário, devia perguntar antes como é que eu lhe posso ser útil... ficaria a saber que eu sou, digamos assim, o anjo do Kinaxixe, aquele que resolve todos os problemas legais, por mais complicados que sejam... - Pois sim, Sr. ... como é que o Sr. se chama? - Desculpe eu não me apresentei... e dizendo isto tirou do bolso de dentro do casaco um vistoso cartão de visita que entregou a um aturdido Casimiro... “Feliciano Gabriel, às suas ordens. - Muito obrigado, realmente eu estou a precisar de alguma ajuda mas nem sei, neste momento o que lhe dizer, vou ficar com o seu cartão... - Mas eu nem preciso que me diga nada... basta-me olhar para si e deixe-me ver...” Feliciano Gabriel puxou por momentos a cabeça para trás, como se precisasse de ganhar perspectiva, os seus óculos escuros faiscaram ao sol, uma dentadura alva sobressaiu com o seu sorriso ...o Sr. Casimiro é um cidadão angolano de pleno direito, nasceu em Angola antes da independência, bom, em todo o caso antes de 1984... e o seu direito fundamental... sim fundamental... está-lhe a ser sonegado mediante a recusa da emissão do bilhete de identidade que é mais do que obrigação do Estado emitir. Casimiro ouviu estupefacto aquele homem realmente caído do céu. Ainda meio embasbacado arriscou: Eu não podia explicar melhor a minha situação, o senhor tem poderes de adivinhação? O outro riu com o seu cativante sorriso de dentes cintilantes e pronunciou, tentando assumir um ar mais sério embora sem perder um certo tom de gozo: Está-me a perguntar se eu sou feiticeiro? Mas eu já lhe disse que sou apenas um anjo do Kinaxixe, um mero anunciador de soluções para os

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43 problemas dos meus irmãos... e todos os angolanos, nascidos ou não nascidos nesta terra, filhos de pai e mãe angolana ou de um só deles, são todos meus irmãos... - E então qual é a solução Sr. Gabriel? - Caro Sr. Casimiro, o trabalho de um anjo é apenas despertar o poder em cada um... ser um mero intermediário... em Angola, meu amigo, há solução para tudo... para tudo mesmo, e não é uma questão nem de como, nem de onde, nem de quando,... é só uma questão de quanto! - De quanto? Quer dizer...dinheiro? - Sim Sr. Casimiro, kumbú, bufunfa, o nome que o Sr. quiser desde que seja traduzido em notas verdinhas ainda a cheirar ao cofre do Banco... respondeu o Feliciano acompanhando com o polegar a acariciar o indicador a tradução literal do que dizia. Casimiro da Silva podia ser um angolano de arribação tardia mas não era completamente estúpido nem desconhecia o fenómeno da corrupção local propagando como incêndio em mata virgem. Quem sabe aquilo tudo não era uma armadilha montada pelo Dr. Elias para o enquadrar criminalmente já que a solicitação de nacionalidade falsa não tinha pernas para andar. Não deixava de ser muito estranho que aquele indivíduo conhecesse a sua situação tão bem como se tivesse estado invisível ao seu lado durante a audiência que acabara de lhe ser concedida. Pensando bem, era isso mesmo, o Dr. Elias deve ter comunicado com este Feliciano Gabriel pelo seu telefone celular dando todas as dicas para este o fazer incorrer numa prática condenável e depois o exibir não apenas como um impostor da nacionalidade mas também como um belo exemplo de estrangeiro exportando para o território nacional essa praga da corrupção de que em Portugal tanto se fala... Seriam dois coelhos de uma cajadada só... livrava-se de um pseudo-angolano importuno e invertia a corrente das acusações agora tanto em voga, só mesmo para chatear... - Oh Sr. Gabriel, eu só quero aquilo a que tenho direito... agradeço muito o seu conselho, mas eu não devo pagar para obter uma coisa, ainda que seja uma coisa a que tenho direito... - O Sr. Casimiro não ouviu bem o que lhe disseram lá dentro? Aquilo a que o Sr. tem direito não vai conseguir doutro jeito que não seja o que eu lhe

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44 estou mesmo a dizer... e até lhe posso dizer já quanto... um valor certo, para não haver aqui vacilações nem dilacções... - Mas eu posso ser acusado de corrupção e eu não quero correr o risco... - Risco? O Sr. Casimiro seria o primeiro caso conhecido... - Então o que devo fazer Sr. Gabriel? - Olhe Sr. Casimiro o que tem de fazer é tudo direitinho e como eu lhe vou dizer....

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45 RAIO DE GUERRA! As rajadas sucediam-se umas atrás das outras, atirando pedaços do canavial que voavam pelos ares e caíam aqui e ali como passarinhos abatidos, seguindo-se instantes de silêncio mortal. De cada lado daquele tufo de mato que bordejava o rio, os combatentes rastejavam como serpentes procurando consolidar uma posição que lhes permitisse avistar o inimigo. Estêvão desejava com todo o seu coração estar bem longe dali, a completar os seus estudos em Coimbra, que era onde estaria se aquela maldita mobilização não o tivesse atirado, sem remissão, para os campos de morte do norte de Angola, a sua terra tão amada... Aquilo era um paradoxo... contra quem estava ele ali a lutar? Veio-lhe à mente a última vez que se cruzara com Zé Rui que o avisara, apontando-lhe o dedo em riste como se fosse o cano de uma pistola, mas sem perder o sorriso zombeteiro próprio de quem entendia que tudo na vida era brincadeira ou aventura: Vê lá, Estêvão, não te metas nesta guerra... Não quero ter de te matar... a sério, pá! Amigos do peito desde crianças, nas correrias do bairro, Estêvão, filho de um comerciante do musseque, tinha ambições de estudar... sonhava em ser doutor... enquanto Zé Rui se ria às gargalhadas daquelas manias, sempre de fisga em punho, aterrorizando a passarada e exibindo os seus troféus às miúdas que incessantemente namoriscava... O seu conceito de vida era prático e conformado com a realidade à sua volta. Brincava e cantava e todos lhe vinham comer à mão. Gostava de parecer desalmado, mas tinha um grande coração. A mulher que mais amava na vida era a sua velha mãe, de quem ele cuidava para que nada lhe faltasse... pelo menos o essencial. O pai partira há muito tempo... A mãe dizia-lhe que tinha morrido, porém Zé Rui não acreditava... Estêvão era constantemente solicitado com os pedidos de mercearia para atender às necessidades da casa... Não te preocupes, Estêvão, podes dizer ao teu pai que um dia eu pago tudo... Foram crescendo, sempre a mesma amizade, a mesma entreajuda... Zé Rui era o protetor de Estevão em todas as ocasiões quando os grupos se afrontavam e passavam à acção... Estevão, sempre muito ajuizado, lá se enfiava pela noite dentro, para que ninguém visse a esmola, levando-lhe pacotes de arroz e feijão

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46 da mercearia do pai. Apontaste tudo? perguntava com o seu sorriso superior... Vê lá, que eu não quero ser enganado... Estêvão seguiu para a metrópole... para prosseguir os estudos... Zé Rui cada vez estudava menos, preferindo mais namorar e, isso sim, continuar a cuidar da mãe, de ano para ano, mais velhinha e cansada. Quando, em 1961, Estêvão regressou a Luanda para passar as férias grandes, encontrou um Zé Rui diferente, abatido... Apenas por breves momentos deixou que o seu sorriso lhe aflorasse novamente ao rosto ao contar ao seu amigo que se tinha juntado a uma jovem do bairro operário, a Idalina. Tu não a conheces... e ainda bem... Ela é linda de morrer... e olha, está à espera de um filho meu..., mas logo depois ficou taciturno e pela primeira vez Estêvão sentiu-o revoltado: Esta vida não é justa, Estevão... Isto um dia tem de acabar... Estou a pensar dar o salto, antes que me apanhem na rusga para o serviço militar... Por onde andaria Zé Rui? Os anos tinham passado... Certamente, estaria na mesma guerra, embora, pela primeira vez, no lado oposto... já não podendo protegê-lo como outrora. As rajadas continuavam descompassadas, entrecortadas por um grito de dor que se escapava, denunciador de alguma garganta em pouco tempo agonizante. Estêvão entendeu a ordem sussurrada para recuar... estavam demasiado próximos do inimigo... A mata à sua frente parecia fumegar e era preciso recuar, recuar para um lugar mais seguro... mas era tarde demais... Sentiu o restolho da folhagem demasiado perto de si... Não lhe bastaria rastejar se queria escapar ao tiroteio, tinha de se levantar e fugir dali o mais depressa possível. A transpiração corria-lhe pelo rosto, abrindo sulcos na lama com que cobrira a cara para melhor se camuflar... Ergueu-se num salto no preciso momento em que o guerrilheiro, a cerca de dez metros, se materializou entre os espinheiros e o enfrentou de arma em punho. Porra, eu disse-te para não te meteres nesta guerra! berrou um Zé Rui completamente desesperado. A resposta veio em forma de uma rajada que o varou e atirou por terra. Instintivamente, Estêvão lançou-se para o solo, mergulhando a cabeça na terra antes de, a medo, voltar a levantar os olhos… pairava um silêncio de morte… e divisar o corpo jazendo um pouco mais adiante de si. Fez um esforço penoso para se aproximar a rastejar e perguntou em voz

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47 surda: Zé Rui? Zé Rui…? Nenhuma resposta. Num rápido minuto encontrava-se junto do corpo do amigo que tinha os olhos abertos de espanto, mas sem o sorriso zombeteiro que tão bem o caracterizava... A mão continuava a agarrar terminantemente a pistola como se ponderasse cumprir a ameaça que antes lhe fizera. Estêvão apalpou-lhe a camisa que parecia uma papa de sangue... Sentiu num dos bolsos alguma coisa... Revistou-o e era só uma fotografia de uma criança, um miúdo que não teria mais de cinco ou seis anos... Guardou-a e tirou-lhe a arma... Não viu nessa altura, nem depois... que tinha apenas uma bala na câmara, a bala que José Rui não disparou no momento em que se encontraram frente a frente e tudo acabou muito de repente com aquela rajada fatal. Aquele momento de reencontro e perda irremediável do amigo tornou-se uma obsessão na cabeça de Estêvão que não conseguia pensar noutra coisa. Todas as noites olhava a fotografia do filho do seu amigo desaparecido, enquanto uma ideia começava a germinar: a de o procurar, de o conhecer e de o proteger, como o pai sempre o protegera a ele e mesmo no fim lhe poupara a vida à custa da sua própria, pois se, em vez de lhe ter gritado, tivesse disparado, aquela derradeira rajada não teria acontecido. Logo que desmobilizado, Estêvão decidiu não voltar aos estudos. Procurou a mãe de Zé Rui para saber do neto... mas havia muito que ela tinha morrido e ninguém sabia informá-lo sobre o paradeiro da tal Idalina e do seu filho órfão de guerra... Não desanimou... Como se tivesse a certeza de que cumpria um destino, procurou a partir de Luanda, de povoação em povoação, uma viúva com um filho que já deveria andar pelos oito ou nove anos... Não faltavam mulheres viúvas ou abandonadas, mas nenhuma correspondia às descrições... uma mulher linda de morrer, de seu nome Idalina... Até que um dia aconteceu... Conduzindo o seu jipe pela estrada, já mesmo ao cair da tarde, passou por uma aldeia e viu uma mulher a tomar o seu banho, vertendo a água de um balde suspenso sobre um corpo, que parecia de ébano, esculpido por um artista inspirado. Estêvão abrandou... desviou o olhar... e parou mais adiante num pequeno largo ornado de frondosas mulembeiras. Cumprimentou os poucos circunstantes que gozavam o fresco da tarde e voltou

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48 ao seu inquérito habitual. Por acaso não moraria ali uma viúva Idalina e o seu filho? - O miúdo chama-se Zé Rui? Estêvão nem sentiu a necessidade de perguntar qual era a casa... Acabara de passar por Idalina há instantes e agora não perderia a oportunidade de a encontrar. Ainda com as gotas do banho a perlarem-lhe o rosto e o cabelo, a mulher viu aquele homem de t-shirt e calças de camuflado a saltar do jipe e a coxear na sua direção. Mais tarde, ele explicar-lhe-ia: Levei um tiro na bacia... mas tive sorte, não morri dessa... O pequeno Zé Rui apareceu pouco depois. Era um miúdo muito diferente do pai, calado, reservado, olhava o visitante mais como um intruso do que como o amigo do seu pai que dizia ter sido. Com quem se pareceria ele? O pai era muito alegre, sempre na brincadeira e a caçar pássaros... Não tens uma fisga? Decididamente, o miúdo não ia com a cara de Estêvão, ao contrário da mãe que lhe ofereceu hospedagem no anexo pelo tempo que quisesse. Levei muito tempo para te encontrar... Sentia que era o meu destino compensar-te pela falta do Zé Rui... Gostava de poder ajudar... Não sei muito bem como... mas hei-de descobrir... Sabes, eu ainda lhe devo muito... Idalina não queria de modo nenhum que Estêvão ficasse ali por obrigação, mas agradava-lhe a sua presença e convidava-o a tomarem juntos a refeição diária. Estêvão ia até à cidade mais próxima fazer as compras e trazia sempre alguma coisa para o Zé Rui “pequeno”, como gostava de lhe chamar. Conversavam longamente à porta da casinha modesta que Estêvão se empenhava em melhorar, comprando alguns materiais que diligentemente aplicava, tendo começado por fazer uma cerca que permitia o banho de Idalina longe de olhares cobiçosos. Não tardou muito, porém, que Estêvão desejasse voltar a ver as formas bem esculpidas de Idalina, ficando, por isso, no seu cubículo durante a noite quente a imaginar coisas entre as estrelas do céu, como a combinação da sua cor clara, tal qual a da Via Láctea, com aquele corpo da cor do ébano. Zé Rui pressentia essa aproximação recíproca, as mãos da mãe ficavam tempo demais entre as daquele estranho que invadira o seu ninho não sabia bem por que razão. Resolveu satisfazer a sua curiosidade infantil indo remexer na mochila de Estêvão numa tarde em que este ficara em casa com a mãe,

