1
2 ONOFRE DOS SANTOS O CONTO DA SEREIA Imagem da capa de José Manuel Girão ISBN 978-989-8498-24-3
3 Lançamento do Livro “O Conto da Sereia” Luanda, 23 de Setembro de 2012 na Universidade Lusíada Por AGNELLA BARROS WILPER Durante muito tempo, assistimos à reconversão de muitos escritores em políticos, desta vez encontramo-nos perante um político que optou pela escrita literária, sob uma aura de simplicidade que poderá fazer mudar de ideias a alguns, para quem a complexidade da nossa literatura a remete para as cátedras da universidade. O seu nome é ONOFRE ANTÓNIO ALVES MARTINS DOS SANTOS, nascido em Luanda aos 16 de Dezembro de 1941. Designado Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, pelo Presidente da República de Angola, aos 20 de Junho de 2008, cargo que ainda desempenha. Ex-aluno do Liceu Nacional Salvador Correia. Licenciado em Direito (1954-1964) e em Ciências Económicas e Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1964-1966). Advogado em Luanda desde 1966, exerceu cumulativamente as funções de Juiz do Tribunal de Menores e de Execução de Penas até 1975. Foi o Director Geral das Eleições realizadas em 1992. Exerceu também diversos cargos como
4 Consultor eleitoral em missões das Nações Unidas (1994-2005). Concluiu recentemente o curso de pós-graduação em Direito de Petróleo e Gás (2009-2010) na Faculdade de Direito na Universidade Agostinho Neto. Literariamente se apresenta como Onofre dos Santos que, pela manutenção do nome do registo, pode levar à tentação de confusão entre as suas funções, até porque perpassa pelas suas obras um forte sentido de justiça, raiando por vezes a autocrítica severa. A sua vida, por si só, é de uma riqueza extraordinária em que se contam tantos os feitos com que a preencheu e ainda preenche, como as várias missões eleitorais, quase todas patrocinadas pelas Nações Unidas, que o levaram à Guiné-Bissau, Serra Leoa, Bangladesh, Vukovar (antiga Jugoslávia), Lesotho, República Centro Africana, Costa do Marfim, Níger, Gana e Moçambique. Oferece-nos um livro que reúne 11 histórias, cujo título é extremamente sugestivo: O Conto da Sereia. Apesar de terem sido escritas e publicadas separadamente, revelam uma sequência e coerência interna como se fossem capítulos de uma mesma história, oscilatória entre o velho e o novo; a presença e a ausência; o sonho e a realidade; o mar e a terra. São histórias intimistas que fluem como o mar ondulado da sua infância, cujas ondas terminam inexoravelmente nos limites da praia da esperança. Parecem-nos sobretudo hinos à juventude e à feminilidade. Mas o escritor não é novo nestas lides. Antes, em 2002, já nos brindara com “Os (Meus) Dias da Independência” um relato, em forma de diário, da sua vivência durante o período da independência, o livro que o lançou no domínio das letras e que há muito está esgotado, embora seja aguardada a sua reedição para breve. Em
5 2005, editou em livro, um conjunto de mais de 150 crónicas semanais iniciadas em 2003, escritas, quase todas elas, de Bissau mas também de Abidjan e Acra, num contacto regular e semanal entre o autor e os leitores, que foram sendo divulgadas num semanário de Luanda. O seu título é “Eleições em Tempo de Cólera” e nasceu sob a chancela da Editora Chá de Caxinde”. Como o autor explica na sua nota prévia, “esse título é inspirado no romance de Gabriel Garcia Marquez, Amor em Tempo de Cólera, e pretende estabelecer uma associação de ideias entre os tempos de cólera que evocam a doença e epidemia mas também a ira, o ódio e finalmente também a solidariedade, a fraternidade e o amor”. Regressado a Angola em 2005 para trabalhar como consultor jurídico no processo de registo eleitoral, Onofre dos Santos deu ainda à estampa, em 2006, pela Editorial Nzila o “Registo Eleitoral – Legislação Anotada”. O Canto da Sereia foi anteriormente lançado em Portugal, cuja apresentação foi da responsabilidade do Secretário-Geral da UCCLA, Victor Ramalho, num evento realizado a 6 de Junho, nas instalações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Eis uma das suas declarações sobre o autor e a obra:“. Apaixonado por aquela imensa terra de África que é Angola, Onofre dos Santos leva-nos bem mais longe que as distâncias concretas do chão, através de uma viagem cheia de cores, ritmos e sedução por tempos que se cruzam e memórias que se inebriam de futuro”. E o próprio Onofre sobre o seu processo de escrita afirma “... fico com a sensação que estou a escrever uma história que se poderia, depois, num relance dizer que é afinal um romance... sobre mim mesmo, feito de uma certa saudade, não do passado que foi muito bom e até interessante, mas do futuro que ainda gostaria de conhecer... ou inventar... “. “Tenho mais alma de
6 marinheiro”. É magistrado mas procura não viver numa “redoma de vidro”. Afirma que “se não tivesse optado pelo Direito, gostaria e ter sido explorador ou missionário, dada a atracção que sinto pelo horizonte longínquo”. Vislumbra-se na sua produção literária, como fonte essencial, o seu passado pessoal e colectivo, com memórias, acontecimentos e particularidades. Faz dele a base para a construção de uma obra ficcional pelo que a narrativa do passado, constitui o seu exercício literário preferencial. Trata-se, deste modo de um texto literário notável por recorrer a uma memória pessoal, supostamente sem grande relevância. Contudo, a expressão da sua intimidade é nuclear e em termos discursivos, o texto expande-se de um sujeito de enunciação, que se toma a si mesmo como objecto de conhecimento. É uma auto-observação marcada por uma sinceridade, humildade e renúncia pessoal. Discorre do entendimento da sua personalidade um feixe de contradições e de paixões, pelo que resulta um estilo divagante e emocional na obra, consubstanciado num narrador autodiegético , que relata as suas próprias experiências como personagem central da história, na primeira pessoa gramatical, criando a coincidência entre narrador, protagonista e autor. Também é o seu próprio antagonista, numa divisão da personalidade e em confronto interno, nunca se sabendo quem é o vencedor. Na sequência narrativa o autor conta as histórias, num tom em que expõe a própria vida, como forma de explicar o passado, trazendo aspectos psicológicos para a narrativa com alguma ambiguidade, na medida em que o autor pode perfeitamente ficcionar passagens da sua vida.
7 A sua pena se socorre dos diferentes tempos para nos deslumbrar. Se o tempo cronológico é determinado pela sucessão temporal dos acontecimentos narrados, o tempo histórico irrompe com as referências aos momentos históricos em que a acções se desenrolam. Fluindo em consonância com o seu estado de espírito, se encontra o tempo psicológico sentido pela personagem. No tempo do discurso o narrador umas vezes escolhe relatar os acontecimentos por ordem linear, mas também recorre à analepse, com alteração da ordem temporal. O espaço físico primordial, quase sagrado até, é o mar, a praia, servindo de cenário à acção, onde as personagens se movem e os factos da narração se desenrolam. Os amigos e conselheiros se integram no ambiente social que ombreia com o espaço interior do protagonista, recheado de vivências, pensamentos e sentimentos. Sem querer tirar-vos o prazer da descoberta da obra pela leitura, para nós O Conto da Sereia simboliza uma ode ao mar, à infinitude, à beleza feminina, ao amor e à paz, que se exprimem de diferentes maneiras. Através da suavidade e delicadeza da sua escrita em que a mulher é tratada como uma flor de porcelana, frágil e sensível. É elogiada a sua feminilidade, através de uma linguagem que valoriza o erotismo, mas não a sexualidade explícita ou vulgar. Para si, amar é uma eterna espera cuja felicidade advém de pequenos gestos. Mas também com uma faceta contemplativa, diria mesmo platónica, em que se ama o próprio amor. Estar apaixonado pode indiciar um modo de ser e estar na vida, que se completa com o encantamento da sereia, próxima mas distante. Presente também a outra vertente do amor, ligada à paz, à reconciliação das culturas e à integração entre o particular e o universal. Esta obra simboliza
8 também o reencontro com o tempo perdido e à urgência do diálogo, sobretudo juvenil, já que o mesmo avança inexorável, escasseando para o muito que se tem a partilhar. A fuga no tempo, no mar e no Facebook remete para a dificuldade de sustentar o real. É um homem só que necessita da irrupção do seu outro eu, afastado de si durante muito tempo. Muito honesto, junta a esta “limpeza interna” a obsessão pela limpeza exterior. E a identificação com o mar, sol, as estrelas, a “lua azul” configura a sua busca pelo infinito, manifesta também na ânsia de harmonia universal nestes “novos tempos de cólera”!
9 Diálogos na areia A Ilha é uma língua de areia onde a cidade nasce e desagua, se mistura com a gente que se aperta nas suas vielas ainda a salvo do invasivo turismo da capital e tudo ali, ao fim-de-semana, é uma confusão de tristezas e alegrias, de bebedeiras dos velhos para esquecer os amores perdidos, dos arranjos intermináveis de penteados das meninas que se aprontam para a noite de sábado, e dos miúdos de todas as idades sempre com o olho nelas e na vida que se abre aos seus olhos ávidos de sol, de mar e da beleza misteriosa da mulher. - Mas então Octávio estás a pensar o quê? Essa menina não é mesmo pra você, você é miúdo, muito miúdo mesmo… - Sei mano, mas depois que lhe vi, não consigo parar de pensar… - Mas quem mandou espreitar? - Eu vi ela ir com o balde e o sabão, fiquei mesmo colado ali, a porta tem uma abertura eu só queria ver ela tomar banho, qual era o mal? - O mal está-se a ver agora… hum, mas você viu mesmo o quê?
10 - Vi pouco, mas as duas maminhas dela eu vi bem também a abertura da porta não dava, mas tudo explodiu de repente.. - Como explodiu, você está aqui…ela está lá… - Não foi explosão de bomba, foi mais clarão, os olhos dela me encontraram mesmo na hora de eu querer ver mais… - Relâmpago, primeiro vem a luz depois vem o trovão… - Foi isso mano, os olhos dela me incendiaram, os meus olhos fecharam, o barulho depois foi mesmo o meu coração e os meus pés a fugir até chegar aqui na praia… começar a respirar outra vez… - Bom, então você escapou, agora o melhor é esquecer, o que viu e o que não viu… - Não consigo mano, todos os dias eu penso, sempre a rondar como um cachorro à procura de comida, chego mesmo de olhar bem nos olhos dela… - E não te dá corrida? - Não dá, me goza só… faz sorriso este miúdo é muito atrevido… - Cuidado Octávio, a miúda tem namorado se ela te dá queixa vais acabar surrado… - Não queixa não, não tem porquê, ela sabe eu só gosto dela… - Mas rapaz aqui na ilha não falta menina para brincar, da tua idade, mesmo namorar…a Teresinha ela gosta de você, eu vi… - Eu pedi namoro na Teresinha, lhe peguei na mão, lhe dei um beijo na cara só, na boca não quis me receber… - Isso vai mais devagar, a Teresinha é uma menina de família antiga, você tem de ter respeito, ela vai pensar o quê?
11 - Eu lhe disse que namorar é assim não é só andar junto, tem de fazer carinho com as mãos, beijar como na televisão … senão mesmo os outros te vão gozar, chamar você de palhaço… - E não é ser palhaço estar a espreitar a miúda do outro e fugir e andar aí pela praia a fazer mais o quê? - Pode ser palhaço sim, mas esse não faz mal… - Como não faz mal? Os outros vão gargalhar das tuas fugidas, ela mesmo vai rir de você… - Não faz mal porque eu fecho os olhos e só vejo ela, a espuma a correr no seu corpo, os olhos a brilhar… - Você tá maluco mesmo, Octávio, isso vai dar mesmo uma boa surra do namorado dela é pra você aprender não andar atrás da minha miúda, como um cão vadio, te deixa o lábio a sangrar, da próxima vez que te vir vai ser pior, ele vai-te avisar… - Ela ia ter pena de mim afinal, me vai limpar o sangue, você é um menino muito querido mas você não tem idade para andar atrás das miúdas crescidas, me limpa o sangue da minha boca e eu vou sentir o cheiro da sua mão na minha cara… - Octávio, isso é um consolo com preço muito alto, mas você é que sabe se quer mesmo ficar pintado de palhaço com o seu próprio sangue e ter de rir quando é momento mesmo de chorar… - Pois, mas então ela vai dizer ao namorado tu és um bruto o miúdo não fez nada, não é pecado olhar para mim… - Ah, mas ele não vai ficar calado não, vai responder esse miúdo é bandido ele te quer ver nua te anda a espreitar se anda a gabar que és a mulher dele…
12 - Ela não vai gostar de ouvir isso, também não é verdade eu nunca disse isso… - Mas pensaste… ela vai responder, deixa lá, coitado, a mulher dele em sonhos… - Se ela disser isso e me fizer um afago, se passar a mão pela minha cabeça eu não me vou importar da surra, até de levar mais… - Olha, vem ali a Teresinha, vem mesmo a calhar para não pensares no que não deves… - Tenho de pensar, mano, porque vou-lhe dizer o que quero dizer na Cecília, vou praticar… - Cuidado com as mãos não são só os homens que são capazes de magoar… - Olá Octávio, onde está a tua prancha? Já deste algum mortal hoje? - Estava á tua espera para me veres. Quando estás a olhar consigo saltar mais alto quase que bato com os pés no Sol… - Quero ver … também vou dar um mergulho, está muito quente e água deve estar mais que boa! - Queres experimentar a minha tábua? As ondas estão mesmo na altura… ajudo-te a deslizar… - Gosto de deslizar mas não gosto de cair, obrigado… vocês é que são os campeões e tu pelos vistos queres ganhar a taça… - Só quero aquele beijo que me recusaste no sábado passado… - Tenho pensado nisso, não sei se é bom… - Mas tu queres namorar comigo mais como, apanhar conchinhas aqui na praia, dar umas risadas para os meus amigos me olharem desconfiados, afinal é como?
13 - Tu tens é que pensar mais em mim do que nos teus amigos, afinal, não dizes sempre que gostas de mim? - Gosto, gosto muito, mas a gente quando gosta quer mais do que conversar, quer segurar a mão, acariciar, sentir aquela vontade… - Vontade? Qual vontade? - Não estás mesmo a perceber? Um homem… - Mas tu não és um homem, és um miúdo, cheio de manias, com olhos muito grandes, também tenho os meus sentimentos.. - E daí? - Gosto de estar contigo, Octávio, gosto de ouvir as tuas gabarolices, gosto de me rir, apanhar sol, tomar banho, fazer bolas de areia, atirar-te, ver-te zangado e vires atrás de mim e eu a fugir até me apanhares ali ao pé da canoa…não quero ir mais longe… - E quando eu te agarro com força, e trocamos os nossos cheiros e estamos tão perto, não tens vontade de atarraxar, de ficar ainda mais perto? - Não é preciso, para eu gostar de ti não preciso sentir mais nada, pelo menos agora… - Comigo é diferente, eu gosto mesmo muito de ti mas preciso de te fazer festas, sentir-te arrepiada, dar beijos na tua boca meter a minha mão nas tuas pernas, dizer-te que nunca senti nada assim… - Octávio, nem quero ouvir uma coisa dessas, deves andar a ver filmes que o meu pai não me deixa nem olhar…olha, acho melhor ires deslizar, aproveitar aquela onda…
14 - Tu és a minha onda, Cecília, eu quero deslizar, voar, dar um mortal, afogar-me dentro de ti, e depois ressuscitar ao Sol para te voltar a abraçar… - Cecília? - Teresinha… - Vou-me embora, já ouvi o que não queria e até perdi a vontade de tomar o meu banho de mar… - Vai já então, eu fico… estou sempre aqui à tua espera… - Pois fica… pode ser que a Cecília apareça… O Sol e o Mar continuam o seu eterno namoro naquela restinga meia vestida de palmeiras esparsas… as canoas continuam paradas, elas também no seu descanso de fim-de-semana. - Eh, Octávio, a Teresinha ia com ar furioso, o que é que fizeste desta vez? - Não foi nada, falei com o coração nas mãos e pronto… - Podias ter falado com as mãos na cabeça dava melhor resultado… - Mano, eu gosto da Teresinha mas ela não é mulher para mim… - Desculpa lá pá, ela é uma menina de que é que tu estás a falar? - Estava a pensar na Cecília… - Hum, estás a ver aquela avezinha ali em cima? Não querias agarrar? - E depois? - Não podes, ela voa muito alto acima da tua cabeça, pode até ficar ali a planar, a girar, mas daqui a pouco o Sol vai começar a descer e ela vai desaparecer, vai também recolher ao ninho dela… - Mas a Cecília eu sei onde mora e vou lá…
15 - E levas uma grande surra que é o que parece que tu estás a procurar… - Nada, eu finto o namorado dela e vou chegar bem perto ver ela caminhar como uma garça dessas que aterram aí junto das canoas para picar o peixe… - Mas tu não és peixe para o bico dela… - Hum, mas eu a como com os olhos e quando passa um ventinho sinto o seu cheirinho a sabão no outro dia bebi a água que escorreu do seu banho… - Não me admira que gostes tanto do sabão…isso é uma porcaria e tu não estás bom da cabeça mesmo… - Posso ser miúdo e maluco mesmo mas tenho a certeza que aquela água quando eu passei nos meus olhos, na minha cara, senti mesmo, agora estamos juntos, na praia, tu és a minha madeira onde eu vou andar, afinal, vou voar nessa onda só vou parar no Sol… - Vais mas é torrar… houve um mais velho de antigamente que construiu umas asas de cera, ele também quis voar até lá, mas as asas derreteram e ele caiu no mar… - E morreu? - Que é que achas? - Pode mesmo morrer, mas voou… - Mas também caiu… é história, mas é o que acontece quando um quê quer ir para onde não pode…e você, Octávio está indo nessa direcção… - Qual? Olha só aquela onda… espera só para me veres saltar… A Ilha torna-se ao meio da tarde uma moldura de gente que se diverte com as ondas, sobretudo a miudagem, dezenas deles, aguçam
16 a sua habilidade correndo e escorregando sobre a nata platinada que cobre a cada impulso do mar a areia dourada da praia. Octávio carregando a sua prancha, um rectângulo de madeira onde tinha inscrito a fogo Kalema Skim, era o mais espectacular de todos eles indo ao encontro das ondas e catapultando-se em saltos mirabolantes. - Esse foi um grande salto sim senhor, a Teresinha devia ter visto…talvez ganhasses esse teu beijo na boca… - Quem devia ver era mesmo a Cecília…ela só me viu cheio de medo nos olhos e de costas, a fugir… não me conhece mesmo… - E tu conheces ela? Um homem gosta de uma mulher só porque viu ela nua? - Antes de ver nua eu a vi com a roupa, com a roupa mesmo de dormir, o cabelo sem arranjo, com o balde e a toalha na mão, mas foi nessa hora que eu lhe gostei e fui atrás dela, escondido nas paredes, como uma lagartixa, para a poder ver toda e bem… - Isso é muito perigoso rapaz, o que entra pelos olhos custa mais a sair do que o que entra pela boca… - Quando ela me descobriu ela sorriu, eu penso ela também gostou, esse miúdo tem muita astúcia…me quer ver mesmo, mas eu, quando o seu olho brilhou na frincha, aí não vi mais nada, parecia a luz do carro na estrada que quase me matou da outra vez… - Encandeado… outros dizem foi feitiço, essa Cecília é feiticeira? - Porquê? - Quando falamos de alguma pessoa e ela aparece ela é feiticeira…
17 - Aonde? - Aquela quem é? Vem rindo… - Ceci… Não há nada tão belo como o Sol quando beija o mar na Ilha de Luanda… mas nesse fim de tarde havia uma rival… - Então eu adivinhei… não lhe conhecia, mas ela vem com o pano da tartaruga que anda na água e na areia…achei que era um sinal de sereia… de perigo… - Boa tarde…aquela canoa é vossa? - É nossa como é esta praia, podemos encostar nela, quando está Sol dá alguma sombra para namorar…pelo menos é o que diz aqui o meu mano Octávio… - Seu irmão, eh? Mas ele não é muito novo demais para namorar? - Você já viu ele voar em cima das ondas? - Isso tem que ver? - Sempre há uma relação, o mar, a madeira, saltar, dar uma cambalhota, mergulhar, tudo tem a sua relação, como rir, chorar… - Hum, então é assim? E o seu irmão faz isso tudo e não fala? - Octávio, você ouviu? - O mano Cacete não é meu irmão mesmo, é meu mano mais velho só aqui na praia, ele me conhece, me dá conselho… - Ah, estou a ver… e o que é que ele acha de um miúdo desabusado que anda a espreitar pelas portas violando a intimidade… - Eu já lhe avisei, dona, isso não vai voltar a acontecer, ele me prometeu e até jurou pela Senhora do Cabo!