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49 conversando e rindo... Descobriu então a sua fotografia ainda manchada do sangue do pai. Assim como descobriu também a pistola... Idalina e Estêvão também descobriram algo: que estavam apaixonados um pelo outro e que o amor os juntara por um acaso do destino. Com a foto numa mão e a pistola na outra, o pequeno José Rui aproximou-se do quarto da mãe. Assaltava-o a intuição de que o homem em cima da mãe, beijando-a e acariciando-a entre murmúrios que só lhe ouvia em sonhos ou pesadelos, era o assassino do pai... Do pai, que era o único ser no mundo que lhe fazia verdadeiramente falta! A simples ideia de ter diante de si um usurpador era por demais insuportável. Ergueu o braço, apontou a arma e disparou. O corpo de Estêvão, esvaído em sangue, teve uma última contração e morreu dentro de Idalina. O seu rosto abriu-se, pouco a pouco, num sorriso de prazer, como se o seu espírito o levasse novamente até à serrania verdejante onde pela última vez encontrara o amigo... e viu a bala disparada vir na sua direção. Idalina sentiu o peso morto e o sangue viscoso a inundá-la e olhou, entre as lágrimas que se soltavam, o cano fumegante da arma. Pela primeira vez chorou sem remédio a morte do homem que amava, o homem que a guerra lhe trouxera e que a mesma maldita guerra levava agora para sempre. Raio de guerra!

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50 O HOMEM QUE VIVEU DUAS VEZES Os dois miúdos corriam pela areia morena e molhada da praia, mergulhados nas suas brincadeiras que naquela idade e naquele tempo eram o único escape para a sua fantasia. De repente, um deles estacou fixado no mar ainda a espreguiçar-se mansamente aos primeiros raios de sol e, logo de seguida, voltado para o companheiro de correrias e risadas apontou o braço e o dedo para a monstruosidade que emergia diante dos seus olhos abertos de espanto. O outro aproximou-se quase a medo, o sorriso das brincadeiras a transformar-se numa careta de surpresa e incredulidade... A imensa barbatana de ferro cortava a fímbria do mar como uma miragem mas, tal como apareceu, desapareceu na profundidade do mar, como se subitamente se tivesse arrependido de ter vindo à tona. - Tu viste aquilo? Passaram mais de cinquenta anos... sobre o fim da maior guerra que afectou a humanidade mas muito pouco sono tirou àqueles dois amigos que surpreendemos nas suas brincadeiras infantis naquela manhã de sol brilhante junto ao mar, na praia de Moçâmedes... - Vai mais um copo Mário? - Desde quando é que tu contas os copos que eu bebo oh parceiro...? - Seria muito difícil saber... tu tens alguma ideia de quantos copos já bebeste na tua vida, quantos quilolitros já enfiaste pela goela? Dava para encher a piscina do Nun’Álvares... - Qual piscina, em termos de líquidos preciosos só aceito o mar, o vasto oceano, como medida... - A propósito de mar...tu lembras-te do submarino? - Eh pá! Já se passou tanto tempo... o que nós sofremos por causa dele, a humilhação de passar por mentirosos perante toda a comunidade... o meu pai andou atrás de mim para me bater depois que ficou horas a perscrutar o horizonte com os seus binóculos... - O teu pai e toda aquela gente que acreditou em nós e depois a troça como todos nos passaram a olhar... ainda hoje sinto na pele o peso da desconsideração que me atingiu...

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51 - Mas foi giro enquanto durou aquela ansiedade toda, não foi pá? A história de um submarino a rondar a nossa praia... lembras-te? “Há alemão na costa”, proclamava o professor Areosa sempre com um livro na mão para sustentar as suas teses... - O que depois se riram dele, pobre Areosa, morreu de velho mas sempre convencido da sua teoria... - Que o submarino transportou para Angola a fina flor dos nazistas fugindo à ignomínia da derrota... que grande história... - Mas o que tu não sabes Mário é que ele talvez estivesse coberto de razão... - Não me digas que acreditas numa palavra dessa treta... lá porque tu e eu vimos aquele submarino... porque isso vimos... com toda a certeza...o resto são histórias... - Precisamente por isso Mário... a nossa também foi considerada uma história, inventada por nós ainda por cima... e há pelo menos uma outra história que um grande amigo me contou um dia em Luanda, na esplanada do Baleizão enquanto trincava uma sandes de presunto bem regada com uma cervejinha a estalar... como eu gostava... - Que outra história? - A história do Malaquias... ele estava sempre de sentinela ao fim da tarde no Baleizão a sorver os seus finos e era um bocado filósofo, dizia que a história da cidade e talvez de Angola só se podia escrever passando todos os dias pelo Baleizão. - E ao fim de quantos finos a história se tornava ficção? - Pois, tens razão... mas a verdade é que fiquei impressionado quando ele aproximando-se do meu ouvido, me contou a cena mais inacreditável que já tinha ouvido, e que não podia deixar de ouvir fascinado apesar do seu repelente hálito a álcool. - Aí mesmo onde estás sentado... nesta mesma mesa, todos falando numa língua que eu não percebi uma única palavra... o homem tinha qualquer coisa de familiar e era o único que não abria a boca para dizer nada, o olhar estava fixo como se fosse de vidro mas brilhava eu não sabia se era ódio, ou amor... eu não o reconheci mas sabia que o conhecia... - E os outros?

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52 - Essa é a parte interessante que me deixou louco de curiosidade... nenhum deles parecia muito à vontade com excepção de um que era o único que se aproximava do homem calado e lhe transmitia não sei que recados ou que lhe traduzia alguma coisa... vi que falava um português atravessado, foi ele que encomendou as cervejas e as sandes... - Mas oh pá, quando é que isso foi? - Já sabia que ias perguntar Mário... fiz-lhe a mesma pergunta... foi no ano em que a guerra terminou, pouco depois da rendição dos alemães... mas ouve, o melhor da história... - Estavam todos a beber a cerveja bem geladinha e a mastigar o pão com presunto que vinha lá da terra do velho Aparício... e o homem calado cada vez me lembrava mais de alguém conhecido mas eu não me lembrava, era o único que parecia não ter apetite... limitava-se a levar a caneca de cerveja aos lábios e os olhos fixos no tampo da mesa como se estivesse a ler um mapa ou coisa assim... - Não me digas pá, não me digas... que acreditaste mesmo? - Calma Mário, também não é assim tão impossível... queres ouvir ou não? - Tudo bem, mas vou precisar de mais um copo... - Foi então que o homem levantou o olhar e me fixou, um olhar gelado como a cerveja que lhe tinha deixado um bigode de espuma e lhe dava um ar quase ridículo... e de repente eu senti-me trespassado... - Pelo olhar do homem? - Pelo olhar, pelo bigode que não tinha e que vi como se tivesse... e eu lutando comigo mesmo para acreditar numa coisa que não podia estar a acontecer pois o homem estava morto... - Mas quem? Como? O que se passou depois? - O homem chamou o tal companheiro e falou-lhe ao ouvido, este ouvia com todo o respeito e depois voltou-se na minha direcção e sorriu para mim... um sorriso esquisito, só com os lábios arrepanhados para cima como um palhaço mas com as sobrancelhas farfalhudas aproximando-se uma da outra a cercar uns olhos ferozes que se tornavam mais pequenos enquanto me avaliava... - O que eu dava para estar no teu lugar...

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53 - Pois olha que nesse momento eu estava borrado de medo, o tal ajudante levantou-se da mesa, perfilou-se diante do homem misterioso, estendeu o braço numa saudação e com uma reverência afastou-se e veio na minha direcção... - E agora Mário, que achas deste pedaço de história? Cola com a do submarino não achas? A mesma data, a teoria do Areosa... - Eh pá, tu estás a delirar... uma coisa é ver um submarino que os há agora por aí aos montes... a descarregar armas durante a noite e a fazer outro contrabando internacional... outra coisa é plantar esse filho da puta no Baleizão a comer gelados... - Presunto, bom presunto português e cerveja à pressão... - Ou isso, mas como é que ele conseguia mastigar esse delicioso pão com presunto com os dentes deixados no bunker onde ele ardeu até à ultima chama abraçado à sua querida Eva.. - Com os dentes que Deus lhe deu... todo o mundo acreditou na morte do homem porque os dentes encontrados no corpo calcinado condiziam com a ficha do dentista dele... ninguém pensou que a ficha podia ter sido facilmente substituída pela de alguém que morreu no bunker abraçado a Eva Braun, que essa sim serviu de autenticação... embora os peritos se esqueçam que nada pode ser mais enganador do que o amor verdadeiro... - Oh pá, estás a gozar comigo, oh pá não gozes comigo... oh rapaz traz-me outro copo que este já acabou, você não vê...? - Não te irrites Mário, já agora deixa-me contar o que o meu amigo me confidenciou nesse fim de tarde no Baleizão... - O senhor não querr sentarr-se na nossa mesa? O meu chefe gostarria de o conhecer... uma pessoa desta terra marravilhosa... - Com certeza... o meu nome é Malaquias... o senhor é? - O meu nome é Fritz... é um nome como Manuel ou Joaquim em português... - E o seu amigo é quem? - É meu chefe! - Não, isso é que não... recuso-me a acreditar que esse homem viveu tranquilamente nesta terra até ao fim dos seus dias...

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54 - Não és obrigado a acreditar Mário... o próprio Malaquias morreu com dúvidas, para falar a verdade ele acabou por quase esquecer essa história... a conversa dele com os alemães não lhe deu qualquer indicação, limitavam-se a rir muito depois que o tal tradutor repetia em alemão todas as suas tiradas sobre a terra e as suas gentes... - O Malaquias é uma coisa, tu és outra... como é que tu embarcas numa fantasia dessas? - Depois de embarcarmos naquele submarino que só vimos talvez em imaginação, tenho feito muitas viagens desde então... - E então? - Então, uma vez que fui fazer um julgamento a Malange, no regresso vim pelo Pungo Andongo que estive a admirar do alto da sua maior penedia e, como já era tarde para chegar com a luz do dia a Luanda decidi meter-me a caminho da plantação de um casal alemão a quem tratava de uns processos na geologia e minas... renovação de licenças de prospecção ou coisa assim... nunca os visitara antes e aquela era uma boa ocasião... . A estrada era poeirenta que sei lá... queria chegar antes do por do sol e acelerava por aquelas veredas deixando atrás de mim um rasto de nuvens douradas que se podiam ver à distância. Cheguei à plantação e alguém me apontou para o alto de um morro escarpado logo adiante. A residência dos meus amigos alemães ficava bem no alto de uma inesperada colina. Dei uma volta à viatura para iniciar a subida e, de repente, foi como se estivesse a atravessar a fronteira para entrar num outro mundo... a vegetação florida emergiu como por encanto e comecei a ouvir de um lado e do outro da estrada o canto gutural de umas aves que rapidamente se tornaram visíveis com os seus leques multicores... eram pavões reais que se passeavam por ali como guardas de um paraíso desconhecido. Dei conta da minha surpresa aos donos da casa que me receberam com afabilidade de braços abertos no seu terraço à frente de uma casa de um único piso que mais parecia, naquela altura, um ninho de águias... - Têm aqui um verdadeiro Jardim de Éden... pensava que tínhamos sido expulsos de lá há biliões de anos...

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55 - É preciso ter o sentido da sua perda muito viva para ter a força de o recriar... - Não sabia que tinham sido expulsos de algum paraíso algures... - Oh nós não, mas ele... aquele homem ali... o nosso jardineiro... Olhei para o velho quase calvo que caminhava meio dobrado entre os socalcos de canteiros acariciando as flores inclinadas ao cair da noite... - As flores... são tudo o que lhe resta dum amor antigo... fez isto tudo aqui à volta... por ela... - Um verdadeiro paraíso... é extraordinário... o vosso jardineiro deve ser um homem realizado... - Tenho as minhas dúvidas, Deus parece ter-se esquecido da sua Eva... Mário que escutara a história do jardineiro misterioso com um ar divertido, bebeu de um trago o resto da cerveja que tinha no copo, levantou-se e sem se despedir do amigo desandou com o andar de D. Quixote metido na sua armadura, a caminho da Marginal. Fiquei meio especado na esplanada a olhar a sua silhueta esquálida e à medida que se ia diluindo nas cores de mais um poente doirando a baía, eu já só via o menino atrevido que corria pela praia de punho erguido pronto a enfrentar o monstro que crescia desmesurado do oceano... - Mário, ei Mário, espera por mim, pá, vamos juntos...

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56 A FLOR DA CEREJEIRA Ela chegou ao pé de mim, com passinhos de lã, a cara toda pintada de branco, os lábios como uma cereja em forma de um pequeno coração. E aquele seu sorriso bonito que quase cerrava os seus olhos amendoados tornando-os apenas em dois traços negros no seu rosto de lua. Gosta de mim assim? Mayumi era uma rapariga moderna que vestia invariavelmente calças, quase sempre de negro, o que lhe ia bastante bem e lhe dava um ar de pantera com aquele seu andar flexível de animal bravio em que apenas a cabeça parecia imóvel no topo do seu corpo pequeno mas ágil e felino. Como é que uma japonesa veio lá do fim do mundo para uma terra como esta, pondo em prática as suas aptidões de gestão de património ao serviço de uma empresa internacional, é mais uma história como tantas outras que se ouvem por aí contar. Afinal Angola tornou-se uma nova meta no mundo globalizado de hoje, não sendo preciso pensar muito para a imaginar como uma terra de mil e uma oportunidades, especialmente para gente com grande sentido prático da vida, a quem o futuro interessa mais que o passado por muito carregado que este persista com todo o peso das suas tradições. O Japão é certamente um desses países que excita a nossa imaginação, um país que se viu derrotado na segunda grande guerra e por isso mesmo privado como condição de vencido de manter o seu próprio exército de que tanto se orgulhava. Mas o sentido da honra, o respeito pela palavra, o código dos samurais cria em seu redor uma auréola de admiração que infunde um sentimento de reverência quando por alguma circunstância da vida encontramos alguém originário daquele país noutra qualquer latitude. Foi, pelo menos isto que senti com Mayumi quando a conheci em Luanda. Nos meus passeios solitários de fim de tarde, pela marginal, agora adornada com umas pontes que ganham uma iluminação azul com o anoitecer, eu podia estar a passear em qualquer paragem distante do extremo-oriente. Não seria de estranhar ver, assim, a correr na minha direcção, uma jovem deslizando em patins, quase voando nos seus velozes skates, cujas feições logo a identificavam com aquelas paragens longínquas. No lusco fusco do poente que

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57 cobria Luanda de uma manto de púrpura, aqueles olhos esguios vindos lá do Sol Nascente passaram por mim como dois cometas e eu fiquei parado e de pescoço torcido a vê-la evoluir e desaparecer a pouco e pouco na longa passadeira vermelha que debrua o passeio da nova marginal. Mas Luanda não é ainda uma cidade como Tokyo onde uma pessoa com quem cruzamos, pela lei das probabilidades, só numa próxima existência teríamos ocasião de voltar a encontrar. Apenas alguns dias depois, estava eu no Chill-Out a curtir uma destas noites de Verão tropical em que alguns chuviscos não chegam para refrescar, enquanto a malta jovem se divertia a sacudir os corpos e a espalhar mágoas, fui metendo os pés pela praia saboreando a macieza da areia ainda húmida dos últimos avanços do mar e ali fiquei algum tempo extasiado com os reflexos da iluminação da festa na espuma rendilhada em que se desfaziam impotentes as ondas da maré vazia. Quase não dei pela aproximação de uma jovem que se veio juntar à minha solidão, com um sorriso de quem tem medo de vir incomodar... olhou-me com um gesto de cabeça, como se me interrogasse sobre não sei bem o quê, a que correspondi com idêntico sorriso, embora curioso, pois me pareceu reconhecê-la sem que na verdade a conhecesse. - Desculpe... estava sozinho, não quero incomodar... - Pelo contrário... a sua companhia é uma bênção... embora eu não o soubesse, acredite que estava à sua espera... - Ela entendeu a minha resposta como um gracejo pois riu, um riso meio tímido, incompleto como um botão de flor que começa a desabrochar, ao mesmo tempo que levou a mão à frente da boca e foi como se mentalmente a visse cobrir parte do rosto com um daqueles misteriosos leques decorados com copas de verdes árvores sob um fundo de céu dourado. De repente veio-me à memória a patinadora evanescente da marginal, ela iludiu-me por instantes pois agora, sem os patins, parecia muito mais pequena, quase uma criança, eu que a tinha imaginado naquele nosso cruzamento instantâneo como uma deusa mercuriana, com asas nos tornozelos e fogo nos olhos enquanto agora os seus pezinhos minúsculos estavam metidos numas modestas sapatilhas pretas e os seus olhos eram dois pequenos lagos de ternura.

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58 - Não me conhece, mas eu sim... passou por mim como um raio... - Oh... que bom, você me viu a patinar, não foi? Eu sou Mayumi! Foi assim o nosso conhecimento nesta Luanda de tantas misturas, de tantos cheiros no ar... e, contudo, juntos na praia, tive a breve sensação de que não era a mar a fragrância que eu sentia mas o perfume das cerejeiras em flor. Intrigado perguntei-lhe se estava a usar esse perfume. Ela voltou a rir... disse-me que não era a altura... cherry blossoms só mesmo no início da primavera...era tão maravilhoso, quanto passageiro. Não se deve esbanjar o que é tão precioso e que vai tão rápido ela disse com um gesto de mão e foi como se eu visse uma flor de cerejeira desprender-se de entre os seus dedos finos de porcelana e desaparecer pétala a pétala nas fímbrias do mar. Como a Mayumi... que passa correndo como levada pelo vento... Voltou a rir... era sinal de que estava a gostar de mim... e eu aproveitei para saber: Quando a volto a ver? Ficou a olhar o mar, andou um pouco em sua direcção, tirou as sapatilhas e molhou os pés, deu mais uma risada e correu para trás, as calças molhadas colavam-se às pernas que me dei conta de serem bem torneadas, como convém a uma boa patinadora. Segurei-a pelos braços para não se desequilibrar e assim ficamos de repente quase abraçados, quase desconhecidos, quase a querermos conhecer-nos mais... era preciso apenas um pouco menos de distância, mas o sorriso desmaiou, senti-o morrer, não sei se de pena de mim... baixei lentamente os braços, ficaram em sentido, paralisados, enquanto ela passou uma mão molhada pelos cabelos e recuperou o sorriso triste. Vou amanhã para o Japão... mas vou voltar... no meio de Março... Fiquei a pensar como as coisas acontecem na vida, ela estava ali comigo e, tão inesperadamente como apareceu estaria amanhã voando para o outro extremo do mundo para um país que eu só conhecia de livros, de filmes e da ópera, é claro, a Madame Butterfly, da autoria de um italiano mas certamente possuído como eu do encanto do oriente. Não tendo a certeza de que ela conhecesse a ópera de Rossini e o seu libreto mesmo assim arrisquei ser espirituoso: Então, un bel di vedremo?

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59 Sim, é claro, um belo dia de primavera e prometo que nesse dia trago não só o perfume mas um flor de cerejeira. Despedimo-nos com um beijo em cada face e eu ainda fiquei por ali, inspirando-me e dando-me conta de que aquela aparição me tinha transportado a outro tempo e a outra idade. O Japão passou a ser um novo território da minha fértil imaginação. Os meus roteiros de viagem eram os livros a que ia lançando mão, para melhor compreender a alma desse povo que eu até aí quase só identificava com os samurais e o seu famoso código do Bushido. Curiosamente, também os samurais tinham a noção de que as suas vidas eram como as flores da cerejeira, efémeras, e daí o seu lema de viver o presente sem medo! Mayumi tinha dito que não se podia esbanjar o que era tão precioso e assim era porque a flor da cerejeira era mais fugaz que um perfume, uma lição deitada ao vento a lembrar que o tempo passa rápido e que a vida é sempre demasiado curta para se viver um amor por mais frágil que seja. O problema é que depois daquele nosso encontro vários invernos se passaram e outras tantas primaveras se sucederam... no Japão, todos os anos as pessoas corriam a contemplar os campos fugazmente pintados de branco e rosa como um mar de neve pintalgado de vermelho. Um mar de flores, de seu nome Sakura, lembrando a princesa que caiu do céu perto do Monte Fugi e numa delas se transformou. Para sempre a flor da cerejeira ficou como o símbolo da mulher formosa e amante e daí o seu fruto, polpudo e vermelho que quando mordido parece sangrar. Fui ficando cada vez mais velho, ano após ano, quando chegava o mês de Março aguardava sempre com mal disfarçada ansiedade pelo belo dia da flor da cerejeira. Pouco a pouco dei-me conta de que tudo fora fruto da minha imaginação e que nunca a havia conhecido. Tinha sonhado... não tinha sido a primeira vez e esperava que não tivesse sido a última. Já estava conformado quando, um belo dia mesmo, recebi um pequeno envelope cujo perfume logo denunciou a sua remetente. Abri-o com as mãos trémulas e dentro não encontrei letras mas quatro pétalas que tinham sido uma bela flor e já estava em decomposição...como um prenúncio do meu próprio fim. Segurei cada uma delas nas minhas mãos fechadas e tomei uma resolução que eu rezava para que não fosse tarde de mais. Voaria para Tokyio, no dia seguinte, se possível. Através do

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60 e-mail tratei de tudo num instante e ainda solicitei o serviços de uma empresa de escorts mais famosas, com o pedido expresso de me mandarem as fotos de cada uma das mais recomendadas acompanhantes nesta altura do ano... o início da primavera no Japão. É claro que numa cidade fervilhante de gente como Tokyo, pensar encontrar Mayumi ali, sem qualquer endereço, seria ainda mais difícil do que procurar uma agulha num palheiro, melhor dito, era impossível sequer de imaginar. Há, porém, quem ache no ocidente que as japonesas são todas iguais... eu também achava que eram muito parecidas... mas eu procurava alguém que me lembrasse Mayumi, com a sua maneira de olhar, de sorrir, de andar, de tal maneira que eu próprio fosse capaz de me enganar. Isso talvez fosse menos difícil, especialmente se eu criasse uma encenação em que lhe pudesse atribuir para desempenhar um papel diferente e assim, com um pequeno disfarce, ser ela mesma, ou me deixar convencer de que assim era. Decidido a “reencontrar” Mayumi fiz pelo telefone do hotel a minha escolha para a empresa de acompanhantes e levado pela minha imaginação que me transportava até ao cenário de Madame Butterfly na ópera de Viena, há tanto, tanto tempo, ficou tudo combinado para um encontro nos subúrbios da capital numa daquelas casas de madeira com um jardim e um pequeno regato tendo em frente a vista de um bonito vale que naquela altura do ano estava todo coberto de flores de cerejeira como um longo véu nupcial. Lá chegado, fui conduzido para uma sala tendo uma mesa baixa ao centro e algumas almofadas em volta. A sala tinha várias portas de correr mas a frente dava para o jardim e para o vale e ali fiquei sentado no tapete de pernas cruzadas aguardando o chá que me fora prometido. Puxei então do bolso o pequeno envelope com as pétalas da flor de cerejeira, retirei-as com um cuidado sagrado e apertei-as nas mãos sentindo o seu perfume semicerrando os olhos para melhor evocar a figura que parecia esquivar-se da memória e inebriado acabei reclinado para trás, a minha cabeça viajante apoiada num macio almadraque. Ouvi as campainhas que anunciavam o correr de uma das portas deslizando nas suas calhas de madeira de bambu como um sussurro amoroso. Voltei-me para ver entrar aquela jovem toda envolta num maravilhoso kimono, caminhando em cima dos seus minúsculos tamanquinhos, a cara pintada de branco, os lábios uma cereja, o leque na mão, debruçando-se

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61 delicadamente sobre mim. Esboçava aquele seu meio sorriso que me provocava o mesmo mistério que senti com Mayumi na praia em Luanda e enquanto ela me servia o chá eu sentia aumentar dentro de mim a sofreguidão de colher nela todas as suas flores, morder e saborear a cereja da sua boca e aspirar o perfume tão volátil daquela mulher que graciosamente se sentou ao meu lado e escondeu parte do rosto com o seu leque semiaberto. A luz do dia desaparecia, a candeia de luz amarela acesa defronte, num mastro do varandim, despertava em mim uma primavera absolutamente inesperada. Agarrei-me àquela jovem como quem se aperta contra uma árvore, os meus braços e os dela entrelaçavam-se como duas tiras de um origami em busca de uma forma de quatro braços e depois, lentamente, fui desfolhando cada folho do seu kimono revelando o seu colo de neve como se eu chegasse a um país longínquo guiado por dois botões de cerejeira em flor para os quais eu estendia as minhas mãos ávidas e os meus lábios famintos. Senti-me florescer, enroscar-me nos seus ramos, procurar as suas extremidades floridas acabando por derramar quatro pétalas brancas à entrada do seu tesouro mais escondido, finalmente descoberto, desvendado, logo depois franqueado, rebuscado e ternamente saqueado! À pulsão do meu ardor seguiu-se o tumulto dos seus sentimentos e pressenti a onda de dor e de prazer que lhe subia como um terramoto até aos olhos pequeninos que se contraíram ainda mais, franzindo as suas lindas sobrancelhas que quase se juntaram amedrontadas, até que, pouco a pouco, se foram distendendo e afastando, os olhos se abrindo de espanto e eu vi então dois lagos de ternura a transbordar sulcando e desfigurando a pintura branca que lhe escondia as verdadeiras feições. Sumimasen, balbuciou... - Mayumi? - Gosta de mim assim? - Domo, domo! Ai Shiteru sakura... - Goshigonsama deshita! Murmurou com o seu sorriso incompleto e uma ponta de malícia no duplo sentido daquelas palavras. O Monte Fugy apagara-se na noite, não havia estrelas mas por todo o lado estávamos cobertos de flores de cerejeira que cintilavam à luz do candeeiro que