18 - É bom eu saber que estás convertido e vais ser um miúdo decente e não um desaforado à beira do precipício… - Não me importa… - Não te importa o quê? - O precipício, quero dizer, não me importo de cair… é o que eu faço aqui na praia, quando subo numa onda… - É, ele tem alguma razão, dona, para subir tem de cair… mas eu já avisei, depois de cair nesse precipício ninguém te vem ajudar a sair… - Queres mostrar-me as tuas habilidades com a madeira, Octávio? - Ele não quer outra coisa… - Não foi a ti que perguntei… - Está bem, dona, já vou andando, o Sol não vai demorar a entrar no mar e eu tenho de voltar… adeus Octávio, cuidado com a sereia… - Explica-me lá então como é que andas com a tua madeira… - Primeiro espero a onda vir… depois atiro a tábua para a beira da água, dou uma corrida para ganhar balanço, a madeira começa a deslizar bem, com toda a velocidade, até que dá encontro com a onda e pá! … aí eu sou disparado para o ar, e fico a boiar no ar, a cabeça para baixo, vejo tudo ao contrário até cair no mar. - Isso é lindo… - Mas é tudo, tudo num instante… eu tenho que repetir cem vezes para me lembrar desde o princípio como se fosse devagar, a cambalhota, as cabeças na praia ao contrário até mergulhar no mar… - Cem vezes? Mostra para mim…
19 O Sol está quase a esvair-se na espuma que apenas se adivinha na linha do horizonte, já só um rapaz insiste nas suas cabriolas por cima das ondas adornadas de pérola e ouro que rebentam e rendilham a canoa enegrecida na praia branca onde uma jovem se desfaz a rir cortando o ar com as suas risadas como a prancha fende as ondas numa felicidade furiosa. A Mulher Imaginária Apaixonei-me por ela no exacto momento em que a vi. Apaixonei-me, portanto, por uma mulher que nunca tinha visto antes, ou talvez ela fosse o resumo de todas as mulheres de quem gostei na minha vida. Digo a mim mesmo, para me desculpar, que alguma razão devia existir para explicar o meu súbito fascínio porque ninguém se apaixona por quem não conhece. Portanto julguei conhecê-la, talvez a conhecesse mesmo, sob outras formas, ou melhor dito, devo ter imaginado tudo isto. A mulher imaginária é, pois, uma mulher que conheci e por quem me apaixonei, mas que devo reconhecer, não conheço de verdade. Voltaria a encontrá-la? Alguma coisa me disse que sim, esta cidade é tão pequena, vamos certamente encontrar-nos muitas vezes. Resolvi não confiar: - Pode dar-me o seu e-mail? Talvez sermos amigos no facebook? - Claro, aqui está... De um momento para o outro ficámos “amigos” virtuais... o espaço sideral, as fibras ópticas, tudo isso passou a ser a rede acima da qual comecei a ensaiar-me como trapezista voador. A minha tentação do circo, afinal. Tive medo de não saber fazer outro papel que não fosse o de palhaço e de fazer rir a miudagem... fazê-la rir
20 seria uma boa opção mas ela acabaria por ter pena de mim. Não era isso que eu queria... um papel mais ousado, não me assentaria nunca muito bem, mas no circo tudo era possível, com as luzes, a distância, os efeitos especiais de que sempre me considerei capaz. Que melhor circo que a net, o messenger e o facebook? Passei a frequentar a sua página, a conhecer os seus amigos, a mirar a sua fotografia olhando para além, de óculos escuros... procurava reconstituir a sua imagem com o que guardei dos momentos em que estivemos juntos. Depois dediquei-me, afincadamente, à sua configuração na intimidade, para lá do círculo de relacionamento social que nos fez encontrar um com o outro... algo que só podia mesmo imaginar. Os dados que tinha descarregados na retina eram escassos, os contornos dela vagos como uma pintura impressionista, mas o tempo e a distância actuavam como um fermento de inspiração na minha cabeça. Daí passei dias a sonhar com ela, sentindo-me ao pé dela, a toda a hora, quando ela está online e eu vejo a sua imagem e o seu nome no messenger ou no facebook. Passei a usar o ecrã do meu IPad, como uma plataforma virtual, uma espécie de tapete voador que permite manter-me em permanente expedição, procurando chamar a atenção do seu coração. Decidi escrever na minha parede o que me ia na alma, pensando nela e só nela, embora as minhas mensagens cifradas ou quase indecifráveis não lhe estejam dirigidas mas sim a todos os meus muitos amigos e amigas que por razões que só eles sabem também vivem agarrados à net e vão deixando os seus likes e um comentário de vez em quando. Imagino no entanto que ela lê as minhas mensagens e as entende. Não me responde nunca o que se torna para mim a sua forma de responder. O silêncio tem sempre um significado.
21 Interpreto-o, à vez, de forma diferente. Ou prefiro não interpretar da forma mais lógica porque tudo o que me compraz é poder continuar a dizer-lhe o que sinto, sem correr o risco de ver a sua troça, ou pior, sentir o seu desprezo. Tudo o que me satisfaz e socorre é poder dizer-lhe tudo o que sinto e quero continuar a sentir. Os seus silêncios largos como resposta, se me causam dor, dão-me ao mesmo tempo imenso prazer que não trocaria por nada neste mundo. Conjecturo que ao ver as minhas palavras escritas no seu facebook ela tem de pensar em mim e deleito-me a pensar que é obrigada a pensar em mim sempre que eu mesmo quero, como se eu apertasse um botão de controlo remoto. Compreendo que não me queira dizer uma só palavra que possa sem querer ser mal entendida como algum interesse da sua parte, alguma inconfessável inclinação, enfim, um sentimento de qualquer espécie que eu acredito possa despertar no seu íntimo, mesmo eu não sabendo como isso seria possível, tal é a diferença entre nós. Não disse, mas tenho o dobro da idade dela e a minha idade é aquela em que algumas coisas que faço e digo já não podem ser levadas em conta de devaneios de meia-idade, muito menos de juventude. Pelo contrário, podem ser indício de demência senil embora eu esteja convencido que apenas corro o risco de demência mas não senil. Afinal a demência é precisamente o que sinto, esta minha incapacidade progressiva para distinguir o real do imaginário. Tenho a certeza que ela simpatiza comigo, gosta mesmo de mim como amigo, e trata-me assim, tal e qual, sempre que por um pretexto ou outro nos vemos ou falamos de tempos a tempos. Nessas ocasiões, faço o mesmo, comporto-me invariavelmente como um cavalheiro, procuro dizer uma ou outra coisa com algum interesse
22 mas sinto que tudo o que lhe digo é de uma banalidade atroz o que acaba por me transformar num duplo inútil e descartável. Porém, logo que estou só, revisto-me dos meus poderes mágicos de lhe poder falar ao ouvido, ciciar palavras de embalar, transmitir-lhe toda a intensidade dos meus sentimentos que transbordam pela net, escorrem pelo facebook e se gravam no seu IPad, onde ficamos depois, em silêncio, mirando-nos como diante de um espelho que nos transforma em simples palavras. O seu silêncio reverte para mim como uma sentença condenatória da minha ambiguidade, o castigo que me inflige dói mas também me apazigua, afinal ela está ali, a sua imagem e o seu nome a confirmar que é ela, embora a foto não dê para reconstituir o rosto com que sonho noite e dia, parecendo que a minha vida está suspensa do seu status online! Quando deixa de estar online, entro em pânico, como se a perdesse de vista, para sempre, como se ela me desligasse dos seus pensamentos, me apagasse a mim mesmo. O seu afastamento me parece tão definitivo que me apavora. Volto a vê-la, na vida real, e procuro disfarçar toda a preocupação que senti, olá como está? O seu trabalho... o meu vai muito bem... porque não lhe digo que tudo vai mal, porque não a tenho visto na net e que sem isso eu não posso viver, pois vivo de dizer-lhe o que só lhe posso dizer num mundo virtual em que ainda posso fingir, representar, posso mesmo fazer de príncipe encantado, esperando que a falta de rede não deite por terra todos os meus sonhos. Ela deve olhar-me com alguma diversão, deve dar-me o desconto da idade, senão, já me tinha dito mais qualquer coisa que me fizesse arrepender das mensagens que continuo a enviar regularmente, todas as noites, embora a cada manhã eu prometa a
23 mim mesmo que é última, que continuar não só é inútil como é perigoso para a minha saúde mental. Daqui a pouco estarei a acreditar que temos uma verdadeira relação amorosa embora eu lhe diga todas as palavras meio loucas e sem sentido que me veem à cabeça ou transcrevo dos livros que leio e das músicas que oiço a toda a hora e ela se limite a responder-me com o silêncio que eu desejo signifiquem uma correspondência, pois quem cala consente. De repente, como se me adivinhasse o pensamento a sua imagem desaparece, como se fechasse a luz da sua cabeceira e me voltasse as costas deixando-me na escuridão total. Começo a dedilhar no meu IPad, ilumina-se o ecrã... como um céu estrelado e surpreendo-me a escrever coisas sem nexo como “na noite escura chamei por ti, vi uma estrela cadente, estendi a mão para a agarrar como se fosses tu, mas ela passou como uma luz pelos meus dedos...”.Perguntei-me no dia seguinte se ela me terá lido... e se a tivesse lido teria pensado que era para ela aquela mensagem solitária e desesperada... Nenhuma resposta devia ensinar-me a calar-me, mas a sua imagem no messenger ou no facebook era um incentivo renovado para voltar a escrever o que me ia na alma e que aproveitei para roubar a Gabriel Garcia Márquez, o meu autor favorito, porque em tantos dos seus livros o amor nunca é impossível, mesmo fora de tempo, in extremis, pois para aquele autor, o amor nunca é tarde de mais: “porque me conociste tan viejo? A verdade, como ele responde “es que la edad no es la que uno tiene sino la que uno siente”... O acaso voltou a juntar-nos mais uma ou duas vezes, encontramo-nos e despedimo-nos como dois bons amigos, um breve beijo no rosto não me deixam sequer a recordação nem do gosto da
24 sua pele nem do seu aroma... Penso que não usa perfume, como não usa um anel, um adereço ou enfeite. Veste casualmente e tão simples, sempre de calças, o único realce feminino que lhe pude alguma vez surpreender foi um pequenino traço de rímel dando um perturbador acento ao seu olhar... Fixo-me sempre nos seus dedos despidos de enfeites mas compridos e firmes e quase estremeço só de pensar que os podia entrelaçar nos meus e beijá-los. Censuro-me por não ter a coragem de reter a sua mão mais um segundo quando nos dizemos adeus, e volto ao abismo virtual, ao poço sem fundo da net em que me entrincheiro para preparar mais um assalto figurativo. Hoje é dia dos namorados e lanço na parede do meu facebook a projecção de um par de dançarinos de tango, num abraço estilizado em que só falta a música e eu escrevo “você dança comigo?” O seu silêncio cai em cima de mim com o fragor de uma “tampa” e fico imaginando com quem ela estará nesta noite de S. Valentim em que todas as ousadias são consentidas. Sinto ciúme mas não a vergonha que em jovem senti quando alguma menina se recusava a dançar e me deixava aturdido no meio do salão. Pelo contrário, agora, sentia o prazer de a ter convidado para dançar, de a ter feito perceber que era com ela, e só com ela que eu queria rodopiar pela pista, envolvendo o seu corpo e a sua cintura de menina nos meus braços, como se a estivesse também a embalar até a deixar adormecida no meu ombro. Não me preocupava nada não a ter conhecido melhor, de não a ter encontrado na praia para a poder ver mais e ao vivo, apreciar as suas pernas libertas da ganga dos seus habituais jeans... surpreender alguma veia azul a cruzar a brancura da sua pele macia... tudo isso eu
25 podia ver sempre que quisesse, bastando-me fechar os olhos, pensando nela. A minha falta de sentido da realidade é realmente preocupante, tenho a noção da minha duplicidade mas quando sou um não tenho consciência do outro. Estou perto dela, ela conversa com outra pessoa ao seu lado, parece meia absorta, os seus dedos brincam com um caracol do seu cabelo e eu debato-me em reconhecer nela a mulher que todas as noites me entra pelo quarto dentro, pé ante pé, se mete na cama comigo, me beija e me deixa acordado e com olheiras no dia seguinte... procuro em vão reconhecer nos lençóis o seu cheiro, alguma marca do seu corpo, apesar de sentir ainda em mim o seu inventado aroma de flor. Tudo não passa, efectivamente, de produto da minha imaginação febril, devo estar doente, já não controlo o meu pensamento e começo a recear a gravidade da situação. Se isto se descobre acabo internado num hospital psiquiátrico e mesmo que diga que estou louco só de amor ninguém me vai acreditar e muito menos libertar. Apetece-me chorar, penso que pode ser da idade mas recordo que sempre fui capaz de me desfazer em lágrimas com qualquer história que lesse ou visse no cinema e que tangesse no momento certo as cordas do violino da minha sensibilidade. Essa mulher imaginária não me deixa marcas, não me fala, não me manda uma mensagem, e lá volto a pensar que ela não existe mesmo, que só a imaginei ou sonhei e que não a voltarei a encontrar... e no entanto constato com algum alarme que quanto mais a não vejo mais a amo porque o meu amor, afinal, é puramente imaginário, tão imaginário como ela própria, alimentado pelo acumular das minhas conjecturas amorosas. Mas embora imaginário nem por isso menos
26 verdadeiro pela prova que o sofrimento vai deixando em mim. Sinto-me doente, quase uma ruína. Mesmo assim, não estou disposto a trocar as delícias desse amor por nenhuma outra realidade por muito sedutora que fosse. Voltando a pegar em Gabriel Garcia Márquez, “el sexo es el consuelo que uno tiene quando no le alcanza el amor”. Como um sintoma de loucura dou comigo no extremo paradoxo de pensar que preciso urgentemente que ela não me ligue, que não me apareça, que eu não a veja, pois se ela se tornar real, a tábua de salvação que me prende à vida foge-me das mãos e eu lentamente serei arrastado para o abismo, me precipito e afogo, esqueço tudo. Se ela aparecer o que é que eu faço? Essa pergunta me apavora... ela é a minha mulher imaginária, apenas a mulher dos meus sonhos... De repente o ecrã do meu Ipad cintila, tilinta, e uma mensagem aparece a brilhar: - Olá Octávio, estava a pensar convidá-lo para jantar, há tanto tempo que não falamos...preciso de lhe perguntar umas coisas, nada de especial... - Mas é claro Cecília, tenho tanto gosto em voltar a vê-la... só tenho pena de uma coisa… - De quê? - De a ter conhecido tão velho… - Pensava que la edad no es la que uno tiene sino la que uno siente… Emudeci… por uns instantes pensei responder como o personagem de GGM, “lo que pasa es que uno lo siente por dentro, pero desde fuera todo el mundo lo ve”… e perguntar-lhe como é que ela me
27 via… se finalmente ela me lia nas minhas loucas mensagens pela net, mas em vez disso apenas me saiu: - Posso passar a buscá-la?... às 8 horas ? - Fica combinado… seja pontual! Invadiu-me um sentimento misto, ao mesmo tempo de felicidade e de angústia… a verdade é que mesmo chegando a horas como sempre, não deixarei de chegar sem meio século de atraso.
28 Que esperas de mim? O que esperas de mim? A pergunta surgiu inesperada e abrupta. Já não sei o que respondi mas isso agora não tem nenhuma importância. O que quer que lhe tenha respondido foi certamente uma mentira descarada. Provavelmente uma versão remendada daquela conversa da amizade, sem me arriscar sequer a aludir aos possíveis matizes de que esse sentimento se pode colorir. Nem a minha amiga era o objecto de um desejo pontual nem merecia que a magoasse dizendo de menos do que me ia na alma naquele momento. Dei comigo a pensar, não naquele preciso instante mas algum tempo depois, quando deixei de a ver, que a pergunta, a verdadeira pergunta a que eu tinha de responder não tinha tanto a ver com ela mas comigo. A pergunta honesta que se me impunha era o que é que eu esperava de mim mesmo. Uma pergunta que eu, aliás, me deveria ter feito antes de lhe enviar e-mails, de lhe telefonar e arriscar um primeiro convite para jantar. Seria esse um convite inocente? Com que pretexto? Não me lembro se houve algum pretexto mas se houvesse bem poderia ser considerado infantil se eu já não estivesse nas antípodas dessa idade da inocência.