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62 bamboleava no varandim como uma bandeira na proa de um navio que me levava sem regresso para um novo mundo! Tokyo, 1 de Abril de 2025

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63 O HOMEM QUE GOSTAVA DE DANÇAR SINGAPURA não era ainda a cidade que mais de três décadas de exuberante progresso iria catapultar para as alturas, quando ali desembarquei numa breve paragem a pretexto de encontrar-me com o meu amigo Jack, antigo companheiro de trabalho que já não via há largos anos. Jack foi, por assim dizer o meu instrutor de voo, o colega mais velho que me colocou sobre os ombros as asas da sua experiência que me levariam a voar sozinho num mundo de negócios em que o conhecimento era, como ele constantemente me repetia, a palavra chave para todo e qualquer sucesso. Reportar, informar, transmitir eram, depois, as palavras de ordem, instrumentais para que o conhecimento nunca baixasse de intensidade e fluísse inexoravelmente, como as águas de um rio para o mar. Mesmo depois de se reformar, Jack manteve o hábito de reportar, enviar lá de onde ele andasse por esse mundo fora, os mais ínfimos detalhes de todas as suas experiências de vida, com uma tal naturalidade que, apesar dos anos transcorridos, era como se ele tivesse continuado ali, ao meu lado, no seu antigo gabinete de trabalho. É claro que agora, passados tantos anos, já não eram relatórios semanais mas antes uma espécie de prestação de contas de um exercício anual, dando conta do modelo de carro que comprara realizando um sonho antigo ou a jardinagem e as pragas de insectos e ratazanas que conspiravamcomprometer a saúde da sua horta e das suas plantas de adorno, como as mais belas orquídeas que descrevia nas suas inigualáveis cores e nuances e às quais devotava um verdadeiro amor paternal, tratando e cuidando delas como se fossem as filhas que nunca teve. E claro, Annie, a mulher chinesa que escapando às perseguições políticas na China, senhora de primorosa educação, ele conhecera já na sua meia idade e por quem, mais do que amor, sentia uma ternura imensa e um carinho inabalável. Jack reformara-se, mas como é costume dizer-se, o coração nunca se reforma porque parar é morrer.

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64 Eu apercebia-me, de ano para ano, que Jack dedicava mais de metade das suas longas cartas a explicar o seu bom estado de saúde, como ainda se sentia em plena forma para trabalhar, deixando vir à tona algum ressentimento ou amargura por se sentir obrigado a lutar contra pragas e ratazanas quando ainda sentia forças para viajar pelo mundo dos negócios como fizera toda a sua vida. A outra metade da carta era dedicada a Annie cuja evolutiva debilidade feminina parecia estar na proporção contrária do seu ainda manifesto vigor masculino. Na verdade, à distância, eu não acreditava no aparente declínio dessa mulher que eu bem conhecera e sempre vira como um pequeno vime, cujo aspecto frágil contrastava com a sua vigorosa personalidade, uma daquelas mulheres que podiam vergar mas nunca quebravam. Eu próprio fui muitas vezes testemunha de como Jack tinha de aliar às suas qualidades de solicitude e delicadeza para com ela, as de uma infinita paciência pois não era fácil o seu amor à distância, quando ainda não havia sequer a comunicação visual à distância e a sua voz irada e impertinente chegava aos seus ouvidos pelos fios do velho telefone, incapaz de sofrer de outro modo as ausências a que a vida profissional do marido frequentemente a obrigava a suportar. Jack ouvia, os seus olhos pequeninos e claros brilhavam comovidos, suspensos de um permanente sorriso, repetindo como um boneco de corda, ao longo de minutos incontáveis: Calm down, my dear, calm down… A reforma de Jack, de certo modo apaziguara Annie quanto às constantes divergências de longitude, mas a precaridade da saúde da mulher, de tal modo passou a monopolizar a atenção do meu querido amigo que as suas sempre esperadas cartas pelo fim do ano cada vez mais relegavam as suas formosas orquídeas para plano secundário quando as não omitia completamente, o que me deixava com um mau pressentimento sobre o desfecho da sua história. Foi, pois, com surpresa que quando lhe anunciei a minha visita o ouvi excitado e alegre, como um garoto a quem dessem um presente,. Vinha na melhor altura, disse-me, e eu logo quiz saber se era o tempo das orquídeas em flor, mas quais orquídeas, my friend… this is Singapore at its best… you will see!!! Jack conhecendo bem a minha inclinação para escrever pequenas histórias logo me sugeriu o Raffles Hotel como local da minha breve estadia,

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65 onde eu poderia respirar o mesmo ambiente e beber da mesma inspiração que Somerset Maugham e Ernest Hemingway, apenas para citar os seus dois mais famosos hóspedes literários que precisamente se tornaram conhecidos como autores de short stories, algumas das quais teriam sido escritas ali, saboreando naquele recanto exótico a célebre mistura de gin, cointrau, angostura, sumo de lima, gelo picado, acrescida de uma finíssima fatia de ananás e uma cereja marasquina a que se juntavam algumas lágrimas de grenadine para darem ao cocktail a coloração sanguínea que o tornava tão misterioso como esse longínquo oriente. Uma invenção do barman do Long Bar do Hotel ao acercar dos anos vinte do século vinte… Njiam Tong Boon teria acertado no vinte dos cocktails, juntando ao gin o amargo e o doce, ligados pelo sumo de lima, o fogo do álcool e a anestesia do gelo, tudo sob o véu vermelho da romã. No páteo relvado das palmeiras, nas traseiras do Hotel, recostados nuns cadeirões de palhinha já um pouco estafada mas bem aconchegados numas almofadas coloridas que convidavam ao esquecimento de todo o stress acumulado no vaivem dos negócios, vimos emergir do bar do jardim o empregado uniformizado de branco ostentando uma distinta faixa violácea a condizer com o turbante, trazer-nos numa bandeja de prata os dois long drinks cor de rosa com o seu pedaço de ananás no topo como uma exótica bandeira. Jack, os olhos a brilhar, gozava antecipadamente a minha surpresa e o sucessivo esperado prazer ao sorver o primeiro trago do copo gelado a embaciar-se ao calor do jardim tropical. - Is this not fabulous? - Fabuloso, Jack, é a palavra certa… tudo isto é como viver dentro de uma fábula… sentir o que tanto se desejou de longe… nem acredito que estou aqui, no extremo-oriente, contigo! - Comigo e com Somerset, Coward…talvez Hemingway… a repetir os mesmos gestos… espero que uses a secretária do teu quarto ali em cima para escreveres uma história… - A história deste cocktail? Seria uma bela história, a do jovem emigrante chinês que trocou a sua ilha distante de Ainão por esta quase ilha a leste de Xangai, onde se vieram misturar freneticamente gentes de todos os

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66 continentes, que se apresentam como escritores, advogados, homens de negócios mas que na verdade se espionavam e confidenciavam segredos ao balcão do Long Bar, bebendo como esponjas e espalhando sem cerimónias cascas de amendoim pela rica madeira de teka do soalho… - Viste a fotografia dele, impecavelmente vestido à ocidental junto ao cofre onde guardava o segredo do seu cocktail, o Singapore Sling? - Uma lenda, Jack… cocktails misturando sumo de fruta com álcool existiam muito antes de Ngiam… mas o marketing do Hotel aproveitou tudo o que podia para o transformar no icon de Singapura… até os japoneses quando a ocuparam lhe mudaram o nome para “a Luz do Sul”… quando chegaram ao Hotel e as suas botas subiram cadenciadas e firmes pela magestosa escadaria de mármore que conduzia ao salão, estacaram, maravilhados ao contemplarem os hóspedes ainda ignorantes da invasão, a dançar uma última valsa… imagino os generais nipónicos a experimentarem os bilhares do Raffles, a fumarem a sua aromática mistura de tabaco e a tentarem descobrir já entre gargalhadas, os ingredientes do seu famoso sling… - Durou pouco o interlúdio japonês no Raffles, o hotel deixou depressa de ser um quartel general para ser um campo de trânsito de prisioneisos de guerra… este Raffles tem história e é por isso que estamos aqui… O jovem barman voltou a sorrir com mais dois copos gelados, desta vez de gin fizz, com a sua cercadura esbranquiçada de açucar e as rodelas de lima a dar um reflexo verde na bebida tranparente… os preferidos de Somerset, contava Jack que parecia ter residido ali desde a fundação do Hotel… - Ele não apreciava aqueles cocktails cor de rosa… dizia que eram para senhoras fingirem que estavam a beber um refresco… que os homens galantemente acompanhavam e pediam mais, na certeza de que aquela doce e gelada anestesia as deixaria incapazes de resistir, às vistas do mar ali tão perto das janelas de jelosias que ornavam a fachada do Raffles, quando subissem à suite… - E tinha razão, Jack, este gin sem misturas é muito melhor para quem tem sede… e não fome de romance…

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67 - Ah… romance!… mas, olha, Singapura tem todos os ingredientes para histórias de amor… tão diversas e tão extraordinárias como é certo não haver duas receitas iguais de cocktails… O tempo foi-se escoando na proporção dos copos que iam sendo sucessivamente servidos, o sol a declinar, as palmeiras pareciam murmurar com a aragem vinda do mar, atravessando a Beach road… algumas das gelosias foram-se abrindo para deixar entrar a luz e o fresco do entardecer… e eu ouvia Jack contar a sua história como se eu estivesse a sonhar acordado… mas tão real que era como se eu a tivesse igualmente vivido, invisível, mas ao seu lado. Jack arranjara um emprego em part time num jornal da cidade, numa das ruas mais movimentadas da baixa. O trabalho era um pretexto para o fazer sair de casa e deixar para traz a horta, as couves roídas pelas pragas e cansado de uma guerra declarada à base de insecticidas… essa rotina tinha-se tornado insuportável… e o lenitivo e encanto das suas orquídeas não era mais sustentável. Annie arreliava-o e a sua paciência já não era o que tinha sido antes… o jornal punha-o em contacto com o mundo e Jack precisava de navegar por entre os rios de gente que fervilhavam em China Town, nas imediações do porto onde a cidade despontara nos tempos de Stamford Raffles. Homem de hábitos, Jack deixava o trabalho e seguia pela Amoy Street, cujo nome ecoa uma das pronúncias de Xiamen, uma localidade chinesa de onde tinha provindo a maior parte dos habitantes que povoaram aquela área da cidade nascente. As suas casas baixas, a contrastar com os arranha céus que espreitavam ao fundo da rua, eram quase todas dotadas de colunatas sustentando os andares superiores avançados em relação ao piso térreo, onde se situavam as lojas permitindo a passagem abrigada dos transeuntes sempre atarefados, entrando e saindo nas suas compras para todos os gostos e necessidades. Esta tinha sido, num passado não muito distante, a rua mais conhecida pelas suas espeluncas cavernosas e sombrias albergando os fumadores de ópio que, com a chegada dos tempos modernos, foram cedendo o lugar a armazens, estabelecimentos comerciais e inúmeros bares e restaurantes. A certo ponto da rua Jack atravessava-a com mil cuidados para não ser surpeendido por alguma das muitas viaturas que circulavam e metia por uma

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68 rua estreita que se seguia a outra até entrar na Club Street. Era o coração da baixa, onde a cidade dera os seus primeiros passos, trazendo consigo gente de muitas origens com as suas crenças que se foram assinalando por vários templos que ali à volta se encontram desde templos budistas, hindús e mesquitas… que ainda hoje atestam não somente a origem dos homens mas também o seu destino… Jack não era religioso mas não era raro subir a escadaria de um templo e dar-se ao trabalho de descalçar os sapatos à entrada, para simplesmente meditar ou se deixar inebriar por instantes com o ar perfumado de incenso e de outras palhinhas aromáticas que constantemente ardem nesses locais de culto. Um dia ajudou uma jovem chinesa que desajeitadamente não conseguia acender uma palhinha de sândalo diante duma divindade feminina com a qual Jack não estava familiarizado. A jovem agradeceu com um sorriso, Jack inclinou acabeça respeitosamente, mais parecia que fazia uma vénia à divindade que se impunha benevolente do alto… e ficou a segui-la com o olhar dando-se estranhamente conta como ela o fazia recordar a sua fogosa Annie quando ele a conheceu, vinte anos atrás. Seguiu de longe a sua silhueta fina quase diluída no formigueiro humano até desembocar na Club Street. Depois perdeu-a de vista porque ele certamente não se evaporara mas desaparecera num das muitas possíveis entradas. Jack perplexo, levantou com um gesto a aba do seu panamá, procurando descortinar por onde se esvaira aquela figura evanescente como uma palhinha fumegante que se tivesse consumido no altar do templo daquela divindade eternamente sorridente, de olhos cerrados mas como se visse e pressentisse tudo… Uma outra jovem que igualmente lhe pareceu quase igual à sua perseguida passou por ele e entrou decidida num portal onde se lia uma inscrição em caracteres chineses para ele indecifráveis. Jack hesitou mas quando um outro grupo de jovens conversando e rindo enfiaram pelo mesmo umbral, resolveu segui-las. A escadaria diante dele era penumbrosa e misteriosa pois só dava para ver o primeiro lance, virando para a esquerda por onde seguia até ao andar superior e de onde provinha uma iluminação convidativa e uma vaga reverberação musical. Jack nem se perguntara aonde o levaria a sua curiosidade

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69 pois só vira as jovens a entrar e nenhum homem… mas no piso superior deu de frente com um chinês todo aperaltado, que o fez lembrar Njian Tong Boon , o barman do Raffles Hotel, tal como sempre o vira retratado por cima do balcão do Long Bar… Retribuiu a vénia daquele mordomo inesperado e passou para a sua mão estendida o chapéu enquanto o seu olhar maravilhado se espalhava pelo enorme salão cuja única decoração eram numerosas lanternas suspensas do tecto, globos de papel colorido como balões vogando num céu sereno… Ao fundo, um balcão de onde sobressaía o rosto e o busto de uma mulher mais velha que as jovens que surpreendera entrando e das quais não via nem sinal. A velha chinesa dirigiu-lhe um sorriso e foi abrindo uma caixa de forro de veludo azul, onde estavam depositadas várias fichas metálicas que à primeira vista lhe pareceu uma colecção de grandes botões. Por um segundo a dúvida atravessou-lhe o espírito: estaria numa daquelas misteriosas casas de jogo onde rapidamente perderia o seu tempo e dinheiro? Não via as mesas e cadeiras, os croupiers e as suas ajudantes mas todo esse cenário de perdição só poderia estar para lá das portas que divisou ao longo daquele salão que parecia ter surgido da sua pura imaginação. A mulher olhando curiosa com um gesto de cabeça interrompeu-lhe a divagação… - English? Jack ficou a saber que não estava à beira de nenhum abismo, à entrada de mais um antro de que ouvira falar existirem em China Town… mas de um salão de dança em que podia escolher a música e um par bastando-lhe pegar numa das fichas que consoante o tamanho e a cor lhe davam preferências por uma mulher conforme a estatura e a agilidade, para além de outros atributos que lhe foram sendo explicados… o seu par viria por uma daquelas portas com a música seleccionada… tudo muito simples… no contexto oriental a que Jack há muito se habituara. Procurou mentalmente acertar na jovem a quem acendera a palhinha no templo de Mariamman… aguardou por uns minutos… a música ambiente mudou pela mão de um disco jockey imperceptível e uma das portas se abriu deixando recortada contra a luz a figura esbelta de uma jovem cingida num daqueles vestidos acetinados que se moldavam ao corpo como uma segunda pele… com um meneio de acompanhamento musical e estendendo as mãos para

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70 Jack aguardando que este emparelhasse o que sucedeu automaticamente. Jack sempre gostara muito de dançar, como eu me lembrava muito bem das nossas festas já perdidas no tempo… dançava é claro à moda antiga, muito direito com o braço esquerdo circunflexo segurando bem alto a mão do seu par enquanto a mão direita lhe cercava a cintura gently but firmly… a sua máxima para todo e qualquer relacionamento pessoal, tal como lhe ouvi vezes sem conta… Guiar uma mulher na dança é uma coisa que exige as duas mãos… se uma se distrair ela vai para um lado e ele para o outro… é como conduzir um carro que à menor distracção pode derrapar… um automóvel, porém, por muito potente que seja, é dócil e só corresponde aos nossos desejos… acelera se pisarmos o pedal… dá todas as voltas que quisermos bastando girar o volante… já na dança o veículo que abraçamos tem vontade própria e a sua própria interpretação do ritmo e da melodia… é mais como velejar, uma mão a segurar a vela e a outra o leme… usando o vento que não dominamos para nosso proveito e ajustando constantemente o rumo para manter a harmonia na viagem… Isto é o elementar… os braços e as mãos que enlaçam o par, o estreitam, o envolvem… mas, é claro que os pés que mal se notam é o que faz tudo acontecer… rodar, girar, rodopiar, ao prazer da música como quem corre levado pelo vento. Jack sempre tão criterioso com o seu trabalho, não o era menos quando se entregava enlevado nas voltinhas que dava no imenso salão, absolutamento o oposto do que sucede nas modernas discotecas em que as pessoas dançam apinhadas e embricadas umas nas outras quase na escuridão apenas cortada pelos feixos luminosos que varrem o turbilhão humano revelando apenas dentes e olhos irreconheciveis, brilhando fugazmente como pirilampos de um outro mundo. Ali tudo era diferente, o salão além de amplo era arejado, a brisa que entrava pelas grandes janelas faziam balançar os balões iluminados suspenso do tecto como se também eles acompanhassem as valsas, os tangos, os fox strots e os slows que sempre acabavam por ser escolhidos pelos clientes daquele singular estabelecimento de sonhos e que iam chegando em maior número ao cair da tarde… e ao longo da noite, o salão solitário de Jack convertido em dançódromo até madrugada….

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71 Jack descobrira o que lhe faltava… para fazer o que mais gostava, já não precisava de aguardar os convites cada vez mais raros para alguma ocasião festiva em que os convivas aproveitavam para dar largas às suas habilidades dançarinas. Bastava-lhe rumar à Clube street e entrar no salão cujo letreiro encimando a portaria passou a saber de cor: “Salão de Baile o Mandarim… onde sempre encontra quem mais deseja”. Passou a frequentador assíduo e sem cerimónias pagava logo à entrada por diversas fichas que metia no bolso e ia utilizando até se fartar de girar com os olhos a brilhar por detrás das lentes grossas, fitos no tecto como se sonhasse estar no céu a girar entre balões coloridos. Eu acho que ele nem via os balões no seu êstase e embevecimento… viajava pelo salão como se viajasse no tempo, revivendo momentos de paixão que já nem recordava com quem… certamente Annie, o seu último amor. Recordava-se muitas vezes de Annie e essa lembrança sempre o fazia sorrir e o seu olhar bom e terno embaciava-se por trás dos óculos… Annie gostava de pensar, por sua vez, que ela era a última mulher na longa carreira de homem apaixonado de Jack. Passou a ter a certeza disso quando ele finalmente se reformou e ambos decidiram voltar para tão perto quanto possível das origens dela. Singapura era então uma espécie de fantástica Shangri-la, maioritariamente povoada de chineses vindos de todas as regiões da China. No entanto, recentemente notou com crescente impaciência as frequentes evasões do marido. Embora sob o álibi perfeito de um trabalho a tempo parcial que lhe podia restituir um sentido de prorrogação de validade, Annie começou a notar com desconfiança e alguma contrariedade infantil que Jack estava não apenas mais descontraído como o achava tão feliz no seu regresso a casa. Deu para cheirar a roupa do marido… e uma pontasinha de ciúme foi-se insinuando a pouco e pouco. Um dia deu consigo a revistar os bolsos do marido dando estupefacta com uma ficha no fundo de um deles. Não interrompi a narrativa de Jack, ali sentados a bebericar mais um gin com muito gelo e sumo de lima para cortar um pouco o álcool que já tínhamos bebido… pelo menos foi esse o conselho do barman que nos confidenciou que por dia o Raffles servia a enormidade de mais de dois mil slings… o número é

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72 atordoante como atordoado fiquei com o epílogo da incrível história que tanto empolgava o meu amigo. Jack voltava das suas andanças depois de deixar o jornal… automaticamente ia percorrer as ruas apinhadas para uma passagem pela Temple Street… alegre como um bem-aventurado e sentindo-se até um pouco budista… achou que devia ir acender uma varinha de incenso à divindade feminina que lhe abrira as portas do céu de balões vermelhos do salão doirado da Clube Street. Saiu do templo renovado e sorriu olhando para os sapatos muito estafados que o esperavam à porta… pensando naturalmente que dali a pouco era a vez deles entrarem em acção riscando o soalho de madeira envernizada do Salão Mandarim… Estava com pressa de dançar… como ele adorava dançar… era a sua outra forma de amar, um êxtase que ultrapassava o da oração porque a própria divindade descia do seu pedestal para o enlaçar e girar como se voassem no salão, se flutuassem no espaço subindo ao céu no meio de balões iluminados. Meteu a mão ao bolso sentiu a ficha solitária que lhe restava no fundo. Nem a olhou entregando-a pressurosa nas mãos da gerente que lhe devolveu um sorriso enigmático a que Jack não ligou nenhuma… A música mudou… aquela música de repente trouxe-lhe à memória uma felicidade adormecida… as suas feições esboçaram aquele seu sorriso incansável que traía sempre uma certa timidez e embaraço ao ver a bela mulher recortada no umbral da porta que se abrira devagar… Jack teve então a súbita ilusão… (aquela música poderia explicá-la)… de que era Annie ali, de braços abertos à sua espera… mas não, não era ilusão…

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73 COMO LUZES E SOMBRAS... A caminho de Bracara Augusta, ao encontro do professor Manuel Montenegro, não podia tirar do pensamento o outro percurso efectuado há mais de cinquenta anos entre o Lobito e Benguela já ao cair da noite com o meu amigo e antigo professor a conduzir um velho carocha e as duas meninas, a Rosarinho e a Mané no banco de trás portando-se muito bem para eu ver... O cheiro do melaço do açúcar da Cassequel enchia o ar do seu perfume adocicado, quase intoxicante como a presença de uma mulher super perfumada... Voltamos todos a encontrarmo-nos, mais assiduamente graças ao facebook... depois de tantos anos em que apenas me lembro de uma única rápida visita a Braga onde o meu velho professor se refugiou quando deixou Angola depois de ter servido nos liceus de Salvador Correia e de Benguela durante duas décadas. A distância não impediu que eu mantivesse no meu escritório até hoje uma pintura a óleo e uma gravura de Luanda a tinta da china da sua autoria. A pintura tornou-se a sua obsessão depois da reforma... a necessidade de continuar activo e de seduzir com os seus traços claros e escuros num emaranhado de luzes e sombras que só ele parecia entender... A visão cada vez mais periclitante obrigou-o a uma intervenção às cataratas e a Rosarinho tinha-me dado notícia de que estava muito receosa pelo seu coração, tendo de enfrentar uma anestesia... Alguém me disse que tinha deixado crescer o cabelo e as barbas brancas como a neve e eu estava, por todas essas razões, com o meu coração apertado naquela tarde a caminho de Braga, onde apesar do Verão já bem entrado estava a cair uma chuva miudinha e fria que tornava viscosos os caminhos. Depois do check-in no Hotel, fiz uma chamada para ele que logo me respondeu com alvoroçadas boas-vindas e que me aguardava à porta de casa. Para não me perder no caminho e não perder tempo chamei um táxi enquanto recordava que também da única vez que o visitara não subi ao andar onde morava... tendo vindo ao meu encontro para uma breve saudação. Já não me recordo do que dissemos, mas certamente muito menos do que não dissemos. A Maria José, o grande amor da sua vida estava a enfrentar os primeiros alarmantes sinais de uma doença que a transformaria, a pouco e pouco, apenas numa recordação do que ela fora...

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74 Não me lembro, também, se ela ia no carrinho que me levou de Benguela ao Lobito naquele fim de tarde. Tenho apenas na memória como se fosse ontem, o perfume do açúcar que me inebriava e as duas garotinhas no banco de trás que me encantavam e me obrigavam a seguir voltado para trás... de certeza a Maria José que me servira um lanche em Benguela ficara nas lides da casa enquanto o marido me levava de volta ao Lobito escoltado pelas duas filhas. Manuel Montenegro chegou a Luanda nos anos cinquenta, para ser professor do liceu e por via de amizades cruzadas foi em casa dos meus pais que eu o conheci. Quis ver os meus livros de estudo e os meus cadernos. Notei o seu sorriso embaraçado ao ver os cadernos e os livros com desenhos e caricaturas que eu esboçava maquinalmente nas margens e que podiam ser rostos imaginários que eu repetia inconscientemente. Apercebi-me que não era um grande sinal de apresentação... revelador de uma mente em constante divagação, pouco propensa à concentração exigida a um bom aluno. Curiosamente a lembrança mais antiga que dele guardo depois disso não foi de nenhuma das suas aulas mas dum recital no estúdio do então Cinema Restauração, onde tinham lugar alguns dos mais selectos espectáculos da época na cidade de Luanda. O Dr. Montenegro, muito jovem ainda, solteiro e de olhar romântico, parecendo ainda mais magro no seu fato de cerimónia preto, cantou para delícia da audiência na qual eu me contava de ouvidos e olhos espantados, uma das mais célebres árias da ópera D. Giovani de Mozart. Cantada em italiano eu não entendia nada a não ser uma espécie de recitação de números que ele terminava enfaticamente juntando o gesto às palavras pronunciando um perceptível mille e tre... Quando o táxi me deixou, já ao lusco fusco diante do prédio onde morava pude divisar logo a figura não do velhote alquebrado que eu temia encontrar mas de um desenvolto ancião de barbas brancas bem aparadas que me acenava do alto da escada que dava para a rua. - Bem vindo, bem vindo, estava ansioso por ver-te... aonde vamos? A minha casa continua uma desarrumação... - Casa de artista é assim mesmo... mas a esta hora, vamos é jantar... a Mané não vem connosco?