29 Queria muito voltar a vê-la, estar com ela e creio bem que não pensei em mais nada, o que ainda hoje penso foi um erro fatal de planeamento inconsequente. A verdade é que ela aceitou encontrar-se numa das pizzarias da cidade e eu já a aguardava com uma garrafa de vinho aberta saboreando um primeiro copo quando ela surgiu e eu procurei recordá-la tal como a tinha visto da primeira vez. Confesso que senti o sobressalto de quem marca um primeiro encontro e essa aflição do coração já era por si uma antecipação da felicidade, quanto a mim, naquela altura, a única forma genuína de felicidade. Se me portava como um adolescente era natural que as minhas expectativas sentimentais e não só, subissem em flecha mas condenadas a perderem-se no espaço. Tinha levado comigo um dos meus contos que escrevo ao acaso e ao sabor do vento, como quem navega no mar bonançoso das antigas recordações e pus-lhe uma dedicatória que me pareceu apropriada. Uma pizza e um conto para selar uma boa amizade. Não era bem o que eu queria dizer mas a cobardia de enfrentar a nossa diferença de idades obrigou-me a vestir a pele de cordeiro. Talvez fosse mais o que eu sentia deixar escrito o desejo de que uma pizza e um conto fossem apenas uma receita para a confecção de uma bela história de amor. Contudo, amor e amo-te são palavras que não uso ou não devo usar sob pena de me sentir um caçador furtivo ou um ladrão que pela calada da noite se apropria do que não lhe pertence. Com a agravante, no meu caso de se somar o sentimento de culpa de estar a desapropriar alguém de direitos adquiridos nessa matéria. Dito de outro modo, dei a minha palavra de amor a outrem e eu ainda me considero um homem de palavra, ou, como se verá adiante, um
30 homem de palavras, um coleccionador de sinónimos e outras equivalências. Com efeito, o amor é tão versátil, tem tantas e tão variadas formas de expressão que me deu alento para não baixar os braços. Depois, a verdade é que me senti encorajado pela sua simpatia a qual, tenho de reconhecer, foi demasiado generosa com um pobre mendigo de atenção. Foi, aliás, o que ela própria sem papas na língua me deu claramente a entender quando, como quem repreende um menino apanhado a meter um dedo no bolo antes da festa, me disse que eu estava a tomar a nuvem por Juno. Foi engraçado que ela me dissesse isto, pois, não é nada o género dela, o mais provável foi que tivesse ouvido a expressão ao advogado que a representou quando o nosso caso foi levado ao tribunal. Um tribunal, é claro, inventado à nossa medida e ao qual foi simbolicamente submetida a apreciação do nosso caso em que eu figurava, naturalmente, como réu sob a acusação do grave crime de sedução, ainda que sob a forma tentada. O meu advogado de defesa, um alter-ego que tenho sempre de prevenção para estas ocasiões formais, lançou-se num sinuoso, seria melhor dito, insinuoso, interrogatório: - A menina... posso chamá-la assim? Pode dizer-me exactamente qual foi o seu sentimento ao aceitar o convite do meu constituinte para esse jantar na Capricciosa? - Mas eu já lhe disse, fui movida por uma simpatia natural, gostei de o conhecer, ele falou-me dos seus contos, fiquei, digamos, curiosa, acho que foi isto, nada de mais...
31 - Sim senhor, nada de mais... contudo ao ir a esse encontro com um homem que ao convidá-la não o fez inocentemente, não pensou que lhe podia despertar a ideia de algo mais? - Claro que não! Em primeiro lugar trata-se de um homem que podia ser meu pai para dizer o menos, porque na realidade é bastante mais velho que o meu pai... não era nada expectável essa ideia, não acha? - A menina desculpe, mas não posso achar nada neste tribunal sob pena de estar a revelar factos que vieram ao meu conhecimento sob confidência... e depois, o que interessa para este caso, não é o que eu possa achar mas o que a menina compreendeu da situação criada, a forma como de algum modo não cortou pela raiz as veleidades amorosas do meu cliente... - Está atirar-me com culpas que não tenho...eu nada fiz que não fosse por simples e verdadeira amizade. - Acredito minha menina, mas não me diga que não notou pelas atitudes ou palavras do meu cliente que o sentimento que o animava era bem diferente e se não era, se parecia muito com outro sentimento, mais ardoroso... - Para lhe falar com franqueza, pensei sim, que ele gostava de mim de uma maneira que não era a minha, mas esperava da sua inteligência que reconhecesse essa diferença... - Todavia, a menina desprezou o risco de a inteligência falhar com frequência nestes casos e aceitou os seus reiterados convites para jantar outras vezes noutros restaurantes como está sobejamente provado nos autos? Não acha que isso contribuiu para o aumento das expectativas? Ou divertia-a ver
32 uma pessoa assim torturada por um sentimento que a menina sabia não era nem seria correspondido? Aí eu tive de interromper o causídico: alto lá, isso aí já é demais, ela já disse tudo o que havia para dizer e sou eu que tenho de fazer uma confissão a este tribunal. O meritíssimo juiz do alto do seu palanque virou-se para mim e advertiu-me que a minha confissão não teria qualquer efeito jurídico pelo que seria inútil para o bom julgamento da causa. Ainda assim, meritíssimo, aqui fica a minha inútil confissão. Na verdade eu estava apaixonado mas isso não me desviou inteiramente da razão. Mesmo que o seu sentimento fosse de correspondência, o que cheguei a admitir porque o amor é louco e essa é a parte boa da loucura, a minha parte sã sabia que nada disto teria qualquer futuro. Se eu ainda podia acreditar que o seu sorriso irradiasse mais do que simpatia e que a luz dos seus olhos me acendesse todo por dentro, o meu handicap era intransponível. Por isso, com muito custo, refiz os meus objectivos e tudo quanto planeei foram diversos momentos, no tempo e no espaço, fosse um jantar sem consequências à beira mar, uma ida ao estádio para ver um excitante jogo de futebol, ou a uma exposição para ver umas artes plásticas que nos fizessem olhar na mesma direcção, ainda que por simples instantes, na certeza de que esses momentos seriam os mais felizes da minha vida... enquanto durassem. O prazer da simples antecipação desses momentos era tudo quanto eu desejava alcançar de mim e foi isto que eu não tive a coragem de lhe responder quando ela me fez aquela fatal pergunta que desencadeou todo este processo. Não tive a coragem não é
33 exactamente, senhor juiz, a maneira mais feliz de exprimir o que eu meticulosamente planeei e urdi. De facto, eu não podia confessar-lhe uma coisa dessas. Seria impensável! Nem ela me acharia menos cobarde por confessá-lo como iria pensar que eu era um perfeito idiota e eu não teria então a menor chance de que ela aceitasse os meus reiterados convites. A única maneira, ardilosa, que podia encontrar para levar a cabo os meus planos era oferecer-lhe a minha sincera amizade mesmo que ela não acreditasse numa palavra que eu dissesse. Finalmente o meritíssimo juiz foi ao fundo da questão. O réu, agindo com premeditação e vestindo artificiosamente a pele do cordeiro, preparou um verdadeiro festival de danças com o lobo. Um lobo já sem forças para correr e apanhar o capuchinho vermelho mas ainda capaz de plantar armadilhas pelo caminho da floresta... não para a prender mas para caçar ilusões de felicidade amorosa a que o réu insiste em chamar de única e real felicidade. De qualquer modo, isto foi dito como atenuante extraordinária, atendendo a que o lobo em causa, pela sua idade já perdeu a capacidade de gozar de outra felicidade que não seja ilusória. Sacudi os ombros, não podia concordar de modo nenhum, mas de que adiantava reclamar do vício de raciocínio do meritíssimo? Limitei-me, pois, a pedir uma condenação em liberdade condicionada. O meritíssimo não compreendeu a minha ponta de ironia, e explicou-me com paciência que a liberdade condicional só era possível com o cumprimento de pelo menos metade da pena. Mas juntando a paciência à benevolência quase misericordiosa suspendeu-me a pena com a condição de não me poder aproximar dela a menos de 500 metros.
34 Claro que tive de rir, para dentro, é claro, para não ser condenado por desrespeito ao tribunal. O juiz fez exactamente o que eu tinha acabado de pedir, isto é, ser condenado a uma liberdade condicionada a não poder vê-la a menos de meio quilómetro. Felizmente não me proibiu de usar o telefone, o e-mail ou o facebook. A pena foi suspensa por dois anos o tempo em que eu não devia reincidir no meu delito que ninguém percebeu verdadeiramente qual tenha sido, pois que o crime de sedução só devia ser crime quando consumado, não passando a tentativa de mera presunção ou vaidade. O advogado da minha oponente (nunca a vi como tal) foi porém muito eloquente ao alegar que a simples tentativa de sedução lhe tinha causado danos morais, presentes e futuros, visto que a sua cliente não sofrera apenas uma grande decepção com o meu comportamento como teria de suportar para sempre o trauma de ter de controlar a sua natural simpatia para não voltar a correr o risco de ser tão mal compreendida. Assim me conformei com a minha pena. Aproveitei-a para continuar a escrever os meus contos, uma ocupação aliás propícia para ocupar o meu tempo livre de reformado. Durante esse tempo fui-lhe enviando regularmente por e-mail, os meus contos febris e demais produtos da minha imaginação cada vez mais aguda por efeito da ausência forçada das suas vistas, do álcool e do tabaco que passei a usar como fontes substitutivas da minha inspiração condicionada. Não tive qualquer resposta. A princípio esperava pelo menos uma palavra de agradecimento, um gostei, ou mesmo um por favor esqueça que eu existo. Depois fui-me habituando e comecei a enviar os meus contos para todos os amigos que eu ainda tinha no
35 facebook e na minha base de dados dos tempos idos. Um dos meus amigos achou que os devia reunir em livro e fez uma pequena edição que teve um lançamento modesto para um grupo restrito de conhecidos e amigos. Não esperava que ela aparecesse mas não havia nada que eu mais desejasse. Mesmo que os anos e os maus tratos dos últimos tempos me tivessem tornado mais alquebrado e as rugas se cruzassem pelo rosto, continuava a lembrar-me dela e do seu sorriso quando lhe ofereci o meu primeiro conto e agora, ao contrário de antes, a sua lembrança, como por magia, fazia-me mais novo. O livro de contos que tinha o título de um dos meus contos mais felizes, a Mulher Imaginária, e uma capa muito bonita e vistosa teve um sucesso muito maior do que o previsto. Afinal, quase no fim do meu percurso pela vida via-me considerado como um grande escritor, já esquecidas todas as minhas realizações profissionais deixadas para trás no tempo há mais de uma década. Continuei, assim, a escrever para ser fiel à minha defesa em tribunal muitos anos atrás: a felicidade não está no que se realiza ou se consegue mas no que se imagina e se persegue. Esperei até ao fim da minha vida voltar a encontra-la. Cada dia que passou, cada mês, cada ano, eu a lembrava mas, ao mesmo tempo, a sua imagem foi como que se dissolvendo na minha memória. Se a memória falhava a outra memória, a do coração continuava fresca como uma alface ainda coberta do orvalho da manhã. O meu desejo tinha-se tornado um cristal cravado no peito, transparente como o gelo, queimando tanto ou mais que o fogo há tanto tempo extinto. Nos meus longos passeios a pé, pelo calçadão da Ilha, meu lugar de passo de corrida em tempos antigos e agora trilho de passos
36 bem vagarosos, olhava para todas as mulheres bonitas que comigo se cruzavam e comigo trocavam o olhar. Não sei o que elas pensavam ou diziam para si mesmas quando o meu olhar era suficientemente forte para sustentar o delas. Velho atrevido, devia ser o menos que eu poderia ter ouvido. Que importava isso realmente? O esforço de me recordar dela, do seu sorriso, eram as únicas réstias de felicidade que me sobraram antes de me encontrarem sentado num dos bancos em frente ao mar sem me poder mexer nem falar e me levarem para o hospital. Não morri, foi apenas um ataque do coração, dum coração treinado para sofrer mas que não resistiu a vê-la, finalmente, passar por mim, no calçadão, eu a querer chamá-la, a voz a não me sair da garganta, a sentir-me desfalecer e a ficar assim.... Já não posso falar, mas ainda posso escrever e estou a fazê-lo, pela última vez, para lhe dizer que esse momento derradeiro foi o momento mais feliz da minha vida.
37 Um domingo feliz Acordei a pensar que este domingo tinha tudo para ser um dia feliz. Ontem uma amiga a quem eu quero muito disse-me que me telefonaria para almoçarmos juntos. Ao mesmo tempo, numa roda de bar com velhos amigos, lá para os lados de Luanda Sul, ficou combinado para a manhã seguinte um matabicho sensacional, um caldo de peixe com as sobras de sábado à noite do restaurante da Tia Guida (a Tia Guida é a mulher do meu amigo de infância, Tarique Aparício cujo pai, nunca me posso esquecer, me ensinou a nadar no velho Clube Nun’Alvares agora envergonhadamente convertido em Clube Náutico, fazendo-me repetir os movimentos da natação, não na água mas na areia, ali junto à baía onde o clube ainda está sediado mas já sem a areia... essa foi com o nome antigo). O convite não era só para aparecer e comer mas para ajudar na confecção, na preparação e cozinhado desse magnífico caldo reparador de todas as tristezas e mazelas da semana finda e regenerar o espírito para a semana a começar. Depois das nove e meia, advertiu o Tarique. Como quase invariavelmente faço aos domingos, faça sol ou cacimbo, saio de casa de calções de banho rumo ao Jango Veleiro, alugo a minha velha espreguiçadeira de madeira, sempre a mesma,
38 que prefiro às novas de verga e com almofada. Estendo a toalha, ponho o telefone na música, aplico os auriculares e ali assento arraiais até ao fim do dia. Levo sempre um livro para ler, um caderno para escrever, mas não fico todo o tempo deitado ou sentado. Com a música no bolso dou longos passeios à beira mar e agora vou até ao calçadão que começa ali mesmo ao lado e se tem prolongado progressivamente consoante as obras da ilha vão avançando. Hoje, como constatei, o calçadão ganhou as proporções de uma verdadeira promenade, pois até ao Quintal da Tia Guida andei para aí uns três quilómetros e meio. É importante saber se são três, quatro ou cinco, qualquer pessoa pode ir lá e medir, basta ver o conta-quilómetros de um carro desde a entrada da Ilha até ao Tamariz. Eu tenho uma noção da distância pelo tempo porque não me canso de andar, posso andar horas e como não tenho conta-quilómetros só posso contar com o relógio. Como os dois destinos deste domingo não incluíam necessariamente o mergulho no mar, deixei o calção de banho no carro, aluguei a espreguiçadeira no Jango Veleiro, deixei aí o meu saco com o livro, o bloco de notas e as outras pequenas coisas que levo sempre comigo e pus-me a caminho do calçadão. Apenas levei o telefone com os auriculares, escolhi um disco do Jorge Palma, pus o shuffle, e lá me pus a caminho do Quintal da Tia Guida. A partir daqui o timing era muito importante. Eram precisamente dez horas e eu não sabia a que horas a minha amiga iria fazer o prometido telefonema que eu aguardava, como hei-de dizer?... com ansiedade de adolescente. Vou voltar a explicar o meu plano para quem não tenha compreendido. Dali até ao Quintal da Guida seriam uns três ou quatro quilómetros o que significa que eu precisaria de três quartos
39 de hora ou mesmo uma hora conforme o meu passo seguisse mais ou menos a música que ia ouvindo, e estaria a certa altura a quatro quilómetros da minha viatura o que implicava, caso a minha amiga telefonasse, como eu esperava que acontecesse a qualquer momento, um provável risco de impontualidade. Para diminuir esse risco procurei que o meu passo, sempre que a música me ajudava a tanto, fosse o mais rápido e solto possível, o que realmente permitiu que eu estivesse nas cercanias do Tamariz (o Quintal da Tia Guida fico mesmo em frente) a um quarto para as onze. Foi nesse preciso momento que a música parou de repente e o som foi substituído pela campainha do telefone. Outra vantagem dos auriculares é que podemos ouvir a voz de quem nos chama perfeitamente sem a intromissão de todos os barulhos circundantes da rua. Como não vejo bem ao perto, não me apercebo facilmente dos nomes que aparecem no mostrador do telefone. Havia uma possibilidade muito forte, aliás, só deveria haver essa probabilidade, de ser a minha amiga a ligar, mas a voz, tão perceptível aos auscultadores, era masculina e dum dos meus amigos de véspera a perguntar onde é que eu estava e que já iam começar os preparativos para o magnífico caldo de peixe. Deixei o calçadão que por ora termina por ali, atravessei as faixas de rodagem e entrei no Quintal. O vinho já estava aberto e a correr, havia uns petiscos para fazer a boca, e o Tarique a dizer estás muito atrasado, devia marcar-te falta. Vamos lá é a trabalhar que quem não trabuca não manduca (o meu pai também dizia isto muitas vezes e foi grande amigo do pai do Tarique). A panela de zinco já estava ao lume com água para ferver. Gosto sempre de dizer que só cozinho em panelas de aço inoxidável e
40 tenho muito boas razões mas isso não vem agora ao caso. Todavia, por aquela panela com os seus rebordos irregulares e de tampa já um pouco ondulada deverão ter passado centenas ou milhares de sopas de peixe pelo que quem era eu para ser esquisito numa altura dessas? Na bancada ao lado estava tudo o que era preciso para fazer daquela panela o caldeirão de um druida local: cebola, tomate, gindungo, batata doce, mandioca, alguns limões pequenos, uma tigela com óleo de palma, farinha de pau torrada, algumas cabeças e postas de peixe grosso e outras de peixe seco. Enquanto a água no panelão fervia, as tarefas foram distribuídas: cortar quatro ou cinco tomates...são quatro ou cinco? São esses que aí estão, nem são quatro nem cinco, são os suficientes... a mim calhou-me a cebola, parecia uma ironia porque cortar uma cebola em pequenos pedaços faz-nos chorar mesmo que se queira manter o sorriso, ficamos com uma cara terrível de choro e de contentamento que ninguém sabe se estamos a sofrer ou a gozar. O Dudú, com todo um jeito que ninguém suspeitaria, cortou a batata doce e a mandioca em pedaços ajustados, enquanto o Canelas foi preparando o peixe deitando sal sobre as postas passando depois as suas mãos com afeição e quase carinho, apesar do seu modo de ser mais abrutalhado, pelas postas brancas do cherne que sobrou de ontem à noite para que o sal se espalhasse e ficasse bem absorvido. O Tarique olhava com curiosidade para os olhos vidrados da enorme cabeça plantada sobre a bancada. Separou depois duas postas de corvina seca, o suficiente para espevitar o gosto salgado do caldo.