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75 Tive de insistir e gritar pelo intercomunicador à entrada para ela me ouvir... que queria muito vê-la... que viesse jantar connosco, no restaurante mesmo em frente que o taxista vivamente me recomendara... conversaríamos... depois de tanto tempo... seria também bom para ela... Apenas a Mané vivia com o pai... a Maria José estava numa casa ali perto com todos os cuidados que requeria... quase que nunca se lembrava de nada... Veio a Mané e o meu velho amigo e foi um jantar mágico, porque ao longo do tempo em que recordávamos um pouco de tudo, cinquenta anos de vida foram se aproximando e separando como o fole de um acordeão e eu via o brilho festivo reflectido nos olhos aquosos do meu amigo, feliz com tanta saudade. Lembrei-lhe o seu recital em Luanda... o célebre mille e tre... o que o empolgou ainda mais... - Ah, a ária do Leporello, o criado de D. Juan... como é que te lembras? - Como podia esquecer? Foi a primeira vez na minha vida que ouvi uma peça de ópera... - O D. Juan e o criado estavam na rua e aparece-lhes Elvira a cantar uma canção sobre o amante que a abandonou... D. Juan, comovido, apresta-se a consola-la mas chegando perto dela descobre que é Dona Elvira de Burgos de quem ele próprio fugira... logo escapa e deixa ao pobre Leporello o encargo de lhe fazer o relato das suas muitas aventuras para que ela não se entristeça tanto.... “Madamina, il catalogo è questo Dele belle che amò il padron mio; Un catalogo egli è che ho fatt’io; Osservate, leggete con me: In Italia seicento e quaranta; In Almagna duecento e trentuna; Cento in Francia, in Turchia novantuna; Ma in Ispagna son glià mille e tre...” Rimos muito... a propósito da preferência por aquela ária de barítono baixo interpretada por Manuel Montenegro com acompanhamento de piano...

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76 Leporello era também um aprendiz do donjuanismo, tendo-se passado pelo patrão para entreter Dona Elvira... Manuel Montenegro quantas vezes nas tardes quentes de Luanda, me contara as suas histórias em Valência, onde frequentou a Universidade, ouvindo os seus discos preferidos e um dos meus favoritos era então a Malaguenha, a malaguenha salerosa... besar tus lábios quisera.... Manuel Montenegro, com a sua sensibilidade artística tinha esse sentido do feminino que me atraia... e suscitava verdadeira admiração... como quando o soube a vencer de motocicleta a distância entre Luanda e a Fazenda Tentativa para ver alguém que podia ser uma musa ou apenas uma visão imaginária... o certo é que conheci a Maria José, como ele sempre a chamava e chamou durante toda a vida, muito antes da sua vinda para Benguela, por tudo o que ele dela me contava... a sua paixão de sempre que resistia a todos os outros amores... mille e tre que fossem... só em Espanha... Continuamos a rir lembrando seus antigos alunos, hoje já provectas figuras em Angola... o Rui Mingas, o Luís Filipe Colaço e tantos outros que ele insiste em relembrar... Mais tristes os seus olhos quando falámos da Maria José. Sabes que eu sempre a tratei por Maria José... mas um dia ela começou a dizer e a teimar que era a Zezinha... a Zezinha Luças... então passei a chamar-lhe assim... Contou-me como todas as tardes saíam à rua iam até ao fim da rua que é longa, e voltavam... sentia-se muito cansada... Manuel Montenegro escreveu à Câmara Municipal, tinha lá um antigo aluno... a sugerir que ali pusessem bancos de jardim... para além de dar à rua um aspecto mais acolhedor seria muito útil que as pessoas pudessem descansar das suas caminhadas... o antigo aluno disse que a carta acabaria numa qualquer gaveta e sem solução... que enviasse um e-mail... ficava registado no computador... maravilhas da electrónica...e assim foi que a Câmara mandou colocar não bancos ao longo da rua... mas um único e solitário banco de jardim... mesmo em frente do prédio de velho professor. Passou a ser o banco da Zezinha... O regresso mental de Maria José a Zezinha Luças deu um clique no velho professor e agora também incansável pintor... a partir de um velho postal reconstituiu a casa de dois pisos que foi a mansão da família Luças em

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77 Matosinhos. Com a ajuda de um colega especializado em azulejaria conseguiu colocar no seu hall da entrada um painel em azulejo representando aquela bela moradia. Maria José sempre que entrava e saia para os seus passeios à tarde ficava por momentos a olhar para a casa... atentamente... como se a recordasse perfeitamente... estendendo a mão e o dedo para uma janela do andar superior... e sorrindo... o seu quarto de menina... e depois o seu dedo descia até ao portão da casa no extremo oposto da casa... e vinha ao seu olhar um sorriso quase malicioso enquanto se voltava para o marido que a amparava sempre com toda a ternura e cuidado... o portão onde começaram a namorar... com autorização paterna... Eram momentos de sintonização com a vida que a todos alegravam... não havia esperanças de melhoras mas aqueles breves instantes voltavam a sentir o que sempre os unira... até de Benguela uma vez se lembrou... Benguela que por qualquer razão real ou imaginária foi durante muito tempo uma palavra proibida... Depois do jantar fui finalmente convidado a subir lá a casa... queria mostrar-me o azulejo... como eu esperava livros e quadros amontoavam-se pela sala onde apenas o piano, com uma partitura exposta era uma promessa de harmonia e distensão. Ofereceu-me um pequeno quadro representando o obelisco levantado na Avenida Central mesmo diante do meu hotel... e uma peça de artesanato senegalesa... um presépio numa só peça que pela sua raridade e beleza não queria aceitar. A Mané convenceu-me pela sinceridade única da sua argumentação. Vá lá.. . para se lembrar de nós.... Manuel Montenegro continuou a visitar diariamente a sua Zezinha... já pouco lhe podia dizer ou falar... mas ainda lhe podia cantar baixinho: “Delle vecchie fa conquista Pel piacer di porle in lista; Sua passion predominante È la giovin principiante. Non si picca - se sia ricca, Se sia brutta, se sia bella; Purché porti la gonnella, Voi sapete quel che fa.”

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78 RECADO DE SANTA EFIGÉNIA UM CONTO DE NATAL Mateus Dala dava voltas à cabeça para resolver o seu mais urgente problema: como pôr na mesa de Natal alguma coisa que fosse diferente do pão duro de todos os dias, como diferentes eram as luzes enfeitando os edifícios públicos e os grandes estabelecimentos da cidade. Estudara, trabalhara e apaixonara-se por Clarinda, sem tomar precauções e agora os dois filhos pequeninos eram a sua responsabilidade, o seu fardo, a sua cruz como lhe recordava o pároco da Mamã Nazaré quando partilhava com ele depois da missa de domingo as suas crescentes preocupações. - Então Dala, como vão as coisas? - Não tão bem... não tão bem... - Conta-me lá... quem sabe eu posso ajudar... - Só se as suas orações fizerem um milagre, o que eu preciso, senhor padre, é de algum dinheiro mas para isso tenho de arranjar trabalho... estou mesmo desesperado... O prior ficou a ver a figura magra e esguia de Mateus afastar-se, os ombros curvados para dentro pelo desalento... deixara-o partir sem uma palavra de encorajamento... - Ei Dala! Dala! Volta aqui.... - Diga senhor padre... - Olha...Dala, ainda não contei o dinheiro da colecta... hoje a missa tinha muitos fieis... viste como a Igreja estava cheia? Quando se aproxima o Natal as pessoas tornam-se mais religiosas e um pouco mais generosas... abrem mais os cordões à bolsa... ajuda-me a contar... talvez te possa ajudar... Dala acompanhou o pároco como um autómato até à sacristia... em cima da mesa alguns sacos de veludo vermelho estavam amontoados diante do livro do registo das esmolas já aberto, sob o olhar vigilante das duas mamãs envoltas nos seus panos estampados com as imagens de Bento XVI, uma homenagem

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79 respeitosa à visita do Papa, já lá vão uns anos... nem é ele quem agora manda no Vaticano mas a recordação carrega em si a gratidão por aquele homem alquebrado, representante de Deus na terra que não excluiu Angola dos seus domínios espirituais. - Obrigado mamãs... estão dispensadas... hoje tenho um ajudante para contar o ofertório... O prior fez um meio sorriso que mais parecia uma careta quando as duas dedicadas auxiliares deram meia volta depois de se despedirem com uma vénia, apesar da sua evidente insatisfação por não serem as primeiras a saber o valor entrado no cofre da paróquia... um cofre sempre magro mas que era o sustento do culto do único santuário de Luanda. - Senta aí Dala... queres uma limonada? - Não muito obrigado senhor padre... - Nem uma Savanna? Olha, eu vou beber uma... estou cá com uma sede... tive de falar muito hoje... - Uma Savanna pode ser... afinal também preciso... está muito calor e vamos ter de trabalhar um bocado... - Ah, Ah... afinal vieste à Igreja e sempre arranjaste trabalho... - Deve ter sido a Santa Efigénia... fiquei mesmo do seu lado e rezei muito... muito mesmo... O pároco voltou com duas Savannas geladinhas... que colocou sobre o tampo da mesa. Arrastou a sua cadeira de braços para junto da mesa, passou um olhar avaliador sobre as bolsas das esmolas, apanhou o abre latas e removeu as tampinhas que emitiram um suave suspiro, quase nenhum o excesso de gás... o pároco que já se tinha libertado da batina e estava em camisa mostrando os suspensórios vermelhos cardinalíceos de que nunca prescindia, passou uma das garrafas ao Dala e segurando a sua deu na outra um toque à laia de brinde, fazendo tilintar os vidros... - Feliz Natal Dala... - Obrigado senhor padre... vai ser um Natal pobre, mas com a sua ajuda... acredito que vai ser feliz... - Com a ajuda de Deus, Dala, com a ajuda de Deus... eu pouco posso fazer...

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80 Mateus estava ansioso por começar a trabalhar... contar dinheiro fora esse o trabalho do outro Mateus... o evangelista que antes de ser discípulo de Jesus era cobrador de impostos... poisou a garrafa na mesa e olhou para o prior que se regalava a regar a garganta com aquele líquido dourado... Temos tempo Dala... temos tempo... sabes que eu não gosto de contar dinheiro? Eu preciso muito, tanto quanto tu precisas... mas não gosto de contar... o dinheiro é o Diabo... Jesus disse que não se podia servir a dois senhores... a Deus e ao Dinheiro... ele não disse Diabo... ou Demónio... disse mesmo Dinheiro! - E o meu xará... Mateus, era contador de dinheiro... e mesmo assim Jesus o escolheu... precisava de um tesoureiro... - Nada, Dala... o tesoureiro era o Iscariotes... o Judas que o entregou nas mãos dos seus inimigos, por trinta dinheiros... o demónio atrai o demónio... - Mas era preciso um tesoureiro... alguém tinha de pagar as despesas, alojamento, comida... a maior parte das vezes, porque quando era mesmo preciso Jesus fazia um milagre da multiplicação... o senhor padre falou hoje isso na homilia... - As coisas não são nunca o que nós pensamos ou julgamos... Ele fez muitos milagres... mas não se vivia naquele tempo em estado de milagre permanente, uma situação que tornasse inútil o trabalho... Ele até discutiu com os fariseus por causa de fazer curas no sábado... era medicina, ainda que divina, trabalho portanto... - Trabalho de Deus... um mistério... eu também queria trabalhar para Ele... mas o Natal está à porta e eu estou mal... sem um kwanza para comprar nem uns bagos de arroz para um jantar melhorado, para a mulher e para os filhos... - Olha, meu filho, eu vou buscar mais uma Savanna... podes começar a contar... um saco de cada vez... separas as notas de 100, 200, 500 e 1000, se houver de 2000 será muito bom... um montinho para cada uma... depois é mais fácil de somar... Mateus deu mais um golo para ganhar coragem e começou a sua tarefa... de lidar com o Diabo...

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81 Quando o prior regressou, algum tempo mais tarde, pois fora retido por algumas santas mulheres que lhe queriam desejar as Boas Festas e recomendar algumas intenções, a primeira coisa que pensou foi que tivesse bebido de mais... as pilhas de notas subiam às alturas e Mateus Dala continuava a retirar dinheiro dos sacos de veludo como se estes não tivessem fundo. - Mas, o que é se passa aqui? De onde veio todo este dinheiro? - O senhor padre disse que era o Diabo... agora eu não sei... mas hoje na pregação o senhor mesmo disse que Jesus multiplicou uns pedaços de pão e alguns peixes e que isso deu para alimentar uma multidão... eu nunca percebi... nem vou perceber... o senhor padre disse que era uma antecipação da sagrada comunhão, a distribuição do corpo de Deus por todos os homens do mundo... - Mas isso foi lá na terra santa... nós estamos em Luanda... Dala... eu não estou a compreender...isto... - Senhor padre, então o Papa não veio aqui na nossa terra, duas vezes já... então isto também é terra santa... e temos a nossa Santa Efigénia... eu rezei muito senhor padre... - Cala-te Dala... quanto é que temos aqui? Eu nunca vi tanto dinheiro... vai fechar aquela porta... se alguém vê este monte de dinheiro ainda somos assaltados... - Fechar a porta? Talvez devêssemos fazer como Jesus lá na Palestina... distribuir pelos pobres... tem muitos aí à porta... eles sempre estão à volta da igreja... se aqui não há um coração compadecido eles não vão encontrar noutro lado mesmo... O prior ficou de repente atordoado... como se tivesse levado um murro no estômago que lhe agitou a Savanna ingerida e lhe provocasse um vómito de angústia... envergonhado, lembrou como aquele seu amigo viera ter com ele em estado de necessidade, e agora pensava primeiro naqueles que ainda estavam num patamar de miséria abaixo do dele... e por instantes, ele sacerdote, já estava a pensar entesourar aquela inesperada dádiva de Deus... mas ele era o prior da Nazaré, tinha de ser responsável... primeiro tinha que contar aquela data de massa toda... depois tomaria a decisão mais acertada... ou a mais justa...

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82 Mateus continuava a retirar as notas dos sacos de veludo encarnado, umas amarrotadas e velhinhas, outras frescas como se tivessem sido acabadas de sair dos maços de um banco. A mesa já não chegava e agora o dinheiro amontoava-se em cima do armário das toalhas e dos paramentos perante os olhos esbugalhados e incrédulos do pároco da Mamã Nazaré que, afinal, depois de tanta reza e pregação, não acreditava em milagres. Pelo contrário, não acreditava que aquilo fosse uma obra de Deus mas uma armadilha diabólica para o testar e começou a espreitar de soslaio para o Dala que, imperturbável, continuava a separar as notas em vários montinhos de 1000, 2000 e 5000 kwanzas... Estava ali uma fortuna e o que lhe veio de imediato à memória foram os vários orçamentos que estavam há meses enfiados nas gavetas, para a pintura da igreja, para a nova instalação sonora que tanta falta fazia para a sua voz se fazer ouvir até à marginal onde pelo menos nos dias de festas se acumulava a multidão dos peregrinos para dar graças à padroeira do santuário... O prior começou a procurar agitadamente nas gavetas as chaves do cofre onde dificilmente poderia atafulhar todas aquelas notas verdinhas... era preciso encontrar outras gavetas com chave de segurança... começando por esvaziar a gaveta das alfaias do culto que poderiam transitoriamente passar para outro lado... não seriam objecto de tanta cobiça como o próprio dinheiro... - Pronto, senhor padre... acabou... está aí tudo... - Mas tu não vês que isto é impossível... que tudo isto, como tu dizes, não cabe nestes sacos? - e o bom do padre sacudia as bolsas de veludo vazias que agora pareciam em cada uma das suas mãos uns trapos inúteis... - É Natal senhor padre... isto pode ser um sinal de Deus, não pode? Só para Deus nada é impossível... e não se pode servir a dois senhores... mas isso o senhor padre sabe melhor do que eu... eu vou indo... - Espera Dala... espera... tu trabalhaste duas horas... foste tu que juntaste toda esta dinheirama... agora só me resta contar... para saber quanto recolhemos... mas acho que te posso pagar... O pároco adiantou-se para um dos maços de 5000 as suas mãos pairaram sobre as notas, hesitaram e mudaram de direcção... passaram lentamente por um maço de 2000... para acabarem por poisar num maço de 1000... pegou no maço e começou a separar algumas notas que foi contando mentalmente...

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83 - Toma Dala... isto é mais do que um peditório dominical... num domingo... normal... acho que vais ter um bom Natal... - Obrigado senhor padre... foi muito bom para mim... Feliz Natal... O padre fez um gesto de despedida com a mão... ficando a ver o Mateus Dala desparecer pela porta da sacristia. Viu depois a garrafa de Savanna sobre a mesa ainda meio bebida... e com um sentimento de culpa lamentou a dureza do seu coração agora que estava rico, comparado com o espírito de partilha do pouco que tinha há bem pouco, quando era pobre... depois relanceou o olhar pelos montes de notas que tinham dramaticamente mudado o cenário da sua sempre tão modesta e despida sacristia. Como se tivesse sido atingido por um raio em plena luz do dia, deu-se conta aterrado e em pânico que estava fechado, ali, naquela salinha preambular da Igreja, sozinho, com o seu pior inimigo... só faltava mesmo fechá-lo todo nas gavetas á chave para começar a ouvir as suas gargalhadas crescentes, desconcertantes e avassaladoras... Correu para a porta e quase gritou o nome de Dala como quem clamasse por socorro. Viu o seu amigo a dar uma nota ao pobre andrajoso que ainda esperava uma esmola para suavizar um pouco a sua miséria... Naquela noite foi realmente Natal para todos os pobres da freguesia... o pároco e o seu novo ajudante visitaram todos os casebres da paróquia distribuindo esmolas e convidando todos para uma grande ceia no adro do santuário. Os acólitos, catequistas e coralistas, a Legião de Maria em peso, as senhoras da Promaica, os não casados do grupo de Santa Efigénia e os casados dos grupos da Família, do “Jesus é o Salvador”, do “Jesus é o caminho” e do “Quero caminhar contigo”, todos foram convocados de urgência e mobilizados para a compra de géneros e para os servir... a instalação sonora não seria a ideal... mas ia ser suficientemente boa para dar música e alegrar os corações... vai ser um verdadeiro banquete de Natal! - Mas quem é que paga este... este... banquete? - A Mamã Nazaré, quem mais havia de ser? Um pedido de Santa Efigénia... como ia recusar?

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84 O NATAL DE SANTO ONOFRE Aproximava-se o Natal e uma meia dúzia de cenobitas azafamava-se em tarefas de limpeza da capela, do átrio e do pátio do pequeno monastério às portas do árido deserto, preparando a festa do nascimento de Nosso Senhor... e as boas- vindas a Pafúncio, prelado da cidade de Tebas cuja visita era aguardada a todo o instante. Der-el Nefer, levantado com tijolos de barro amassado com palha, cobria-se de uma argamassa que lhe alisava os contornos como se de uma pele morena se tratasse. Avistado de longe, parecia diluir-se como uma miragem na paisagem arenosa. Era, todavia, uma construção de planta quadrangular com duas pequenas colunas na fachada que assinalavam a entrada para a capela sempre aberta à oração dos viajantes que percorriam o deserto. Frestas talhadas no alto facilitavam a circulação do ar e diminuíam a escuridão no interior. Quando o sol declinava, penetravam por aquelas aberturas espadas de luz cortando fatias de penumbra e deixando a poeira em suspensão fulgir como o ouro. Uma porta lateral abria-se a um pequeno átrio de onde, por meio de uma escadaria, se acedia aos dormitórios. Estes dispunham-se ao longo de um corredor com uma balaustrada virada para o pátio que servia de oficina e espaço de lazer dos monges. Neste mesmo local sentavam-se em torno de uma leitura conduzida pelo Pai, o abba, que orientava a vida da pequena comunidade, devotada ao sacrifício e a uma austeridade que aliava o rigor à crónica insipidez que só a presença feminina poderia, de alguma forma, aliviar. Poucos anos haviam transcorrido sobre o Concílio de Niceia, no qual o bispo de Tebas se insurgira contra o celibato dos monges. Sendo uma das vozes mais escutadas, não conseguiu Pafúncio demover os saudosistas do martírio que preferiam acrescentar às mortificações da reclusão a renúncia a toda a companhia feminina, como se o céu fosse o escudo sobre as suas cabeças e não coubesse na estreiteza dos seus miseráveis cubículos. Eram esses homens, calejados pela aridez do vento e dos areais sempre em movimento, que cozinhavam a magra refeição de cada dia, cozendo o pãozinho num forno de adobe num dos cantos do pátio e repartindo entre si a fruta amarga de alguma trepadeira, compensada, no entanto, pelo paladar das tâmaras, transportadas desde as margens do Nilo, ou por algumas gotas de

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85 hidromel, tão doce que só parcimoniosamente bebido não seria considerado um tentador pecado. Uma cacimba assegurava a pouca água de que dispunham para saciarem a sede e para a higiene pessoal. Um balde por dia para cada monge era a justa medida exigida pelo rigor da austera comunidade. Uma medida muitas vezes partilhada com algum sedento forasteiro que ali pernoitasse. Constituindo a hospitalidade e a partilha uma das regras cruciais, uma visita era sempre ocasião e pretexto para amenizar a rigidez da clausura. Por isso aquelas almas se agitavam e, cumplicemente, se sorriam, antecipando o deleite que lhes traria a anunciada visita de Pafúncio. A alguns dias de viagem da cidade de Tebas, antiga capital de faraós e atualmente governada sob o cetro de um governador romano, o mosteiro erguia-se como uma sentinela atenta na fronteira entre dois mundos: o da opulência de Tebas e o do rigoroso despojamento do deserto que se estendia até às margens do Mar Vermelho. Apaziguadas que estavam havia muito as perseguições aos primeiros cristãos, as pequenas comunidades monásticas proliferavam em redor da cidade, florescendo junto de antigos templos tão grandiosos como palácios reais. Embora ostentando na própria carne as marcas do sacrifício, uma das missões de Pafúncio consistia em visitar os irmãos em voluntária clausura, levando-lhes palavras de alento e de renovada esperança na vinda de Jesus que o Natal simbolizava. Também Pafúncio sentira, antes de ser eleito prelado, o chamamento do deserto e percorrera a sua vastidão, procurando no fio das areias sem fim as pegadas de Deus. Numa dessas digressões, Pafúncio ouvira falar de Onofre, tebano como ele, que, impelido pelo desejo da perfeição, deixara a família e os amigos para se entranhar profundamente no deserto. Durante vários anos, Onofre preenchera a juventude dos seus vinte anos a consolar os aflitos, a ajudar os mendigos que perambulavam pelas vielas ou à entrada dos templos, a apoiar os mais abandonados e miseráveis, no afã de se tornar um discípulo dos ensinamentos de Jesus. O pai era proprietário de uma estalagem numa das ruas mais movimentadas de Tebas por onde passavam altos dignitários, nobres, cortesãos e aristocratas, frequentemente na companhia de mulheres de uma beleza singular, perfumadas e cobertas de adornos e véus transparentes cujas longas túnicas não raro se franziam, deixando entrever as correias coloridas das sandálias serpenteando pelos tornozelos acima... Onofre

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86 deixava-se seduzir facilmente por essas visões emocionantes, instantaneamente convicto de que tanta beleza seria obra de Deus, embora muito cedo se apercebesse, prostrado e humilhado, de que as maravilhas que julgava descobrir debaixo de tantos adereços não passavam de uma fugaz ilusão, incapaz de resistir à luz fria da realidade. Fora o ideal da perfeição a atraí-lo à vastidão oceânica de areia e a levá-lo a vaguear, mais longe que qualquer outro eremita, pelas profundezas do deserto. A sua quimera de superação não se contentava com a rotina de ajudar os mais desgraçados e abandonados da sorte; ele desejava ultrapassar esse comando de a todos amar. Considerava que também ele deveria ser objeto de amor, porém, um amor que não o decepcionasse. Ambicionava ser ele próprio transformado, pelo amor divino, em alguém tão perfeito que se pudesse aproximar do ideal místico de Nosso Senhor, cuja divindade o recente Credo de Nicéia viera reafirmar. A duras penas, Onofre aprendeu, porém, que o misticismo nunca se desligaria da sensualidade. Mesmo imerso na solidão da frágua onde encontrara refúgio nos confins do deserto e que em muito se assemelhava a um barco à deriva num imenso mar de argila, assaltavam-no as aparições das mulheres mais belas que conhecera em Tebas, para as quais desvairadamente estendia as mãos e apenas encontrava areia a escorrer entre os dedos. De decepção em decepção, Onofre regressava às suas batalhas internas, apercebendo-se de que os seus cabelos descuidadamente crescidos se tornavam tão alvos como a própria areia do deserto... A visão das belas mulheres de Tebas rareavam e só então Onofre teve consciência do abismo que o separava do mundo que conhecia... A quietude e o silêncio que tanto apreciava, crescentemente, instilavam-lhe o medo de se sentir completamente perdido e o terror de enfrentar as sombras que ao fim de cada dia lhe rondavam o abrigo, divisando nelas feras monstruosas e nunca vistas. Espavorido fugia a essas imagens espectrais, correndo escarpa acima para se esconder no interior da gruta, enquanto ouvia o bater descompassado do próprio coração. Só o sazonal reflorir da trepadeira que subia pela penedia tinha o condão de lhe devolver a coragem e a esperança para vencer mais um obstáculo. Como se as florinhas amarelas o lembrassem de que a vida, mesmo parecendo sempre igual, teria sempre um motivo para recomeçar. Onofre tornava-se mais perseverante na leitura dos Evangelhos, rezava e comia tâmaras ressequidas ou roía uma côdea

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87 que sobrasse da última passagem por ali de um dos monges do mosteiro mais próximo. Onofre interrogava-se sobre o sentido da vida. Depois de tanta renúncia e tanto sacrifício, ele continuava, contudo, o mesmo que voltara costas a Tebas. A chegada do enviado de César e do seu séquito de quadrigas puxadas a cavalos interrompera o seguimento melancólico da sua meditação. Solicitavam-lhe que se dirigisse a Roma, ao palácio do imperador, pois chegara o momento de firmar em todo o império a fé em Jesus Cristo Nosso Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. O próprio Deus, misterioso e inatingível, que os heréticos propalavam, tinha afinal um rosto e um itinerário visível e palpável, e ninguém se encontrava em melhor posição do que Onofre junto de César para revelar a boa doutrina e a tornar universal. Onofre não ascenderia ao céu, mas, ao lado de César, deteria um poder real e efetivo e tudo o que na terra ligasse seria ligado no céu, e o inverso também seria verdadeiro. Reparou atentamente nas suas vestes cerzidas com folhas e nos restos de uma pele surrada que o cingiam. Como poderiam elas estar à altura dos paramentos pontificais que o novo cargo reclamaria? Como seria possível ver-se dentro deles? O êxtase que em sonhos atingia nos braços que o apertavam e circundavam como as correias de uma sandália não se sobrepunha ao inebriamento que lhe proporcionava a inefável sensação de poder. Também nesse instante Onofre cerrou as pálpebras frementes de prazer, para nada ver, quando os abrisse, que não fosse a imensidão vazia à sua frente. Recolheu-se, então, humilhado ao seu tugúrio, ruminando na armadilha diabólica em que quase caíra. Entretanto, a sua fama de eremitão empedernido corria como o vento no deserto que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai... Não faltavam peregrinos em busca de um conselho, de uma bênção, da cura para um mal renitente ou cruel... Quem mais, além de um homem de Deus, seria capaz de fazer milagres? Onofre vira com grande espanto como, ao simples toque da sua mão, a lepra desaparecera e dera lugar à pele acetinada de uma criança num corpo desfigurado. Assustara-se quando um cego a quem abençoara recuperara a vida do seu olhar, e todo ele se atemorizara quando um paralítico, locomovendo-se como uma aranha com a ajuda de mãos e braços que rastejavam pelo chão, obedecera com êxito à sua ordem de se levantar e caminhar.