41 Os tomates cortados em pedaços, a cebola picada, a batata doce e a mandioca tudo foi então submergido na água fumegante. Vá, agora mete aí já três ou quatro colheres de óleo de palma... três ou quatro Tarique, não me queres dizer o número certo? Eu não sou mulher, pá, as mulheres na cozinha é que sabem sempre tudo e não perguntam nada a ninguém... põe já quatro é melhor a mais do que a menos... Quatro homens na cozinha, a velha Tia Guida ainda deve estar a descansar da faina do restaurante que é dela, não é do Tarique, este só gosta destas brincadeiras de domingo de manhã, este puzzle de juntar coisas boas, coloridas, sumarentas e gostosas e transformá-las numa sopa milagrosa, capaz de dar vida a um morto. E logo o Tarique: qual dar vida a um morto, capaz de dar vida a um ser vivo, todas as minhas filhas foram feitas depois de um bom caldo de peixe! - Vê lá quando levantar a fervura, pá, é altura para meteres o peixe, olha aí essa cabeça, quero ver esses olhos a olhar-me mesu na mesu a boiar aí no caldo de óleo de palma... até vão sorrir... - E a farinha, mete-se também aí, na panela? - Eh pá, não percebes nada disto... nem pareces caluanda... a farinha deixa estar aí fora e deitas por cima o resto do óleo de palma que ficou aí na tijela, o óleo vai acamando e essa farinha, mais colorida e húmida, fica já pronta para pores na colher e misturar com o peixe que vais tirando do caldo. A fervura levantou e lá mergulharam a cabeça e as postas, e os restos do peixe seco cujo odor forte nos alertou as narinas despertando o apetite ancestral que teria de aguardar agora uma boa meia hora para o caldo ficar bem apurado e a rescender.
42 - Não esqueças o gindungo... não ponhas muito...é só para dar um picantezinho... para puxar a sede... Enquanto o Tarique mexia o caldo enlevado no seu dominical ritual pagão, empunhando a grande colher de pau, dei uma espreitadela na cabeça do cherne que girava no remoinho colorado do caldo e também me pareceu que os seus olhos antes baços e vidrados pareciam agora marejados de ternura, como se voltassem à vida , por voltarem a navegar... O Tarique mandou abrir uma segunda garrafa de tinto. Eu ponderei para mim mesmo que não seria muito avisado estar a beber àquela hora da manhã. Ainda esperava por um toque de telefone... Deixei de contar o tempo pelos minutos e pelas horas mas pelas salvas das rolhas das garrafas que se foram abrindo enquanto os pratos fundos de cada um de nós eram cheios de caldo, as postas eram depositadas com a mandioca e a batata doce e alguns pedaços do peixe seco para alegrar o paladar e chupar. Pusemos a mesa cá fora, os carros a passar a alguns metros de nós, pessoas a ir para um lado e para outro mas nada disso nos incomodava e vinha uma brisa fresca deste cacimbo forte que está aí para ficar mais um mês, à vontade... Depois da segunda pratada o Tarique já tinha inclinado a cabeça para trás, a brisa era como um assobio de uma cantiga para embalar meninos que voltávamos a ser. Tocou o meu telefone. Olá, então sempre fazemos o nosso almoço? A minha primeira reação foi dizer agora? Tenho estado horas à espera... mas disse, claro, estava mesmo à espera do seu telefonema, quer que a vá buscar? Com certeza, sim, mas vou precisar de uns minutos, estou a quatro quilómetros do meu carro... não, não tem importância, estou habituado a correr, e a chegar à meta com a
43 língua de fora... ora, estou a brincar... Mas não estava, nem me despedi dos meus amigos, pareceu-me que estavam todos mais para lá do que para cá, saltei a vedação atravessei as faixas de rodagem e um pouco adiante apanhei um candongueiro que passava...Luanda, Luanda.. Eu fico já aí à frente, sim, no Jango Veleiro. Fui à minha espreguiçadeira apanhar as minhas coisas e num instante estava no meu Jeep a acelerar. Dei-me então conta que estava todo transpirado e a cheirar a cozinha e a restos de peixe seco. Abri as janelas para arejar, não sei se seria o suficiente. Uma ou duas janelas? Três ou quatro? Todas e está o caso resolvido. Apanhei a minha amiga que já estava na rua à minha espera. Os beijinhos do costume, procurei não respirar para não denunciar o meu cheiro a peixe e a sei lá que mais. O que eu queria no entanto era um daqueles beijos de cortar a respiração, um beijo que seria o beijo inaugural (como diria o meu colega de letras Reis Luís, na sua Zebra que eu com tanto prazer prefaciei) que me fizesse sentir o seu gosto dentro de mim. Desviei rapidamente esse pensamento inoportuníssimo e disparei à queima roupa: Não se importa que passe por minha casa só para mudar de camisa? Ela olhou-me meio curiosa, não sei se sentiu o cheiro desagradável que eu devia exalar, nada menos adequado para um encontro especialmente com a minha idade em que já não são muitos os recursos para agradar. Não quer subir? disse eu ao chegar, aproveita para ver os quadros de que tantas vezes lhe falei... “. Muito bem, lá terá que ser e repetiu uma expressão que já lhe tinha ouvido antes que devia querer dizer que fazia alguma coisa sem o querer muito. A minha casa é um pouco parecida com os meus contos, nada diz com nada mas há um fio condutor que pode revelar o seu autor,
44 um quadro, uma máscara, pequenas esculturas de artesanato, um monte de papéis, algumas fotografias e livros, muito livros. E discos, imensos discos. Podia ficar encerrado em casa dias, meses ou anos que não teria falta de nada. Não disse que não teria falta de ninguém. Posso oferecer-lhe um gin enquanto dá uma olhada? Não esperei por uma resposta do género lá terá que ser, fui logo tirando os copos, o gelo, o gin Gordon e a água tónica. Então este é o seu famoso Don Sebas Kassule? disse sentando-se no sofá em frente do quadro que ocupa toda uma parede da sala e tem um par de olhos tintos que nos fitam de uma outra era e nos fixam como se soubessem tudo a nosso respeito, o nosso passado e o nosso destino. Desculpe, fique à vontade, veja tudo o que quiser, é uma maneira de me ficar a conhecer melhor. Dê uma vista de olhos no resto da casa. Vai ter algumas surpresas. Prometo não demorar, mas acho que vou tomar um duche muito rápido. Ela olhou-me um pouco incrédula. Aproximei-me perigosamente dela, como se apenas naquele momento tivesse ganho consciência de que pela primeira vez estávamos juntos e completamente sós. O que foi? Perguntou no seu ar um pouco mandão mas ao mesmo tempo sentindo que estava a perder uma vantagem que normalmente levava comigo. - Nada, apenas notava que cheira tão bem... - Ainda bem... - Pois, mas se estivesse transpirada ou coisa assim, poderia também tomar um banho, poderíamos até tomar um banho
45 juntos, olhe, não tenho banheira mas tenho um duche que é quase uma... - Por favor - cortou a minha amiga, não se atrase mais, já devíamos ter fome, já viu que horas são? - Ora é apenas uma hora... - Até parece que não tem relógio... já são quatro horas... - Mas eu não levei tanto tempo a ir busca-la e a chegar aqui... - Pois eu acho que adormeceu e está a sonhar... o gin deve ter-lhe caído na fraqueza... vá lá tomar banho... sozinho... Precisava realmente de um banho para me recompor . Deixei o jacto de água a correr sobre a cabeça e as costas e, pouco a pouco, fui despertando do sonho acordado em que me tinha deixado levar . Estava sozinho em casa, é claro, o caldo de peixe estava óptimo, foi uma felicidade estar novamente com amigos tão antigos e viver as emoções e experiências daquele dia. Era bom que o resto pudesse ser verdade mas devia encarar as coisas como elas eram. O que eu queria, o que desejava estava completamente fora do meu alcance, como uma estrela ou um pássaro no céu. Uma estrela, é claro, nem vale a pena pensar, mas um pássaro, um pássaro pode sempre vir e poisar perto de nós. Estendemos a mão e com um pequeno bater de asas ele volta a manter a distância. Não desisto e continuo a estender a mão e o pássaro, lindo, colorido, o pássaro dos meus desejos, não se deixa apanhar. Vem, não te vou fazer mal, não te quero numa gaiola, só quero que pouses aqui na minha mão, só te quero ver poisado em mim, como um pardal num espantalho a que só o vento dá um ar de verdadeiro, depois podes voar, livre como sempre. Enxugo-me na longa toalha, esfrego a cabeça, olho-me no espelho, com o cabelo espetado, lentamente embrulho-me na toalha,
46 dá-me outra vez um sono quase invencível, espreguiço-me e o que vejo reflectido é o espantalho que imaginava há pouco debaixo do chuveiro. Caminhei resignado para o quarto e para a minha cama, a morrer de sono, mas lá estava poisado em cima da almofada o pássaro dos meus sonhos, de olhos brilhantes, abrindo as suas asas de plumas douradas. - Não é possível! Como vieste parar aqui? - “Não te lembras? Tu é que me trouxeste. É este o teu lado da cama? Deixei cair a toalha e deitei-me ao seu lado. - Posso dizer-te um segredo? Queria ficar a dormir contigo para sempre. - Eu sei. Lá terá de ser! Esta miúda é um exagero; Diz que sem ti não sabe voar; E tu adoras voar com ela... (Fundo musical de Jorge Palma)
47 Blue Moon Dia 31 de Agosto de 2012, foi dia de eleições gerais em Angola. Do ponto de vista astral o mais importante não aconteceu durante o dia, em que votaram mais de cinco milhões de angolanos, mas o que aconteceu de noite. Com efeito, nessa noite, uma especial lua cheia foi observada no céu por muitas centenas de milhões de pessoas em vários continentes. É um fenómeno raro, o aparecimento de uma lua cheia pela segunda vez num mesmo mês. Um antigo provérbio inglês que data do século XVI (Oxford English Dictionary) diz que quando uma coisa extraordinária acontece ela só acontece uma vez numa lua azul (once in a blue moon). Conhecido, porém, que seja o calendário astral, a lua azul não é assim tão rara. Basta dizer que voltaremos a ter uma lua azul em 31 de Julho de 2015, ainda bem antes das próximas eleições gerais em Agosto de 2017 e não poderemos chamar a essas eleições uma raridade! Porque é que há uma lua azul, ou por outras palavras uma lua cheia extra? É fácil responder com uma longa demonstração matemática que parte do ciclo lunar, o tempo que leva uma lua desde que nasce e desaparece e que são pouco mais de 29 dias e meio... o que dividido por 365 dias do ano solar dá os doze meses com um
48 resto de onze dias que são afinal a diferença entre o ano lunar e o ano solar. Neste jogo entre o sol e a lua, esta aparece duas vezes no mesmo mês, como aconteceu neste Agosto a 1 e a 31, em cada dois anos e meio, mais mês menos mês, pelo que nada mais natural que à sua observação no céu, numa determinada noite, diferentes povos e pessoas possam atribuir–lhe um especial significado, religioso, sentimental, amoroso a mais das vezes. Lembram-se da célebre canção, Blue Moon, escrita por Richard Rogers & Lorenz Hart cantado por tantos intérpretes americanos desde os anos 30 do século passado mas que eu ouvi deleitado centenas de vezes entoada pela voz inesquecível do Rei Elvis há mais de meio século passado? Blue moon / You saw me standing alone Without a dream in my heart / Without a love of my own. Era lua azul, eu estava sozinho, sem um sonho no coração, sem um amor que fosse meu... Cecília devia partir nessa mesma noite mas teve de cancelar o seu voo. Olhou para o seu telefone e viu a mensagem de Octávio: Boa viagem Cecília, vou sentir a sua falta. Rapidamente digitou a mensagem de volta: Não pude partir, estou tão despontada, tive de adiar para segunda-feira. - Tenho muita pena, mas por favor não fique triste... - Quer tomar um café comigo? Se ainda não jantou podíamos comer umas sandes, em qualquer lado que esteja aberto, esta noite está tudo fechado por causa das eleições. - Vou passar a busca-la, dou um toque quando chegar à sua porta. - Ok”. As ruas de Luanda estavam desertas. Todo o mundo estava com os olhos na televisão, revendo pela enésima vez as cenas da votação
49 dos mais ilustres cidadãos do país e os judiciosos comentários dos comentadores de serviço. Olhei para cima e a lua resplandecente e dourada reinava no céu numa hora em que os terrestres estavam todos recolhidos nos seus lares de olhos fixos nessa espécie de bola de cristal universal em que se converteu, nessa noite, o aparelho de televisão. Não pôde deixar de me ocorrer que o provérbio antigo dizia que alguma coisa extraordinária só acontecia uma vez numa blue moon! Não, não era o caso das eleições, isso era um acontecimento regular, periódico... estava a pensar em Cecília e como aquela lua azul ma trouxera naquela noite como uma surpresa completamente inesperada. A fazer fé na sabedoria proverbial esta era mesmo a noite em que tudo seria possível acontecer, ela já não devia estar ali mas em pleno voo e só a lua azul a podia ter trazido de volta para mim. Era afinal como acreditar que a lua lá em cima era azul e não da cor de todas as luas cheias, embora por qualquer razão que eu não sabia explicar quanto mais a olhava mais ela me ia parecendo mais azul... Cecília já estava no passeio, de telefone colado ao ouvido, dando notícias ou algum recado. Abri-lhe a porta do carro e mais uma vez foi como se Cecília fosse só minha embora eu soubesse que isso não passava de uma pura e instantânea ilusão. Se o meu carro fosse uma nave espacial e o meu volante fosse um alavanca para voar até ao espaço sideral naquela noite rara de lua azul esse seria o destino a seguir, a minha estrada iluminada a imensa via láctea, com mais faixas luminosas do que a nova marginal. Fomos até ao Trópico, habitualmente com um lobby fervilhante mas nesta noite numa modorra que nos facilitou um recanto em que
50 nos sentamos os dois, saboreando uma tosta mista, enquanto Cecília ia desfiando o seu desapontamento com os últimos desenvolvimentos do seu trabalho, a sua partida em falso, os seus lindos olhos húmidos de lágrimas que o orgulho e determinação engoliam com a ajuda de umas breves goladas de coca cola (sem gelo e sem limão). Pensei que seria um abuso da situação passar-lhe a mão pelo ombro, procurar encostar a sua cabeça á minha, ampará-la como um pai. Não sei como reagiria. Daí a pouco falava-me do seu namorado, alguém que preenchia a sua vida vazia há muito tempo. Senti-me num dilema num dia fadado a escolhas, começado logo de manhã na assembleia de voto a marcar com um X um dos nove concorrentes às eleições gerais. Nesse momento foi tudo tão simples como depois molhar o dedo na tinta indelével e ficar com a ponta do indicador pintada de azul. Veio-me à ideia a imagem do ET, o simpático extra terrestre que tinha a ponta do dedo indicador com uma fogosa cintilação. Eu também me sentia neste momento da noite como um extra terrestre, com a ponta do dedo azul, como a lua daquela noite e que por sinal brilhava como um novo sol no céu. Porque lhe chamam então azul? Quis tocar-lhe na face triste com o dedo para afastar o que poderia ser uma lágrima incontida mas a marca azul inibiu-me, como se a pudesse manchar e alguma lágrima se transformasse num pequeno rio azul a sulcar o seu rosto bonito. Dizer-lhe que a amava iria ajudar alguma coisa nesse momento? Ela já o sabia. É certo que uma coisa é saber outra ouvir. Mas tive tanto tempo para o confessar antes, como o poderia dizer agora que o seu coração tinha aberto uma porta e não fora para mim? Alguma vez isso poderia ter acontecido?
51 Não acredito, mas isso também não era agora o mais importante. O que eu queria não era possível, tê-la toda para mim era tão provável como eu poder dirigir o meu carro para a Lua ou para qualquer outro planeta habitável no longo espaço sideral... a minha via láctea era apenas uma renovada marginal, cheia de palmeiras reluzindo na noite em direcção á ilha para onde, numa inspiração de momento fiz seguir a viatura com a velocidade que as várias faixas de rodagem e o raro trânsito daquela noite permitiam. - Sabe Cecília... antes de a levar a casa quero mostrar-lhe uma coisa, uma coisa que só muito poucas vezes se pode ver... Cecília deu-me um olhar de relance, visivelmente não estava muito satisfeita com este desvio de percurso e de conversa. Fomos até à ponta da ilha, dei a volta na rotunda do cabo e estacionei o carro mesmo junto à praia. - Afinal o que é que me quer mostrar? A sua voz reflectia alguma impaciência e estava pronta a advertir-me contra a minha impertinência. - Queria que visse o céu daqui e visse a lua azul que é o acontecimento mais raro do dia de hoje... - Pensava que o acontecimento do dia de hoje fossem as eleições, a esta hora deve estar todo o mundo de olhos nos boletins de voto que estão a ser contados... - Cecília, já viu a lua? - Estou a ver... mas não é sempre a mesma e sempre igual quando é lua cheia? - Não... na verdade, uma segunda lua cheia no mesmo mês é alguma coisa que nos faz imaginar como cada segundo de
52 desfasamento do relógio lunar em relação ao relógio solar obriga o universo a acertar as contas num momento único... como este, neste dia 31 de Agosto... - Duas luas no mesmo mês de Agosto de 2012... isso tem algum significado político?... terá sido por isso que este foi o dia escolhido para as eleições gerais?... - Pode ser, sim... duas luas cheias no mesmo mês pode significar dois astros no mesmo boletim de voto... isso também acontece pela primeira vez... - Sempre a filosofar, Octávio... - Também podem ser dois planetas em rota de colisão com o seu coração... só um o pode atingir... - Mais alguma explicação? - Não a trouxe aqui para lhe dar explicações Cecília... mas para lhe mostrar... a lua azul... estamos hoje tão preocupados com coisas terrenas e terrestres que esquecemos o celestial... - Pois para já, não vi nenhuma lua azul, vejo uma lua brilhante como um sol, um sol que não dá calor, o que é estranho, é belo, sim, mas estranho... - Deixa-me então fazer um pouco de magia? Quer ver a lua azul, mesmo, mesmo? - Sempre quero ver... - Então feche os olhos. Abra-os só quando eu disser. Promete? - Prometido. Aproximei então os meus lábios dos dela, os lábios que tanto desejei próximos dos meus e, por algum tempo, senti a sua hesitação em abrir-se, depois, como se doce e suavemente se derretessem, deixaram-me passar a alma, o coração, e o que me restava da vida.
53 Quando lhe disse que abrisse os olhos eles sorriram para mim e depois procuraram a lua que já ia mais longe no céu...estranhamente... estranhamente azul! - Repare Cecília... naquelas duas manchas, duas figuras ali que se abraçam... o nosso beijo ficou cristalizado lá em cima, vamos ficar na lua azul... para sempre! Blue moon / You knew just what I was there for /You heard me saying a prayer for / Someone I really could care for /And there suddenly appeared before me / The only one my arms could ever hold I heard somebody whisper /“please adore me” /But when I looked, that moon had turned to Gold! Lua azul /Só tu sabias por que eu estava ali/ Ouviste como eu pedi/ Poder abraçar / Alguém que pudesse amar /E quando ouvi segredar “Adora-me por favor” /E me voltei para ti / A lua mudou para Ouro! (ou azul...)
54 Uma história d’O A primeira coisa um pouco estranha que notei foi que a tratavam pela sua inicial que, por sinal, era a mesma que a minha. Nessa altura eu ainda não tinha lido a História d’O. Não por acaso foi ela quem me emprestou o livro de Pauline Reage, pseudónimo de Anne Desclos que guardou ciosamente do público a autoria desta obra que fez escândalo em Paris nos anos cinquenta e esteve proibida a menores durante quase uma década. Eu ainda estava sujeito a essa proibição pois ainda não tinha vinte e um anos quando fui morar para a mesma casa em que “O” habitava, mesmo no andar de cima. Eu estudava direito e tinha uma conduta irrepreensível, o que quer que isto queira dizer mas que incluía não sair à noite, beber até altas horas da madrugada nas habituais farras coimbrãs ou é claro, frequentar o bordel mais conhecido da cidade. Pelo contrário, passava horas em casa estudando, devorando as sebentas e reescrevendo as minhas notas das intermináveis aulas de direito civil, direito romano e por aí fora, tudo matérias que eu tinha de meter na cabeça para um dia poder actuar no foro com pleno conhecimento de causa. “O” aparecia com frequência lá por casa sempre acompanhada dos filhos pequenitos, um rapazinho mais velho e uma menina que me saltava para as cavalitas e fazia de mim o seu cavalo de guerra empunhando a minha régua que brandia como espada com um irreprimível entusiasmo infantil.
55 O marido preparava o seu doutoramento em França, vinha no comboio quando podia e trazia de Paris as novidades literárias que gostava de ler e recitar para os ouvidos deliciados de sua mulher. Foi ele que lhe trouxe o livro proibido e foi certamente a partir daí que aquele estranho nome de uma só inicial passou primeiro a ser usado na intimidade do casal antes de ser adoptado como nome próprio no seu círculo de amigos e conhecidos no qual eu fui incluído enquanto estudava em Coimbra. De longe, porém, o seu livro preferido era o Princepesinho, o Petit Prince que Gérard Philippe gravara em disco e que o marido de “O” ouvia sem se cansar horas a fio. Não me admira que o soubesse todo de cor. “O” também me falava dele e doutros escritos de Saint Exupéry, como a Citadèle que por causa dela li e reli, sublinhei , quase decorei, mas sobretudo queria transformá-lo no meu código de comportamento espiritual. Quando ela não aparecia no meu andar por alguns dias era certo estar o marido de volta a Coimbra e ser a altura de eu descansar por algum tempo do meu papel de cavalo de guerra da pequena Alexandra. Mas sentia-lhes a falta, dos seus barulhos, das suas correrias pela minha sala, mas sobretudo a falta das minhas conversas com “O”, dos seus olhos que me fitavam sempre com um misto de admiração e de incredulidade. Foi ela que um dia me chamou a atenção para aquela passagem do Petit Prince em que este conversa com a Raposa sobre o conceito de “apprivoiser”. O pequeno Príncipe quer estabelecer uma relação de amizade com a Raposa mas esta faz-se cara, olha-o de lado, manhosa, assumindo um desdém provocativo, para o avisar de que primeiro ele tem de a conquistar. Conquistar como? pergunta o Principezinho de olhos muito abertos. Ora, tens de me habituar a ti e, para que isso
56 aconteça, é preciso que, pouco a pouco, vás criando em mim a necessidade de te ver, de estar contigo... Enquanto ela me explicava isto, eu sentia-me, cada vez mais “apprivoisé” e não pude evitar uma sensação que não era suposto sentir ali, os dois sentados, a pelo menos dois metros um do outro. Fiquei agarrado ao sofá esperando que passasse e ela não se levantasse para sair ou aparecesse uma das crianças e eu de algum modo tivesse de denunciar o meu súbito e inesperado estado de excitação. Hoje estou certo de que só a faria rir, mas naquela tarde eu estava tão fora de mim que não me reconhecia, já arrependido de ter lido e relido a escandalosa História d’O que me fazia despertar à noite de sonhos em que “O” era uma só e a mesma pessoa. Não admira que a primeira vez que fui a Paris eu ia a fugir de “O” mas excitadamente procurando encontra-la ali, nos passeios pelo Bosque de Bolonha ou pelos longos boulevards que eu só conhecia de ler mas que era como se já os tivesse calcorreado toda a minha ainda curta vida. Tinha acabado o meu curso, fomos numa pequena viatura que fora o meu prémio de formatura, eu mais dois colegas, devorando kilómetros quase sem parar e chegar às imediações de Paris com os primeiros raios da aurora. Avistei ao longe a torre Eiffel que se erguia como uma erecção matinal envolvida nas roupagens coloridas do amanhecer parisiense. Paris era então para mim o mundo de que eu queria ser o descobridor mas era também a libertação do meu pensamento que queria voar livre sobre as fortalezas e castelos interiores que empenhada e engenhosamente eu tinha construído, tijolo a tijolo. Iria, afinal, voltar de Paris, tão inocente como fui. Cada um de nós é prisioneiro de si mesmo, da sua maneira de ser, o que o
57 mesmo é dizer, não é um livro, nem uma mulher que muda o nosso destino. De regresso a Coimbra assumi outras responsabilidades estudantis e matriculei-me num curso complementar de duvidosas vantagens académicas mas que ocuparam mais um ano e meio junto ao rio Mondego. Continuei a dar-me com “O” que me visitava regularmente mas eu passei a estar sempre de prevenção e alerta contra as partidas da minha própria consciência. Se o que por vezes eu pensava era o que eu achava que era o impensável passei a fazer todo o possível para que o impensável se tornasse impossível. Encontrei sem o esperar uma aliada numa jovem estudante de ciências que todos os dias passava diante da minha janela, a cabeça coberta por um lenço, de passo rápido e tão decidido quanto lhe permitia a saia justa que usava. Acabei por conhecer o horário das suas idas e vindas da faculdade pelo que não foi difícil cruzar-me com ela várias vezes e não muitas mais porque não queria que ela soubesse que o fazia de propósito e de forma premeditada e calculada. Queria ver-lhe o rosto, ao fim de algumas vezes sorri-lhe, ela retribuía, confiada na seriedade da minha batina que passei a usar fechada agora que já estava licenciado. Todas as oportunidades de estar onde ela estivesse eram procuradas meticulosamente, desde a sua passagem pelo bar da universidade para tomar um café, ou numa mesa da biblioteca para consultar algum livro de estudo, até mesmo as suas idas ao cinema sempre na companhia dos pais cuja presença eu identificava pela viatura paterna que eu localizava no estacionamento. Era pouco mas enchia os meus dias do seu pensamento afastando-me de “O” que dormia no andar de cima e ainda me custava alguns despertares dramáticos que
58 me desconsolavam apesar dos prazeres oníricos que me proporcionavam e que eu lamentava como se de pecados se tratassem, não contra Deus mas contra o amor platónico que passei a devotar àquela estudantinha de lenço na cabeça e andar apressado. Com o final próximo do ano académico vieram as festas da queima das fitas e o Baile de Gala que era o equivalente do grande baile da Cinderela, o momento propício para o príncipe encantado encontrar o seu amor. Não podia perder essa oportunidade e ela lá estava, com um vestido branco e comprido, como uma noiva de sonho, acompanhada dos pais e de amigos que a requestavam para dançar cada vez que a música soava. Como sempre, este baile era abrilhantado por vários conjuntos musicais que eram o aperitivo antes da entrada em palco da grande orquestra convidada destinada a ser o grande chamariz do Baile de Gala. Fui rodando pelo salão, sem tirar os olhos dela, vendo-a trocar de par de cada vez que os músicos faziam um pequeno intervalo ou se preparavam para se fazerem substituir por outro conjunto musical. Vi-a a dançar com vários garbosos estudantes rodopiando as suas capas envolvendo-a nos seus braços, enquanto eu esperava a minha oportunidade. Fez-se um intervalo maior na altura da chegada da grande atracção da noite, o conjunto italiano de Marino Marini que naquela altura era o maior responsável pela venda de discos em Portugal. Para a minha estratégia surtir efeito eu deveria aproximar-me imperceptivelmente da sua mesa, passando pelo meio daquelas centenas de jovens ansiosamente preparados para a largada da orquestra, procurando identificar o par disponível, enquanto eu avançava como um submarino com o rumo e objectivo bem definido sob aquela maré
59 negra de capas e batinas para emergir diante dela, secando todo o acesso aos seus olhos de quem mais quer que fosse. Uma vénia à mãe, num pedido de concessão para dançar com a sua filha, um assentimento meio envergonhado e silencioso, a orquestra irrompendo jubilosamente “Marina, Marina, Marina, te voglio piu presto sposare...” e ela agora finalmente nos meus braços dando voltas inspiradas que duraram sei lá... mais do que todo o tempo dos conjuntos anteriores. Era um salão repleto de pares enlaçados mas eu só a via a ela, os seus olhos azuis, e eu trocava Paris inteira por aquele pedaço de pista de baile que nunca mais esqueci. Quis dizer a “O” que estava doidamente apaixonado mas nunca, em muitas conversas que fomos continuando a ter fui capaz de lho dizer. Quando estava com ela todos os meus melhores intentos caiam por terra e ninguém impedia que eu continuasse a ser assaltado todas as noites por aqueles sonhos selvagens em que o meu par de dança no baile de gala nunca entrou. Até que um dia, muito perto da minha partida definitiva de Coimbra, “O” me apareceu num desvario entrando-me pela casa dentro. O seu filho, um rapazinho tão sossegado e sempre tão distraído tinha saído de casa e ele já o tinha procurado por todo o lado e não o encontrava. Estava desesperada considerando-se culpada do seu desaparecimento. Já anoitecia e era uma preocupação que eu logo me dispus a ajudar a resolver saindo de casa e correndo pelas ruas circundantes perguntando a toda a gente que ia encontrando se o tinham visto. Ao fim de uma hora de voltas incessantes encontrei o miúdo aparentemente perdido mas despreocupado. Levei-o pelo braço até à sua mãe lavada em lágrimas. Não a vi durante algum tempo. Quando me veio ver trazia consigo uma medalha, uma medalha que o filho usava ao peito e eu já tinha
60 visto muitas vezes nas suas brincadeiras lá em casa. Pediu-me que ficasse com ela. Seria uma recordação daquele momento de aflição mas seria também uma lembrança dela, pelo que eu significava para ela e ela esperava também significasse para mim. Mandei gravar na medalha uma data e a sua inicial, ela disse. Também é a sua, respondi. Assim vai lembrar-se de mim e a nossa amizade vai durar enquanto a usar... O tempo passou... não a voltei a ver, mas alguns bons anos depois, falámos ao telefone... - Continuo a trazer ao peito a sua medalha... - Não lho perdoaria nunca se não a trouxesse sempre consigo... Não voltaria a pensar em “O” se o destino não me tivesse pregado uma pequena partida. Na minha vida actual, em Luanda, um dos meus prazeres, para além de escrever histórias que me poderiam ter acontecido, é ir de casa até à Marginal renovada e glorificada junto à baía agora de águas transparentes, com peixes a saltar e as aves pernaltas a bordejar as suas margens. Gosto de ir até lá à hora do fim de tarde, ver as cores do sol poente reflectirem-se serenamente nas suas águas calmas e ouvir a música que me chega através dos auriculares do meu moderno telemóvel que é também um reservatório de todas as músicas da minha vida e que por isso são muitas. Quando regresso do meu passeio sigo encostado aos prédios iluminados, evitando os lugares mais esconsos onde nunca se sabe o que nos espera. Apesar de ser uma pessoa avisada, embalado pela música e com os meus pensamentos à solta não tomei, um dia destes, todos os
61 cuidados que a hora aconselhava e em parte do meu trajecto para casa penetrei numa zona mais sombria onde se não via vivalma mas de onde surgiram como fumo duas figuras de meliantes que num esticão me privaram dos auriculares deixando-me surdo e a flutuar num mundo de silêncio em que só havia três habitantes, os dois assaltantes e eu instintivamente resistindo a entregar a música de que fora violentamente privado, sentindo-me revistado, volteado e depois, felizmente abandonado sem mais consequências. Depois de um segundo de estupefacção e sentimento de culpa, lancei-me em perseguição de um dos marginais que levava consigo o meu telefone. Foi em vão, perdi-o de vista no primeiro cruzamento e resignei-me que é o melhor que podemos fazer em tais circunstâncias. Fui tomar o meu banho habitual depois destes meus passeios, agravado desta feita pela inesperada correria atrás do ladrão e deixei o jorro da água quente acalmar os meus sentidos. Com a toalha fui-me secando e foi só então que dei pelo que não tinha... a medalha que “O” me dera há quase cinquenta anos. Percebi que o esticão que senti na garganta não fora devido aos auriculares mas ao fio que me foi arrancado por um daqueles malandros. Será possível que eu tenha perdido a medalha depois de tanto tempo, eu me interrogava. Decidi voltar ao local do assalto munido de uma lanterna. Sem querer todos somos, afinal, um pouco supersticiosos. A perda daquela medalha significaria o fim de qualquer coisa. O fim de um mundo em que eu vivi e em que continuava a viver no meu coração ou na minha memória quando recordava “O”, a Torre Eiffel, os meus sentimentos de triunfo no baile de gala, um tempo que me mantinha vivo porque me recordava de mim mesmo e do que tinha sido eu no meu estado mais puro.