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88 À medida, porém, que tantos milagres Onofre realizava, era ele quem perdia a vista, o cabelo que lhe chegava desordenado abaixo da cintura ia rareando e tão enfraquecidas sentia as próprias pernas que só com a ajuda das mãos conseguia trepar pela penedia até à entrada do seu recanto. Seguindo tremulamente com um dedo as linhas dos Evangelhos, Onofre perguntava-se se não teria finalmente atingido a perfeição em cuja perseguição se lançara, qual um louco foragido. Seria possível que aquilo em que se tornava fosse o homem transformado pelo amor divino como se propusera havia mais de quarenta anos? Repetiu a pergunta a Pafúncio quando este o encontrou. - Muito me admira essa dúvida, tal é a reputação de santidade e sabedoria que o circunda, irmão Onofre... - A verdade, irmão Pafúncio, é que me cansei de querer ser perfeito... Venci tantas tentações para não resistir à pior de todas elas... Aquela que em mim se insinuou sem dela me aperceber... - Tentação? Mas que tentação?” Pafúncio, olhava admirado à sua volta as penedias enegrecidas, como pequenas fortalezas implantadas contra a vastidão do areal mutante, cambiando de cor e ondulação ao sabor da luz do sol e do vento. A tentação de me julgar melhor do que os outros, volveu-lhe Onofre com um sorriso irónico espreitando por entre os cabelos e as barbas molhadas pela pouca água que escorria da sua cabaça... Um prazer, um dos raros prazeres que indulgentemente se concedia ao fim da tarde, durante os preparativos para a última refeição, antes de se recolher e adormecer a meio das suas intermináveis orações. - A vaidade, irmão Pafúncio, a vaidade... - A vaidade? Mas isso é ridículo! Compreendo as tentações da carne, eu próprio pensei sempre que a melhor maneira de as vencer seria não lhes resistir... E disse-o... Ninguém me deu ouvidos... Ou a tentação do poder... A sedução do poder é muito mais feroz do que a sedução de uma mulher... O irmão Onofre sabe-o bem melhor do que eu, porque a ambas superou... Até o prazer de devorar um naco de borrego assado trocou por mastigar um pedaço de farinha amassada, o pão nosso de cada dia que sempre lhe bastou... E fala-me dessa caricata e risível tentação de que é bom? Onofre,

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89 meu irmão, nisto de bondade, ou se é ou não se é... De que espécie de tentação me fala? - Apercebi-me do meu pecado quando as minhas mãos começaram a operar coisas miraculosas sem uma racional explicação... quando me atrevi a compará-las às maravilhas de Nosso Senhor... quando acreditei ter atingido a meta para a qual corri, na ânsia de me desembaraçar do homem que era e me transformar no homem novo que Jesus Nosso Senhor apregoou... - Só vejo razões para estar feliz por isso, irmão Onofre, porque o conseguiu... Há horas que oiço a sua história e regozijo-me, nem imagina quanto, por o ter encontrado... Vê-lo finalmente, em carne e osso, o santo do deserto de que tanto ouvi falar... Mas longe de mim ferir a sua modéstia... - Não fere coisa nenhuma, irmão Pafúncio, porque ela não existe, a minha modéstia simplesmente não existe... Nunca existiu... Compreende, Pafúncio? Quando deixei a casa paterna e troquei os meus afazeres e muitas riquezas pela mais completa pobreza, já essa decisão significava a eloquente afirmação da minha vaidade e orgulho em ser melhor do que os outros... Apenas não o reconheci... Sob o pretexto de imitar o nosso Salvador, tornei-me no salvador de muitos e converti-me naquilo que hoje sou... um santo... Desgraçadamente não se pode chegar a essa convicção de santidade sem se cometer o mais grave pecado da imodéstia! - Muito sinceramente, Onofre, julgo que está a laborar num terrível equívoco... Basta recordar como Nosso Senhor afirmou que ninguém pode fazer milagres em seu nome e ser contra Ele... O Onofre é um homem de Deus a quem, a todo o momento, devemos dar graças e louvores... Eu próprio o tenho procurado com a secreta esperança, quem sabe, de que também me pudesse curar das horrendas mazelas do meu martírio. Onofre olhou compadecidamente para o monge que sobrevivera, durante as perseguições de Maximinus, às piores torturas. Lembrou-se que também Jesus, depois de ressuscitado, continuou a desvelar as feridas dos pregos que o haviam prendido à cruz e a chaga da lança no final da crucificação. Insaciável na

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90 imitação de Jesus, quase contemplou com certa inveja os vestígios das torturas infligidas ao então jovem Pafúncio. - Não se aflija, irmão Pafúncio... Brevemente encontrar-me-á estendido sobre esta fraga que foi a minha ara de suplício ao ardor do sol, mas também o berço que me embalou ao fim de cada tarde, gozando a aragem morna que como um bálsamo me consolava o corpo cansado. - Ora essa, irmão Onofre... Ainda agora falávamos sobre a vida... Um homem de Deus desafia a própria eternidade... - Tenha cuidado, Pafúncio... é assim que se começa... Mas vou preveni-lo e tenho de o fazer, porque será importante para ambos... A noite passada tive um sonho... Chegaria do deserto um padre a quem eu contaria a minha história para que ela não se perdesse para sempre encerrada nesta cova de granito... Seria o mesmo padre quem voltaria para me enterrar, estando os meus dias já contados... - Sonhos, Onofre, como pode acreditar numa coisa dessas... Sonhos são como as miragens... Vemos o que julgamos ver... - Não neste caso... posso asseverar... Logo o reconheci tal como o vi no meu sonho... Um padre do deserto claudicando de uma perna, avançando agarrado a um bordão e girando a cabeça para olhar de frente, sobrevivendo-lhe unicamente um olho são... - Ora, ora, Onofre... O mais certo é que tenha ouvido contar a história por que passei... Tornou-se uma lenda e são águas passadas, embora Deus Nosso Senhor não quisesse que me esquecesse... e Pafúncio concluiu em tom de desabafo: Seja para sua maior glória! - Verá que não é bem assim como pensa... Posso oferecer-lhe, irmão Pafúncio, toda a hospitalidade que merece? - Partilharei com alegria o pouco que tiver, meu irmão... Um pouco de pão e um resto de sopa de lentilhas... - Pois terá uma refeição servida por um anjo... Nada lhe faltará! Pafúncio, que de tão longe viera para o conhecer, lamentou que a idade e a notória fraqueza do eremita dessem provas de alguma senilidade, fatal e inevitável consequência da decadência humana. Contemplou, porém, com súbita admiração uma toalha com a alvura do linho que, por entre as sombras da

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91 escarpa, flutuava e suavemente pousava na laje em que os dois se encontravam. Numa bandeja cintilante foram servidos suculentos manjares, enquanto de uma ânfora de cristal escorria para vasos de prata um vinho puríssimo. - Mas o que é isto? Outro milagre seu ou estarei a ser vítima de uma alucinação? Não será esta, certamente, uma hora propícia a miragens... - Não lhe contei tudo... No meu sonho não fui apenas instruído acerca da sua vinda, irmão Pafúncio... Também me foi revelado que, pela hospitalidade que lhe é devida, este momento será igualmente para mim o banquete para que muitos foram convidados... e poucos os escolhidos... de entre os estropiados, aleijados, isolados e abandonados... Não se tratou de nenhum milagre meu, foi realmente um anjo que nos serviu! No dia seguinte, aos primeiros raios da manhã, com o alforge carregado do que da lauta ceia sobrara, Pafúncio subiu para o dromedário e pôs-se a caminho. Deveria regressar em dez luas, conforme ajustara com Onofre. Poucos dias antes da data combinada com o solitário, Pafúncio chegou a Der-el Nefer onde se sentiu festivamente acolhido pelos monges que, depois de efusivos abraços, o conduziram em procissão e ao som de hinos cantados até ao interior da capela para a costumada ação de graças. Pafúncio sentia-se, porém, impaciente, e quando à noite contemplou a lua que se erguia redonda como a roda de um carro egípcio1, percebeu que não havia tempo a perder se quisesse cumprir a promessa que fizera a Onofre. A lua brilhava em todo o seu esplendor no horizonte quando, empoleirado na sua pachorrenta montada, Pafúncio deixou para trás a obscurecida silhueta do mosteiro. Todo o dia caminhou, detendo-se apenas no momento em que o sol baixou, decidindo-se a passar a noite, convenientemente abrigado, entre uns pequenos rochedos. Com o olho são não se cansava de repetidamente apreciar os reflexos prateados do luar na ondulação das dunas, no meio da tranquila solidão e imensa quietude. Tendo bebido o seu chá e se enrolado numa velha manta, aguardava o sono dos justos. A noite seguinte seria a de Natal. Pensando na refeição melhorada para a qual fora convidado pelos monges de Der-el Nefer, recordou o estranho banquete oferecido por Onofre dez meses antes. A última ceia antes do grande sacrifício, assim o dera a entender o eremita. Pafúncio sentiu um arrepio e finalmente 1 Eça de Queiroz, Santo Onofre em Últimas Páginas

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92 adormeceu. Pela madrugada retomou a caminhada para mais um calculado dia de viagem. Seguia meticulosamente o itinerário que traçara até ao refúgio de Onofre, mas, sempre caprichosas, as dunas mudavam de lugar, trocando as voltas a Pafúncio que desesperadamente constatou que estava perdido. O sol já se pusera e os vestígios sanguíneos que espalhara no horizonte rapidamente se desvaneciam, lembrando como no deserto se tornava arriscado prosseguir viagem por dentro da noite. Procurou orientar-se pelas estrelas que, apesar de demasiado altas, pouco lhe serviram de ajuda. Sentia que talvez estivesse muito perto e, no entanto, não havia sinal que o guiasse. Rezava para não ficar ali perdido... quando subitamente o seu dromedário parou, incapaz de avançar mais um passo. Provavelmente estaria exausto, o pobre animal... Jamais deveria ter prosseguido depois do pôr-do-sol, lamentava-se, dessa forma arrependida, Pafúncio. Carinhosamente afagou-lhe o dorso e a montada retribuiu o gesto de afeto retomando vagarosamente a sua marcha... Não fora, todavia, o acalento a causa do despertar da montada de Pafúncio, antes um misterioso tremeluzir no meio da escuridão que se avistava não muito longe de onde se encontrava. Foi na sua direção que o animal se pôs a trotar, mal deixando Pafúncio perscrutar as cintilações que se elevavam à altura vertical do céu. Lágrimas corriam copiosamente tanto do olho são como do olho vazado de Pafúncio enquanto, a sacolejar na sela, pressentia, antes de efetivamente reconhecer, que se situava diante do eirado de Onofre, o declive no alto do qual se rasgava o seu abrigo. De braços afastados, o velho eremita jazia como um crucificado na pedra escalvada, bordejado por uma miríade de escaravelhos luminescentes que conferiam à aspereza da penedia a aparência de uma joia cravejada de pequeninos brilhantes. Tudo parecia tão petrificado, não fosse o piscar dos vaga-lumes que, com as suas intermitências luminosas, carpiam o finado e o esvoaçar ao vento das longas barbas brancas de Onofre acenando um último adeus. Com inesperada desenvoltura, Pafúncio encaminhou-se apressado na direção de Onofre, na expectativa de que ainda orasse pelo nascimento de Nosso Senhor, acolitado pelo inexplicável enxame luminoso. Embora de olhos fixos no céu, nada viam, pelo que Pafúncio piedosamente os cerrou, ajoelhando-se, pesaroso e comovidamente, diante do homem que, de tão longe, viera sepultar.

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93 Não se apercebera ainda de que ele próprio via nitidamente dos dois olhos e que não precisaria mais do bastão para livremente se mover.