62 O local do assalto, já não era certo na minha memória dos factos mais recentes, podia ser ali ou dez ou vinte metros adiante ou lá atrás... como é irritante lembrarmos com tantos detalhes do que nos aconteceu há tanto, tanto tempo e não sermos capazes de fixar um pormenor importante do que aconteceu há instantes. Eu procurava a medalha, esperava que ela tivesse voado com o rompimento do fecho do fio no momento do esticão... se isso tivesse acontecido ela teria ido cair como uma folha que se desprendesse de uma árvore para o chão sujo daquela viela que eu imprudentemente trilhara e me deixara ao arbítrio dos gatunos que me saltaram em cima. O foco da lanterna continuava a procurar todos os buracos, entre os carros estacionados, mirando e remirando à volta dos pneus... é um desespero querermos saber onde está necessariamente uma coisa que perdemos. Neste caso ainda era pior, pois tratava-se de resolver ainda o dilema de imaginar se a medalha estaria agora no bolso do autor do esticão ou se estaria por ali jazendo à espera do foco da minha lanterna. Como sabem, ou se não sabem ficam a saber, ela está agora suspensa de um novo fio, ao meu peito, é claro. Não me esquecerei facilmente de “O” nem do dia em que ganhei a medalha. Sempre pensei, estes anos todos que a não merecia, que nada tinha feito que justificasse ela passar de um rapazinho de quem eu tanto gostava para mim que à noite sonhava com a sua mãe. Depois do assalto em Luanda, porém, fiquei com a certeza que não fui eu que escolhi a medalha mas a medalha que me escolheu a mim. Porquê, eu não sei, mas foi como se ela me chamasse quando o foco da lanterna me devolveu o “O” e pela primeira vez o visse não como o seu nome mas
63 como o meu próprio nome, como tinha sido sempre suposto ser. Obrigado “O”! Meu amor em película A primeira vez que a vi, morena, pequena e delgada, ela estava com a bata impecavelmente branca do liceu vestida, mas talvez o que mais me atraiu na sua delicada figura fosse o seu cabelo muito escuro e curto, naquela época algo muito moderno e desconcertante. Um penteado meio despenteado, o que era algo de masculino em gritante contradição com a sua feminilidade. O homem com quem ela casou, um jovem escritor de curiosidade vibrante, tão estouvanado quanto brilhante, tinha vaticinado antes de a conhecer, nas suas tiradas teatrais (mas em que ele candidamente acreditava, e porque não?) para que todo o mundo o soubesse e a história o registasse, que ele só casaria com a mulher mais bonita do mundo! Não me admira que a tivesse elegido depois de a conhecer em Lisboa nas suas andanças universitárias. Mas isso foi alguns anos depois daquele dia em que empoleirado solitariamente na torre do relógio a vi atravessar com passo decidido a larga esplanada de entrada do Liceu. Eu estava ali, absorto, gozando a minha solidão, alheio ao vaivém lá em baixo de alunos que chegavam e saíam das aulas, mas de repente aquela imagem de bata branca e cabelos negros à rapaz ocupou todo o meu ângulo visual como se fosse a protagonista de um filme que ia ali mesmo começar a ser realizado. Procurei imediatamente fazer zoom para captar as suas feições, mas a distância só permitia focar aqueles traços e a sua forma
64 de andar. Fiquei tomado da ânsia do realizador cinematográfico a quem se depara, de forma inesperada, a pessoa com as proporções perfeitas e exactas para um papel que já estava escrito ou, pelo menos esboçado, na sua mente ou no seu coração. O ângulo de visão deu, porém, para reter as duas madeixas em arco, como duas meias luas negras a emoldurar um rosto que eu adivinhava único, mas esfumado pela distância, numa desfocagem que aumentava o meu desejo de um close up. Se num primeiro instante foi apenas a bata imaculada e o cabelo preto com o seu corte avant garde que me arrebatou à minha melancólica meditação deixando-me numa agitação e alvoroço inesperados, a fascinação completa veio depois, cada vez que o meu plano de visão se foi aproximando numa sequência diária de takes inolvidáveis revelando as minúcias das suas feições, os seus olhos amendoados, o seu nariz afilado, as doces maçãs do seu rosto, os lóbulos diminutos das suas orelhas sem brincos, os seus lábios desenhados a pastel no recorte oval de um rosto trigueiro. A cada mirada minha correspondia um clique mental, eu estava feito um paparazzi avant la lettre, como se cada imagem gravada fosse o instante de um filme que eu poderia sequenciar de memória e projectar no ecrã dos meus sonhos, à noite, na solidão do meu quarto. Cada vez que estava perto dela e por acaso os nossos olhares se cruzassem, eu timidamente pestanejava, como um diafragma fotográfico que se abre e fecha em fracções de segundo mas vai gravando no rolo de película imaginária os sucessivos instantâneos desse rosto ora sonhador, ora sorridente, mas quase sempre misteriosamente ausente, como alguém que desempenha um papel, deliberadamente alheia a quem, com voracidade profissional,
65 procura captar a sua melhor imagem, o seu melhor perfil, a pureza ambígua do seu olhar. Não era só o seu ar moderno, aquele seu penteado tão simples mas tão sedutor, que a tornava diferente. Era tudo nela, o seu conjunto, a sua forma de andar despachado, a sua forma estranha de sorrir como se estivesse a sorrir não do que via mas do que pensava, a sua forma inesperadamente adulta de falar. A tudo isto acrescia a beleza do seu rosto, a sua testa alta atravessada por uma madeixa rebelde, as suas sobrancelhas carregadas mas delineadas como dois traços quase horizontais, os olhos imperscrutáveis e os lábios, nunca cerrados mas ligeiramente entreabertos, mais perto do desdém do que do beijo com que eu podia apenas sonhar. Enfim, eu vivia naqueles dias o maravilhamento de uma descoberta, que pouco mais era do que uma silhueta determinada, que poderia ter saído de um figurino de Coco Chanel, até de sapatos ténis, mas com a minha idade, que era até, por uma diferença de alguns meses, a mesma idade dela, tudo o que eu via e longamente rememorava em sessões contínuas e em câmara lenta, era mesmo o tudo que queria ver... Todavia, os filmes que nós sonhamos nem sempre se tornam o que nós queríamos inicialmente. As personagens que imaginamos e delineamos com mil cuidados, quer queiramos quer não, ganham vida própria, independência e rebelam-se contra um guião fastidioso que não lhes permita trazer à luz do dia todo o seu talento. Maria tinha apenas mais uns meses do que eu mas uma rapariga de quinze para os dezasseis anos é já uma mulher e eu não passava de um garoto que ainda usava calções porque até a minha mãe me dizia que eu ainda não tinha idade para usar as ambicionadas
66 calças compridas que me poderiam dar a ilusão de poder contracenar num filme de gente crescida. Tudo isto se tornou muito claro para mim (e muito doloroso, reconheço-o com toda a candura de que hoje sou capaz) quando um outro estudante do Liceu, do último ano, um finalista do terceiro ciclo, a aliciou para velejar, no seu snipe azul, cruzando triunfalmente as águas da baía. A vela em Luanda, naquela altura, era um desporto de elite, pouco acessível, porque um barco, mesmo um modelo tão vulgarizado como o snipe, não estava ao alcance de qualquer. Nesse tempo eu dedicava-me muito à natação que apenas exigia esforço e persistência para fazer inúmeras idas e voltas de piscina adestrando-me para as provas que o clube anualmente organizava. Treinava logo bem cedo pela manhã, às seis horas já estava na ilha a fazer piscinas ou a dar um mergulho no mar, a tempo de ir para as aulas que começavam às oito. Ao fim da tarde, depois das aulas de estudo voltava à piscina e continuava o treino, os resultados contar-se-iam depois em medalhas nas corridas de 33, 100 e 200 metros. Eu tinha muito orgulho nas minhas medalhas que fui amealhando ao longo de anos, mas tenho de admitir que elas não se comparavam, nem de perto nem de longe, como atração feminina, à sedução de cortar a brisa num barco à bolina, à claridade feroz do meio dia ou romanticamente ao brilho do poente, quando o vento amainava e nos levava no seu regaço, embalados na ternura de um berço. Eu ficava em terra a ver Maria partir com o seu marinheiro imaginando o seu olhar perdido para além das águas, a solidão de um encontro a dois no meio do oceano, a desnecessidade de palavras supérfluas, uma intimidade assegurada que nem a passagem de uma
67 ave a piar seria capaz de quebrar. E quase lamentava todas as piscinas que tivera de correr, a respiração controlada, o peito por vezes a arder numa competição homem a homem quando eu trocaria todas as medalhas por estar a vogar com aquela miúda, cruzar a baía, ir até ao Mussulo e voltar isso seria o paraíso! Em que pensaria Maria com a cabeça encostada à borda do snipe, como um jovem pensador, a olhar o mar? A verdade é que não lhe reconhecia nenhum pendor apaixonado, não tinha namorado que eu conhecesse nem as suas conversas ou preocupações quando de algum modo as exteriorizava tinham alguma coisa a ver com esses romances de cordel que faziam parte do meu imaginário. Naturalmente eu estava, em relação aos meus colegas, um pouco adiantado sentimentalmente pensando constantemente em Maria. Com a minha idade eu devia estar com os meus companheiros de turma, de fisga em punho, a caçar pássaros ou a apanhar mangas e cajus, gajajas e maçãs da Índia... sem prejuízo de não perder de vista as miúdas que no recreio eram uma audiência garantida para as proezas dos mais ginasticados no salto ao eixo e outras jogadas de algum efeito atractivo. Mas eu não estava minimamente interessado nessas beldades incipientes e guardava silenciosamente como um segredo de confissão a minha descoberta de Maria. Como se a minha salvação dependesse da atenção de um olhar seu... ainda que de longe. Iria isto funcionar com Maria? Para o saber tinha de procurar um momento dos nossos olhos se encontrarem. Não esperava ouvir nada dos seus lábios, mas esperava poder ler alguma coisa nos seus olhos. O que acontecia sempre que o tentava era que os meus olhos
68 davam com a profundidade dos seus olhos escuros e estes eram como um precipício por onde eu caía e desaparecia para sempre. Um dia dei com ela a entrar para o snipe daquele colega mais velho, as suas pernas nuas como eu não vira antes surgiram-me como se eu estivesse a descobrir o outro lado da lua. Senti então, com toda a força e impacto da realidade dura e crua, que a menina dos meus olhos era afinal uma mulher feita, em absoluto contraste com o garoto quase balbuciante que eu era afinal. A minha simples comparação com aquele ágil passarão do 7º ano, todo elegante no seu equipamento de velejador experimentado era impiedosa e avassaladora. Voltei ao meu hábito de paparazzi imaginário, procurando colher instantâneos quiméricos do seu rosto, os seus olhos fechados e o seu narizinho delicado aspirando a brisa da baía, no seu regresso ao cais do clube náutico quando a tarde desperdiçava os últimos raios de sol sobre aquelas águas tranquilas que o snipe cortava em ondulações suaves coloridas de roxo, violeta, dourado, azul, esverdeado... Confesso que não tive ciúmes de Maria. Pergunto-me hoje se já a amava, porque o amor e o ciúme são inseparáveis, sobretudo quando o nosso amor está num barco que não é nosso e não é nossa a mão que segura o leme. Ou, talvez não sentisse ciúmes, porque tudo se passava na minha cabeça como se estivéssemos em mundos diferentes. Era o que parecia, quando ela saltava do barco, dava duas risadas sonoras e passava por mim sem dar sequer pela minha presença. Saberia ela que eu andava atrás dela, a toda a hora, com a minha máquina fotográfica mental, a compilar todas as expressões do seu rosto, o seu perfil, de um lado e doutro, os anzóis das suas
69 mechas sobre as orelhas, os seus olhos abertos, fechados ou semicerrados como se a emergir de alguma fantasia, os seus lábios fechados e desdenhosos ou entreabertos como se fosse a beijar ? Todos os sábados lá estava eu no clube náutico, prejudicando mais um treino de natação, só para a ver chegar, entrar no barco e ir à vela com aquele pretensioso gavião dos mares (nota-se que nesse momento já eu estava mais do que invejoso, irritado com ele). Consegui que me dessem um barquito à vela, destinado a aprendizagem e que só num acesso de louca humildade me meti, e fui-lhes no encalço, ou melhor dito, na esteira. Só para ter o prazer de a surpreender (e não apenas imaginar) e o prazer de ser visto por ela no meio da baía. Pensava, na minha total ignorância de vela, que seria fácil manobrar aquela casquinha de noz, uma coisa ao meu alcance, digamos, depois de ter visto tantos velejadores a navegar por ali. A verdade é que tudo parecia bem fácil, apanhando o vento de feição, navegando ao largo, dando um pouco mais de vela ou caçando-a para adquirir mais velocidade, eu ia como dizia o poeta, por cima dos meus pensamentos... rumo ao cabo da ilha, avistando já, entre os barcos à minha frente aquele em que Maria seguia, sem dizer palavra, amorosamente silenciosa, perguntando ao vento e ao mar por quanto tempo mais tudo continuaria a ser assim... Vi finalmente os seus olhos a baterem nos meus, abertos num sorriso sem qualquer surpresa como se esperasse por mim, mas a minha felicidade durou um segundo e eu fiquei petrificado, agarrado ao leme, sem saber como mudar de rumo para evitar abalroar o snipe que vinha à bolina e estava quase quase à minha frente. Vi o ar aterrado de Maria e ouvi os berros do seu intemerato marinheiro
70 gritando ordens para eu me afastar... o que eu tentei e naturalmente não consegui pois não sabia velejar... mudar maquinalmente de rumo teve como natural, directa e imediata consequência a mudança de posição súbita e drástica da retranca vindo ao encontro da minha cabeça, uma colisão inevitável que para além da pancada me deixou na mais frustrante atrapalhação e humilhação. Já o snipe triunfantemente se afastava e ia longe mas ainda deu para ver que Maria estava voltada para trás, os seus olhos seriamente preocupados com o que me estava a suceder. No outro dia, no pátio do liceu, ela veio até mim, com os livros debaixo do braço – como quase sempre a via e me esqueci de dizer - perguntando-me com interesse e carinho se tudo tinha ficado bem comigo, se me tinha magoado muito, enquanto olhava para a minha cabeça à espera de ver o hematoma ou o galo que a maldita retranca disparada podia ter-me causado. Estendeu o braço que não segurava os livros e tocou-me na testa, na parte em que ainda se notavam vestígios da contusão. O meu coração soltou-se como um cavalo indomável num tropel pela pradaria da minha alma ingénua e desta vez os seus olhos receberam o meu olhar sem o atirar pelo precipício do seu negrume misterioso e sem fim. Acreditei, então, que estava irremediavelmente apaixonado. Se estar apaixonado era aquilo que eu imaginava, eu estava-o realmente porque em primeiro lugar, só pensava nela, segundo, porque só queria estar onde ela estivesse, mesmo que isso fosse capaz de me conduzir a um naufrágio e, terceiro, porque todas as outras miúdas do liceu me apareciam insignificantes ao seu lado e se estivessem, pouco a pouco, tornando até invisíveis para mim!
71 Passamos assim, a uma segunda fase do meu enamoramento. Já não a perseguia apenas com o olhar, agora queria falar-lhe e ouvi-la. Dei por mim a ter coragem de lhe perguntar que livros é que levava sempre com ela, se gostava assim tanto de ler... - É a coisa que mais gosto na vida... na verdade cada livro é uma vida que eu posso viver também... de certa maneira, compreendes, posso ter tantas vidas quanto os livros que leio... e tu? Não gostas de ler? - Muito, gosto mesmo muito de ler, mas agora, sabes, o que eu queria mesmo era escrever um livro, sobre ti... e sobre mim, se o lesses poderias ter também uma vida comigo... - Seria uma história de amor? - Seria a história de uma mulher casada com um homem mais velho que conhece um rapaz, muito mais novo do que ela, sem quaisquer expectativas, mas que lhe promete uma aventura surpreendente... - Qual? - Se eu te dissesse perdias todo o interesse pelo escritor e fugias com esse aventureiro imaginário... - Mas então o rapaz não serias tu? - A minha ideia não é escrever só uma história mas muitas... em que eu posso ser diferente, umas vezes mais novo, outras muito mais velho que tu... assim, poderás ter várias vidas... sempre comigo.... Maria olhou-me, como se me estivesse a ver pela primeira vez, e sorriu... aquele seu sorriso que eu não sabia bem porquê...mas eu podia ler a incredulidade que lhe correu pelo pensamento pela maneira como a vi pestanejar... tal como duas borboletas que
72 bateram assas e provocaram um cataclismo no mais profundo de mim. Maria não ficou muito mais tempo em Luanda. O seu pai que era da marinha e tinha funções importantes na administração do porto de Luanda, foi transferido para Lisboa. Maria foi com ele num barco muito maior que o barco à vela que eu vi largar e depois fiquei a olhar da minha varanda até se esfumar no oceano. Passei eu também para o terceiro ciclo, tornei-me um daqueles finalistas muito orgulhosos de terem chegado ao último patamar de evolução educativa local na época. A falta de Maria acabou por ser preenchida por outra figura feminina para as minhas histórias de amor. Contudo, o meu problema de “casting” permanecia porque cada vez que procurava romanticamente descrever alguém mesmo pensando noutra, era Maria que me aparecia na câmara escura do meu pensamento. Naquele tempo escreviam-se cartas mas de Maria nunca mais soube nada, nem uma letra. As cartas que eu escrevi eram montes de folhas em branco que começavam e terminavam com o seu nome de alto abaixo. Não eram cartas para enviar e que aliás não poderia enviar porque nunca tive uma direcção para onde as pudesse mandar. O que podia fazer era escrever... histórias de amor, se eu me tornasse um grande escritor ela poderia reconhecer o nome do autor e ler-me. Era, digamos, a forma que eu encontrei para um encontro prometido mas sempre adiado. Era uma promessa que me custava muito nunca ter cumprido, mas esforçava-me na escrita, idealizando todas as cenas de amor explícito e subentendido que podia imaginar. Mas era sempre a visão do garoto que descobriu do alto da sua torre uma jovem decidida de bata e ténis, de cabelo à rapaz e que o fez sonhar com um primeiro beijo que nunca aconteceu. Era triste mas
73 era um pouco divertido também porque enquanto escrevia era como se estivesse a viver com ela todas as cenas que eu pura e simplesmente inventava. Muitos anos depois, sentei-me na poltrona de um cinema para ver um filme português apresentado como um filme que marcaria uma nova era cinematográfica em Portugal. O nome da protagonista chamou-me a atenção e encheu-me de ansiosa curiosidade. Quando as luzes se apagaram as imagens foram-se projectando no ecrã como antes na minha imaginação. Os mesmos olhos sonhadores, o cabelo à rapaz, ainda mais à rapaz, as pontas reviradas em meia lua eram agora duas patilhas... mas essa aparente masculinidade foi pouco a pouco desmentida a cada peça de roupa que dela se ia desprendendo. Se das pernas de Maria eu me lembrava muito bem, nem nos meus mais loucos momentos de ousadia (e tive alguns) eu fora capaz de aspirar a ver as maminhas de Maria, agora assim, para todo o mundo ver... lindas de morrer! O pior estava para vir, com cenas de amor capazes de pôr labaredas naquela fita ainda a preto e branco. Abandonei o cinema com a sensação de que tivera um encontro clandestino com Maria. Alguém escrevera a minha história com Maria e ela, como o havia dito muito tempo antes, vivia uma vida em cada história que lia. Prometi a mim mesmo que tinha sido a última vez que a veria. Prometi, sim, mas não fui capaz de cumprir. Aliás, prometia todos os dias e todos os dias seguintes lá estava eu afundado na poltrona do cinema para viver com Maria uma tórrida história de amor.
74 Papagaio falador Por regra saio de casa ao domingo... logo pela manhã vou até à Alvalade tomar o meu café acompanhado de um pastel de nata, mais um pretexto para ver pessoas que não encontro no dia a dia, para dois dedos de conversa e comprar os jornais de fim de semana do que pela necessidade de me alimentar. É também a maneira de eu despertar da minha modorra solitária e me afastar por algum tempo do meu bloco de notas, da caneta e das minhas histórias semanais... Hoje, porém, acordei com a sensação de que não tinha nada nem ninguém que quisesse ver para além da minha xícara de café e como que para espalhar algum desânimo que me ia na alma, fui à sala, liguei a telefonia, sempre ouviria em fundo algumas vozes, enquanto tomava um duche lavando as minhas mágoas. Fiz cuidadosamente a barba para ficar com a pele macia como se tivesse algum encontro amoroso em perspectiva o que não condizia com a minha resolução de passar o domingo fechado em casa e dentro de mim mesmo. A única concessão ao mundo exterior seria mesmo a música e as notícias e anúncios que a rádio ia mandando para o ar e me vinham da sala pelo corredor, chegando perceptivelmente aos meus ouvidos a escorrer água e sabão debaixo do chuveiro. Havia, é verdade, outra concessão à vida lá fora e era a minha grande varanda de estilo colonial toda envidraçada e por onde entrava a claridade matutina para a minha sala e de onde se avistavam os telhados das casas de piso térreo circundantes e, mais para além, os arranha céus
75 com os seus letreiros pintados. Costumo dizer que da minha varanda tenho vista para a felicidade porque é perfeitamente distinguível num desses prédios mais altos, numa fachada toda colorida com fundo cor-de-rosa, um reclame a uma companhia de seguros em que a palavra mais saliente e visível é a palavra felicidade. Na rádio ouvia a voz simpática da apresentadora matinal que no meio de algumas notícias e dicas para uma manhã divertida –a primeira era continuar ligado a ela – anunciava o desaparecimento de um papagaio falador, de plumagem cinzenta e penas vermelhas na cauda, como todos os papagaios que vemos em Angola... a sua dona estava inconsolável e prometia alvíssaras a quem lhe desse notícias do seu paradeiro. Não pude deixar de sorrir... isto só mesmo aqui em Luanda...! Depois do banho e vestido já com o meu equipamento de trabalho, uma camisa e umas calças estampadas com motivos tradicionais e os velhos ténis nos pés a servirem de chinelas, passei à cozinha dispondo-me lentamente a preparar um matabicho que me animasse, umas torradas acompanhadas de uma compota e um café. A cozinha, tal como a sala, dá directamente para a varanda. Abri a janela para entrar um pouco de ar e fui directo com o café na mão para a mesa da sala onde passo a maior parte do meu tempo ao computador, lendo e escrevendo sem parar, nem para comer. A minha sala é o meu mundo, porque é grande, tem imensa luz, quadros lindos e uma prateleira branca ocupando toda uma das paredes até ao tecto, cheia de livros, fotografias, bagatelas coloridas e outras recordações. A mesa, de tampo de vidro transparente como cristal parece flutuar ao lado das prateleiras e, embora originariamente destinada às refeições, nunca serviu de facto para esse efeito mas como mesa de trabalho, com uma única cadeira de
76 cabedal branco no topo do lado que dá para a varanda onde estão a completar o quadro algumas plantas de raízes aquáticas e um bambu. Embora a sala seja muito cómoda com o seu espaçoso sofá de cor creme muito clara em que uma das partes se prolonga em chaise longue e mais duas cadeiras de bom estilo, de cor a condizer, com as costas em palhinha e assento almofadado, quando estou simplesmente a ler ou a ver televisão prefiro sentar-me no tapete kilim de tons avermelhados, anichado no ângulo formado entre a borda do sofá e o início da chaise longue. A mesa redonda ao meio, à altura do sofá, igualmente transparente e a prateleira baixa ao longo de toda a parede frontal onde está a televisão e outra aparelhagem, os discos mais umas plantas da felicidade a crescer ao longo do meu célebre quadro de Dom Sebas Kassule intitulado pelo artista recordações da mocidade, dão o toque desejado à sala onde vivo. Gostaria de lhes descrever o meu quarto que é tão grande como a sala mas fica para outra vez. Apesar de ser o centro da minha intimidade, sempre vou para lá muito tarde, depois de ler, escrever, ou ver mais um filme na televisão lá na sala onde estou agora a saborear a minha última torrada numa mão e a caneta na outra com os dedos meios besuntados da manteiga e da compota com que barrei o pão. Ainda estava a torrada a fazer a sua viagem do prato até à minha boca quando o papagaio aterrou no vão da janela da minha varanda, mesmo à minha frente. Fiquei instantaneamente imobilizado com a torrada na mão a meio caminho enquanto fixava o papagaio a inclinar a cabeça, ora para um lado ora para outro, como se estivesse a fazer um reconhecimento preliminar do terreno que pisava. Notei que ficou aparentemente curioso olhando os dois
77 quadros gémeos do Macieira no topo da varanda banhado pelo sol da manhã que lhe ressaltava o colorido dos rostos desenhados no estilo do famoso pintor da nossa praça e provavelmente particularmente intrigado com a figura de um pássaro verde espantado que aparece em cada uma das telas como se uma fosse um espelho da outra. Ultrapassado o primeiro momento de surpresa e revelação, tanto meu como certamente do papagaio, vi como este se aventurou num curto voo para vir poisar dentro da minha sala, fazendo poleiro nas costas de uma das minhas preciosas cadeiras de palhinha. Fiquei momentaneamente arrepelado pois já tive um papagaio em tempos no meu gabinete de trabalho e sei a porcaria que uma ave destas é capaz de fazer. Logo eu que quando vejo uma migalha no chão brilhante da minha sala ou de qualquer outra divisão logo me abaixo para apanhar e limpar para que tudo esteja sempre a meu gosto! Lá me decidi, porém, a entabular alguma conversa com ele, pois, para todos os efeitos, ainda que tivesse entrado sem ser convidado, mesmo inesperado, era agora meu hóspede. Por isso comecei por lhe perguntar de modo meio dubitativo: Então meu amigo, donde vens tu? ao que prontamente, numa voz rouquenha me retorquiu: Rosália, Rosália, dá cá a mão. Era só o que me faltava, a esta hora em que preciso tanto de inspiração para começar a escrever o meu conto da semana, vem-me esta ave falante invadir a minha privacidade, ainda por cima com ares de galanteador de bairro, a pedir-me mão, a mim? Mas eu sou lá a Rosália, ou quê? - T’sabes queu te amo... t’sabes queu te amo... E ele a dar-lhe !
78 - Oh Jacó, dá cá o pé, vá lá, dá cá o pé... de onde é que vieste pá? Quem é essa Rosália? - É boa! É boa! Ah ah ah ah... Ah! Mas ele é melhor do que a encomenda! Quem sabe se ele me vai ajudar a ter finalmente alguma ideia para o meu conto de hoje... - Ouve lá oh Jacó, quem é a tua dona? - Dá cá a mão Rosália, dá cá a mão... - Chega pá! Eu tenho que fazer, tenho que escrever... Na verdade eu não o devia ter assustado com a minha interrupção brusca... por outro lado esta conversa além de não estar a levar a lado nenhum não abonava nada os meus sentimentos de hospitalidade por muito que eu não esperasse semelhante visita. - Estás a olhar para a minha torrada? Queres comer, tomar alguma coisa? Estendi-lhe um pouco de pão que ele logo quis bicar, o que me assustou agora a mim, fazendo-me deixar cair o pedacito de torrada no chão. - Olha o que estás a fazer... - É boa, é boa, ah ah ah aha... Levantei-me e fui até ao armário da cozinha buscar uma caixa de cereais meia vazia que agitei para o interessar com aquela musicata improvisada... . O meu inverosímil companheiro daquela manhã teria arrebitado as orelhas se as tivesse mas alteou a cabeça e olhou para aquela caixa de ressonância com ar bisbilhoteiro (e talvez guloso,
79 aquele papagaio pareceu-me muito mimado e habituado a fazer todas as suas vontades). Ora vamos lá a ver se gostas fui dizendo enquanto espalhei os cereais por um pequeno prato de sobremesa que coloquei no chão ao lado de uma caneca com água para ele molhar o bico porque isto de engolir cereais a seco não é uma boa receita, mesmo para um papagaio... É boa, é boa, ah ah ah ... e saltou para o chão começando a rodear o improvisado matabicho (salvo seja é claro, não me passaria nem pela ideia mas ocorreu-me agora que esta designação aplicável aquela ave emplumada poderia ter um segundo sentido...). O safado do pássaro, não me dizia mais nada, mas o que é que eu também esperava que ele me dissesse, por acaso estaria eu na expectativa de que ele me entendesse e ficássemos para ali os dois a filosofar e, quem sabe, vir a dar-me até alguma pista para a história que tenho de escrever? Lancei um olhar desesperado ao bloco de notas aberto e quase em branco... não consegui escrever mais do que uma linha...o papagaio veio poisar inesperadamente no vão da minha janela... mas foi nesse instante que ao reler esta frase inicial com que esperava prender a atenção do meu leitor que me dei conta de que a palavra chave não era papagaio mas inesperadamente. Claro, o meu conto seria sobre o inesperado, a palavra que eu mais gosto, porque todas as outras anunciam o que já sabemos e tudo o que sabemos já perdeu o gosto... ou não tem o mesmo gosto. Vejam o caso dos cereais, estavam para ali no armário, longe do meu interesse e de repente foram a novidade festiva para aquele papagaio falador que há minutos está ali a deglutir com satisfação de verdadeiro gourmet e sem dizer uma única palavra.
80 T’sabes queu te amo... t’sabes queu te amo... pronunciou ele na sua fala maliciosa só para me contradizer. Deve estar-se a acabar a novidade agora já fala, vamos a ver se me pede mais. - Dá cá a mão Rosália, dá cá a mão Rosália. Mas onde é que está essa Rosália, isso também eu queria saber... isso seria algo inesperado... o que se deseja no mais secreto de nós, que não confessamos nem a nós mesmos e que nos acontece quando menos se espera. Isso é o inesperado. Tem de ser alguma coisa de importante, de realmente interessante senão, quando acontece nem damos conta, mesmo que não estivéssemos a contar com ela. Como aquele papagaio vindo não sei de onde mas que alterou os meus planos de domingo sossegado, sorvendo café escrevendo mais uma história romântica com alguém que nem me conhece mas que no meu devaneio literário dou forma, dou perfume, dou gestos, dou olhar, a quem tiro a roupa a quem hipnotizo, electrizo e depois se esfuma com as últimas cores do dia que morrerá pouco a pouco. Então ponho a minha música e vou dar um último passeio até à marginal para suavemente morrer de saudades. Vida de escritor... pensavam que era fácil? Mas, nem tudo tem de ser fantasia... um homem é um homem e um bicho é um bicho... lembro-me de ouvir isto tantas vezes quando era criança e tinha de enfrentar uma realidade dura, talvez cedo demais... Já tinha ouvido o número telefónico da estação de rádio centenas de vezes...ligue e dê a sua opinião, convidava a locutora com todo o charme vibrante e provocador de que era capaz.... busquei na memória, não, no subconsciente mesmo, pesquei os números, um a um e fui clicando no teclado virtual do meu terminal.... aqui rádio
81 Luanda, sim, por favor, um papagaio falador, de plumagem cinzenta e rabo de penas vermelhas? Deixe a sua morada por favor, voltaremos a contactar!. Pronto, estava feito. O inesperado. Agora só me restava esperar por ele. Melhor dito, por ela! A campainha da porta retiniu com insistência que transmitia ansiedade, desespero? Não importa, corri a abrir, o papagaio estava indiferente às estridências da campainha. Pudera! Tinha a barriga cheia! Ela entrou como um furação, precipitou-se na sala e correu de braços estendidos para o animal voador que naquele preciso momento estava gozando a moleza de uma sesta bem merecida. - Fidel, meu querido Fidel... meu Deus ia morrendo de ansiedade... - Fidel, então é esse o nome dele ahn? Não me disse nada, chegou aqui sem apresentações mas falou-me muito de si, Rosália... - Dá cá a mão Rosália, dá cá a mão ... - Dou sim meu amor, dou-te tudo... - Estou com um pouco de ciúmes desse seu papagaio, sabe, nem notou que eu existo, sabe por acaso que fui eu quem o encontrou... e tem direito a alvíssaras? E que está na minha casa? Rosália, só naquele momento caiu em si, olhou à sua volta, a sala, a varanda colonial o longo corredor que se estendia para lá do hall de entrada por onde entrara desvairada... Oh, desculpe, desculpe muito, mesmo, eu devo-lhe tudo, este dia ia ser o mais triste da minha vida e o senhor mudou tudo...
82 - Ora eu não fiz nada, limitei-me a receber aqui o seu papagaio, o Fidel, quem diria, não tem barbas mas é muito simpático, não admira, a dona não é menos... - Oh muito obrigada, não sei como lhe agradecer, o Fidel é muito bonzinho mas sempre gostou de me pregar partidas, mas nunca uma assim, como a de hoje... invadir a sua casa... Rosália foi olhando a sala, o meus livros, os meus discos, as minhas pinturas nas paredes e não teve como evitar uma exclamação de admiração: que casinha mais linda o senhor tem... não parece que estou em Luanda... parece... Agora que a Rosália estava ali, o que me parecia é que nada à minha volta existia...ou então, por um instante pensei que era ela que não existia e era eu que estava a sonhar... não seria a primeira vez! Mas fui despertado pela voz rouca do papagaio : - Dá cá a mão Rosália, dá cá a mão... - Cala-te Fidel... não me quer mostrar o resto da casa? - Mas é claro, eu mostro-lhe tudo! Fomos até ao quarto. Ela assomou à porta e foi dizendo: Não acredito...! Aproveitei para fechar cuidadosamente a porta atrás de mim, não fosse o Fidel querer entrar também. Do lado de fora ainda o ouvi mais de uma vez com aquela sua voz nasalada e roufenha: - É boa, é boa, ah ah ah ah... Dentro do quarto dei comigo a imitá-lo: - T’sabes queu te amo... t’sabes queu te amo....
83 Luanda o primeiro dia Há quase uma semana que a nau de Paulo Dias navegava ao longo daquela língua de areia que o impedia de encostar a terra firme. Com o seu binóculo assestado descobria finalmente um morro mesmo à sua frente que lhe parecia propício para aí estabelecer um fortim já que vinha com o propósito de lançar as bases de uma feitoria à semelhança de outras que desde as primeiras ilhas no Atlântico os portugueses vinham fundando pela costa ocidental africana. Ao aproximar-se, deu-se conta de uma segunda língua de areia, mais pequena, que formava uma formosa baía e um porto de abrigo que lhe parecia seguro mas cuja entrada o obrigaria a uma manobra mais complicada contornando o cabo em águas muito baixas e agitadas. Paulo Dias assestou o óculo para aquela língua de areia branca pontilhada por inúmeras palhotas podendo aperceber-se que era densamente povoada, provavelmente por pescadores pois eram visíveis muitas pequenas embarcações arribadas na praia. Paulo Dias conferenciou com o seu imediato e mais alguns membros mais qualificados da sua tripulação e tomou a decisão de ancorar ali e enviar um primeiro bote com pessoal de confiança e o intérprete que tinham trazido do reino de N’gola para travar um primeiro contacto com aquela gente, saber se era gente hospitaleira e ajustar uma audiência do Capitão com o chefe daquela ilha. “E tu vais também, Octávio, como cronista desta viagem vais ter a oportunidade de escrever a primeira página da história desta terra...”
84 - Mais velho, mais velho, conta então a história da chegada dos tugas... há tanto tempo, 437 anos... A miudagem na praia cercara o velho que todas as manhãs vinha até ali, na ponta da ilha, gozar os seus últimos raios de sol, olhando o mar com o rosto franzido e os olhos azulados por tantas cataratas que já só o deixavam perceber vagamente as cores da areia, da espuma da rebentação e do mar platinado e sem fim à sua frente. O barulho das ondas despertava lágrimas e demasiadas saudades no velho mas logo o seu rosto se animava com um largo sorriso ao ouvir os rapazes em alvoroço fazendo perguntas à sua memória de ancião. Como eles o levavam de volta aqueles dias felizes em que de prancha debaixo do braço vinha para ali, para aquele mesmo local, mostrar as suas habilidades enfrentando e deslizando nas ondas para admiração das moças mais lindas das redondezas. A vida não fora fácil para ele, tivera de deixar a sua ilha mas nunca esquecera o mar nem os seus primeiros amores vividos entre as carícias do mar e da mulher que todos os dias vinha até ali só para a recordar. - A história, queremos ouvir a história de Luanda... - Foi sim, foi há muito tempo... o primeiro branco que pôs o pé nesta areia tinha o mesmo nome que eu... o meu avô foi que me contou a história que ele tinha ouvido do avô dele e assim até esse ano da chegada dos portugueses... - Então, não foi mesmo o Paulo Dias o primeiro a chegar aqui em Luanda? - Ele era o Capitão, mandou o seu pessoal para ver como era, se podia desembarcar e ser recebido pelo Soba... mas o homem que pisou primeiro a praia aí mesmo foi esse Octávio que era o
85 escritor de tudo o que se passava no barco, registava as terras onde chegavam, as pessoas que encontravam... - Afinal, foi assim? Não foi um chefe tuga que chegou primeiro? Mas conta então como ele foi recebido como é que tudo aconteceu? - Bom, meu avô me contou que quando o barquito a remos se aproximava da praia, toda a gente começou a falar, a apontar, uns corriam a avisar os mais velhos, aquele barco era diferente das nossas canoas... e aquela gente era muito diferente, não vestia panos... O velho estava feliz, com os miúdos à sua volta, ele podia contar o que quisesse, sempre tivera muita imaginação e nada lhe garantia que a sua história fosse exactamente como o avô lhe transmitira e antes deste várias gerações de avós até àquele dia, há 437 anos... Na sua ansiedade de pisar terra desconhecida até então, Octávio nem esperou que o barco aproasse na areia fina da praia e saltou para a água ficando todo molhado até à cintura e com as botas a cuspir água e areia ao dar os primeiros passos em direcção àquela gente que o recebeu, por essa razão, com grandes risadas de troça mas sem maldade, a que Octávio respondeu com um sorriso amarelo que se foi abrindo perante o acolhimento sonoro de que foi alvo devido à sua precipitação. Coube ao intérprete dizer as primeiras palavras, fazer as primeiras perguntas que os outros apenas podiam seguir pelas expressões estampadas nos rostos dos circunstantes, ora de surpresa, ora de curiosidade, ora de alguma preocupação e até receio... e pelos gestos das mãos que melhor falavam por eles. Uns apontaram para as canoas e para as redes dependuradas, um outro
86 mostrou um pequeno búzio que tirou do pano em que estava cingido apontando com o dedo para a orla do mar, outro finalmente apontou para o interior da ilha, e todos os olhos dos recém-chegados procuraram vislumbrar um cercado de palhotas que devia albergar o paço do chefe local. O intérprete explicou à comitiva que aquela era uma terra de pescadores e que também ali se recolhia o zimbo que funcionava como meio de troca com a outra gente do outro lado da baía... o Soba era um homem muito importante e muito respeitado em todas as terras ali à volta e vivia no seu palácio no meio da ilha. A comitiva escutou e fez sinal de avançar em direcção ao paço do chefe da ilha pelo que aquela pequena multidão de homens, mulheres e crianças abriu naturalmente passagem para aquela gente estranha entre os murmúrios das mulheres, risos das crianças e comentários desconfiados dos mais velhos que, por natureza não apreciam muito as novidades que lhes venham quebrar a rotina. O imediato de Paulo Dias assumiu a responsabilidade de se dirigir ao mordomo do Soba, para com a ajuda do intérprete entregar uma nota do comandante da nau, dirigida ao chefe da ilha, solicitando a sua autorização para ali se manter ancorado e visitar a ilha, travar contacto com a população, trazer alguns presentes e discutir formas de comércio com as gentes daquela terra. Logo que uma audiência lhe fosse concedida ele viria prestar as suas homenagens à autoridade local. Octávio aproveitou para conhecer a ilha e, como era jovem e bem parecido, notou com agrado, o sorriso luminoso de uma jovem que vira logo à chegada, primeiro troçando do seu desastrado desembarque e agora o fixava com um ar de divertida curiosidade.
87 A jovem envolta num pano colorido que a cingia toda mas deixava entrever um corpo esbelto, um pescoço esguio e adivinhar uns peitos ainda pequeninos, impressionara de tal modo o cronista que dela se aproximou tentando com gestos e sorrisos ganhar a sua confiança e amizade. Colocou o seu braço ao lado do dela para que se visse o contraste das duas cores e ambos olhavam maravilhados para aquela combinação que tanto podia significar diferença, separação, como harmonia, sintonia, conjunção. Octávio hesitava, não sabia o que dizer e o que dissesse, por palavras ela não o entenderia. O intérprete naquele momento também não seria de qualquer valor, pois, mais do que palavras, entendimento, Octávio queria gozar o deslumbramento que o arrebatava e que o fazia já amar aquela terra que com ela se identificava. A moça voltou a sorrir, menos acanhada que Octávio, o que não admira pois que era ele o forasteiro e ela a dona da terra, e pegou-lhe na mão, convidando-o a acompanhá-la. Octávio já observara que dar a mão não tinha o mesmo significado de intimidade que ele estava habituado a considerar, por ali dar a mão era apenas um sinal de companhia, de solicitude. Retribuindo a delicadeza da jovem, Octávio deu-lhe a mão e seguiu-a pela ilha fora, enquanto na paliçada do Soba os enviados de Paulo Dias, com a ajuda do intérprete se desdobravam em explicações, narrativas de viagens pelo mar tenebroso e descrições do reino de Portugal, uma espécie de praia como esta, um pouco mais larga, lá longe onde, não, não podiam ir naquelas canoas... A bela jovem que tão logo conquistara o coração do cronista de Paulo Dias foi-lhe mostrando uma a uma as maravilhas daquela ilha
88 encantada. Naquele tempo, explicava o velho na praia, a ilha era toda coberta de palmeiras, havia muito coco, era comida e bebida que nunca faltava, as casas eram cobertas das palmas das palmeiras, havia muita sombra, as pessoas trabalhavam na pesca ou na apanha das conchas e búzios para o cofre do Soba, enquanto as mulheres tratavam de bordar os seus panos, cuidavam das redes, cozinhavam os mufetes que deixavam todos saciados e ainda havia na bilha um bom marufo para ajudar a passar o tempo no fim do dia. - Então a ilha era um paraíso mesmo? - A ilha sempre foi o paraíso... ainda hoje, já não há palmeiras, olha só, os prédios altos tomaram conta de tudo, os carros fazem barulho, está tudo sujo... mas as pessoas quando estão na ilha é como os miúdos na escola e vão correr para o recreio... - E o mais velho, também? - Para mim a ilha é uma mulher que eu amei e não vou esquecer é nunca... por isso a ilha pode mudar, podem vir milhares de pessoas e abrirem centenas de bares de praia e restaurantes que eu só vejo o que eu quero ver... e continuo a ouvir o vento a dar nas copas das palmeiras a fazê-las dançar e a cantar enquanto a minha mão está na mão dela até eu morrer... não falta muito... - Não fala isso, mais velho, o mais velho não vai morrer é nunca... senão quem nos vai contar as nossas histórias... mas, mais velho como foi que acabou essa história desse teu antepassado com a filha do soba? - Não contei já? Mais de mil vezes? Ele não sabia que ela era filha do chefe... gostou dela muito mesmo... mas ele era branco e
89 tinha de voltar no barco do Paulo Dias... ele é que deu para o capitão o nome da cidade... Octávio esqueceu o tempo e o dia já estava a declinar. O Sol tinha já iniciado a sua descida para o mar deixando as suas marcas arroxeadas no céu para prevenir que chegava a hora de falar baixo, sussurrar carinhos sob a complacência e o lento abanar das palmas lá no alto das palmeiras. Tinha visto tanta coisa, a sua jovem companheira, como uma cicerone exímia, havia-lhe mostrado as conchas lindas que se apanhavam na praia, as canoas de pesca que ele percebeu ela chamava dongos, mostrou-lhe os pescadores que estavam na sua faina de puxar as redes e viu depois maravilhado a multidão de peixes a debaterem-se nas malhas em relâmpagos prateados, levou-a a uma das palhotas onde partilhou uma saborosa refeição de peixe galo braseado que regou com uma refrescante quissângua. Octávio nunca vira gente assim tão acolhedora e generosa e acreditou, certamente, que naquela língua de areia cercada de palmeiras ondulantes, ele tinha chegado ao paraíso. Nem faltava a Eva que em vez de uma maçã lhe estendia um búzio que ela levara ao ouvido convidando-o por gestos a fazer o mesmo. Octávio ouviu então o som do oceano, aquele som misterioso que nos leva por cima do trono das águas, que nos assusta quando nos precipita no abismo mais profundo mas nos extasia quando nos devolve à serena tranquilidade de uma praia, como aquela onde ele agora só tinha olhos para a beleza incomparável daquela jovem por quem já se sentia perdido de amores e dela nem sabia o nome. Estavam agora encostados à canoa, não havia mais ninguém por perto... ela tirou de dentro da canoa uma esteira enrolada que
90 abriu sobre a areia. Sentada na esteira de bordão macio ela estendeu a mão para Octávio e desta vez aquela mão lhe pareceu a cabeça da serpente tentadora aproximando-se para o devorar. Lentamente Octávio começou por tirar as botas ensopadas, e quando já só lhe restava a blusa prestes a ela também ficar a flutuar sobre a canoa, perguntou-lhe, na sua língua incompreendida ainda, como ela se chamava. Ela ficou curiosa com a pergunta, inclinou o rosto, mostrando dúvida sobre aquelas palavras engraçadas que não entendia... . Ele então pôs um dedo sobre o peito e disse o seu nome... e depois levou o seu dedo ao coração da mulher...Esta sorriu... continuava a não entender... com a sua mão delicada bateu na esteira... fofa, macia, convidando a deitar e disse: luanda!
91 O Conto da Sereia A ilha de Luanda é muito mais do que a marginal coalhada de restaurantes e praias abusivamente privadas. No seu interior, embora estreito, acotovelam-se as pequenas casas precárias que albergam uma população que não tem parado de crescer apesar das transfusões humanas realizadas para as novas centralidades. A noite já vai larga, as vielas das traseiras da ilha estão solitárias há horas e todos dormem, talvez a sonhar antes da aurora os despertar para mais um dia de faina...uns no mar, outros na cidade. Numa dessas casinhas num quarto onde apenas cabe uma cama de casal, uma mulher fala alto durante o sono: - Octávio, mais uma vez, só mais uma vez.. - Eh, Cecília , está tendo outra vez aquele pesadelo? Acorda mulher... - Oh, eu só queria fazer amor... mais uma vez... - Cecília, você está maluca, vire-se para o outro lado e durma sossegada... - Só mais uma vez ... meu amor... - Foda-se Cecília, você é uma mulher de quase 80 anos... Então Cecília acordou e virou-se para o outro lado da cama com os olhos marejados de lágrimas (uma mulher capaz de chorar será sempre capaz de amar e fazer amor!).
92 Deixou então vir à praia da sua memória o final daquela tarde feliz em que conhecera Octávio, na contracosta, fazendo cabriolas com a sua prancha, escorregando nas ondas que se espalhavam na areia e o levavam veloz sobre a água até dar os seus famosos mortais, olhando-a de olhos bem abertos, de cabeça para baixo, de braços abertos, as pernas no ar... - Como é que consegues... Octávio? Não falhas uma onda... - Eu treino muito Cecília... não é só aqui na praia, na hora das ondas... é lá em casa também, na minha cubata... quando estou lá deitado, eu enfrento as ondas dez, vinte, cem, mil, todas as noites antes de dormir, todas as manhãs quando acordo... - Como é isso? - Mesmo deitado na minha enxerga e espreitando o céu através das falhas do tecto, eu vejo o mar e vejo as ondas, tenho a madeira nas mãos, calculo o tempo da onda vir, o meu tempo de corrida, o momento de dar a chapa, deslizar... calcular a velocidade , o momento de pedalar, ganhar impulso e descolar e revoar... - E só pensas nisso? - Depois que te vi nua... depois que te conheci... penso outras coisas também... Agora estava mesmo escuro, apenas alguns farrapos escarlates boiavam esquecidos no céu da ilha, sabe-se lá porquê... porque era sempre assim... ou se para tingir os sentidos de Cecília... ela já não ria às gargalhadas como o fizera perante cada exibição do “madeirista” exímio e ternamente segurou-lhe a mão...
93 Octávio sentiu um choque eléctrico como se tivesse dado encontro com o rabo de uma perigosa raia que não raro varavam o fundo daquelas águas, ali junto às pedras, no esporão... - Sabes o significado do meu nome? Cecília? - Não tenho nem ideia... é só um nome ...para mim o mais bonito de todos... porque é o teu... - Pois, mas cuidado... porque o meu é nome de anfíbio... está numa enciclopédia... tu não podias saber... posso viver no fundo do mar, respirar o oxigénio pelas brânquias, como os peixes, ou em terra com os pulmões... como tu... - Porra!... O mano Cacete tinha razão, tu és mesmo feiticeira... vais-me arrastar para o fundo do mar... - Para te comer? Não é preciso... dá-me só a tua mão, vamos só até ali à canoa, vem-me dar uma queca boa... - Quê? - Uma queca, o quê mais? Não sabes o que é? - Eu não dou queca, eu faço amor... ou penso fazer...desde que pus os meus olhos em ti, também treino... - Qual é a diferença? - Mano Cacete que é viajado diz que queca é como fazer compra em loja de conveniência... quando a gente esquece o amor e procura qualquer coisa na hora... - Ou numa urgência... - Cecília, eu posso ser mais novo, mas o meu amor é como o mar, ele tá sempre ali para mim, eu posso mergulhar nele mil vezes e gosto sempre tanto como da primeira vez... - Gostava que o meu namorado sentisse assim... mas ele gosta de mim... e eu dele ... e acho que vamos ser felizes para sempre...
94 - É por isso que não queres fazer amor comigo? Preferes uma queca...? - Pois, nem pensei... - Eu sim, se fizeres amor comigo, serás minha para sempre, mesmo que cases com esse teu namorado... - Gostas assim tanto de mim, Octávio? - Não penso noutra coisa desde que pus os meus olhos em ti... mas não vi esse teu rabo de sereia... - Está noite, como podes ver o meu rabo de sereia? Olha estou de pernas abertas, faz de conta que eu sou o mar, vem com a tua prancha e desliza em mim, me surfa... Cecília, podia ter aberto em leque o seu rabo de sereia em duas pernas para o inspirado andador de madeira em tantas ondas, mas estava tudo tão escuro que só a imaginação, o coração, a fantasia teria olhos para tanto... - Consegues ver? Tremendo como perante uma revelação divina Octávio reunia todas as forças do seu amor. Para uma surfista treinado, Octávio enchia o peito mas todo ele se sentia abanar de medo e aflição... afinal, amar... era assim? Aguçou o olhar como David prestes a acertar em Golias e disse corajosamente: - Basta o cheiro e os gemidos do mar para me orientar...” - O que será da minha vida sem ti? E agora o que farei Octávio? - Eu sou um andador sobre as ondas, cada vez que que o mar se abrir para mim é em ti que vou mergulhar e andar... - Vem então comigo, vem comigo para sempre...
95 - Atenção Cecília, agora vou dar o meu mortal... Ninguém (nem Octávio) podia ver, mas dos olhos felizes de Cecília corriam dois rios de água salgada! Passaram tantos anos , Cecília nunca mais viu Octávio... nem mais o ouviu dizer Cecília, anda ver o mar... vamos namorar.... mas continua a ter um mar para verter, dentro de si... Na sua cama, Cecília sorria agora... as suas pernas voltavam a colar-se e o rabo de sereia surgiu com todo o seu esplendor, abraçando Octávio e arrastando-o para o fundo do mar. Octávio olhava-a, fascinado, sorria, feliz... e morria de amor...!
96 A porta Tenho um problema com o tempo. Ou, melhor, creio, o tempo tem um problema comigo. Em todas as histórias que conto, o tempo é uma espécie de cenário que utilizo conforme cada cena que vou escrevendo... na verdade eu gostaria tanto que o tempo não passasse de uma ilusão que à força de criar histórias quase estou a acreditar que assim é. Preciso de explicar que sou uma espécie de escritor e digo uma espécie, porque embora compulsivo como quase todos os escritores eu só escrevo para pessoas minhas conhecidas, pessoas amigas, pessoas a quem eu quero bem e pessoas que me queriam bem pelo menos até eu ter começado a escrever para elas. Também ao contrário da generalidade dos escritores que levam meses, por vezes anos para contar uma história, eu escrevo uma história todas as semanas. Claro que isso diz tudo, nunca serei um bom escritor, porque não é imaginável que alguém possa ter a qualidade exigível para um alto nível de escrita, produzindo a esse ritmo e ainda assim ter a pretensão de surpreender os leitores com alguma coisa de novo, para não dizer de essencial e substancialmente diferente. Há outra coisa ainda que me distingue dos demais escritores: eu não escrevo para ser famoso ou ganhar um prémio literário, mas para ser amado pelas personagens que invento. Essa é aliás a principal razão de ser da minha questão com o tempo. O que mais fascina na ficção, é a novidade, a projecção de coisas que podem
97 ainda vir a acontecer. Ora muitos dos meus leitores acusam-me e não sem algum fundamento, de eu não fazer ficção mas de pura e simples falsificação do passado, o que não deixaria de ser uma mistificação lamentável. Ora eu insisto que tudo isso não é culpa minha mas da tal ilusão do tempo. Na realidade eu escrevo sobre o passado como se ele ainda não tivesse acontecido. É difícil explicar isto sem dizer que há uma dimensão do tempo que não se deixa medir em horas e em minutos... aquilo a que eu insisto em chamar a minha quinta dimensão. Naturalmente algum dos meus leitores mais dubitativos interpelar-me-ia agora para saber se eu consigo realmente penetrar nessa dimensão. E quereria saber, também como é que isso acontece. Olhe, uma das minhas leitoras mais queridas lamenta-se de não ter tempo de me ler todas as semanas. Segundo ela eu devia espaçar a minha produção literária... afinal os escritores têm o seu período de incubação e só depois de algum tempo, por vezes anos, dão à luz a sua história... seja ela um romance ou um rosário de contos, quiçá poesia... mas eu insisto em escrever todas as semanas e aguentando esta maldição de querer que centenas de amigos me leiam ao mesmo ritmo. Eu mando os contos por e-mail e publicito-os no Face Book... e os meus contos são publicados num semanário de sucesso... mas os leitores não podem corresponder à minha compulsão de escrita com idêntica compulsão de leitura. Deixam para lá... depois eu leio... leio vários de seguida, quando tenho tempo, é quando se pode... Mas não há ninguém que me pergunte “como é que tem tempo?” Claro que há muito quem pergunte e ainda mais quem não pergunte mas se interrogue a si mesmo como é que eu vou arranjar tempo e sobretudo inspiração para tanto.
98 Eu gostaria de explicar, mas para ser honesto, teria que contar que eu escrevo nessa quinta dimensão onde o tempo não tem densidade horária, em que acontecimentos do passado se cruzam com acontecimentos que talvez venham a ocorrer no futuro, e em que o tempo, afinal, não conta. Por isso, uma vez entrado aí... tenho todo o tempo do mundo! Mas não me atrevo. Infelizmente eu não posso levar comigo os meus leitores e leitoras para comprovarem a verdade do que assevero. Isso seria impossível desde logo porque para lá entrar há uma porta bem estreita........ e é lá em minha casa, uma porta que fica entre o meu quarto e... bolas, não posso dizer, isso seria revelar um segredo e isso não posso contar de modo nenhum. Nem quero imaginar o que me aconteceria... aliás, eu deixaria, por definição, de poder imaginar... mas cá estou eu outra vez a falar demais... Quando estou lá dentro, escrevo, escrevo, oiço música constantemente, não sei de onde ela vem, mas é assim como uma banda sonora que vai mudando conforme vou mudando de cenários... parece coisa de Matrix... Mas tenho um problema, quando trago os papéis que lá escrevo, e que tinha a certeza de que eram verdadeiras obras primas, de arte literária ... acreditem... chegando cá fora eu vejo sempre as letras irem perdendo o seu contraste, amarelando, até deixarem as folhas todas do meu caderno em branco imaculado. Por isso quando escrevo para vós semanalmente, são apenas fragmentos do que me vou recordando do que escrevi lá dentro, na minha quinta dimensão. Comecei depois a ver, à medida que ia escrevendo que umas histórias se iam encadeando umas nas outras, que todas elas se encaixavam, o seu conjunto fazendo mais sentido que cada um dos textos que fui escrevendo de memória. Penso que na quinta
99 dimensão eu sou capaz de escrever um grande romance, porque à medida que vou escrevendo os fragmentos semanais, eu penso que vou progredindo... talvez porque a memória funciona por associação de ideias, e à medida que vou escrevendo há mais ideias que se associam e isso vai permitindo talvez aproximar-se do romance que eu ando a escrever lá na minha quinta dimensão. Há lá nessa quinta dimensão outra coisa curiosa... há imensos espelhos e túneis, a princípio até pensei que estava num desses labirintos de feira e de fantasia, em que apanhamos alguns sustos... e outras vezes nos deleitamos, porque ora nos vemos muito gordos e feios, outras vezes magros e esguios como um candeeiro... na minha quinta dimensão ora me vejo muito jovem, ou mesmo criança, correndo atrás de um brinquedo, outras vezes velhíssimo, cheio de rugas, horrível de contemplar... então desato a fugir por um dos túneis até outra sala de espelhos, e é um caleidoscópio estelar em que me vejo brilhante, jovem, rodeado das minhas musas inspiradoras, todas me convidando a entrar... estes espelhos são como cristal realmente líquido eu meto um braço, a perna, o corpo todo e do outro lado vejo a minha musa, com a minha idade aparente e ela agarra-se a mim, não me larga, então eu deixo-me cair e só me resta chorar... amargamente, porque afinal estou só... aquela imagem não passa disso, de uma imagem... o escuro à minha frente deve conduzir a outra porta que eu abro... e entro numa outra câmara banhada pelo Sol... aqui o dia e a noite é como o virar de uma página. Volta-me a alegria, a esperança, as expectativas regressam em força... mas é tudo uma questão de perspectiva. Tudo depende do meu ponto de visão. E do que queremos ver. Esta parte também é muito importante. Nunca verei nada que não queira ver...
100 Mas não é só isso que acontece lá, na outra dimensão. Lá eu posso ser branco, preto, posso ser uma, duas ou três pessoas, por exemplo eu sou o Octávio preto em jovem, o Octávio branco em velho, (até o cubano Raul Morales e o Padre Jacob...de outros contos a publicar mas que já foram lidos pelos meus leitores semanais). Como é isso possível? Bom, primeiro é preciso acreditar nos sonhos... por acaso acredita? Um pouco de fé também ajuda. Alguém acredita na encarnação? Na possibilidade de voltar à vida sobre outra forma? Seja de pessoa ou de outro animal? Bom, lá na quinta dimensão é muito fácil encarnar outros personagens que eu gostaria de ser... Por vezes dou comigo a pensar que afinal eu devo ter mesmo um dom, como alguém me garantiu um dia que tinha. Não tenho tanto a certeza e acho que é mais uma questão de viajar no tempo através de espelhos. Mas não será isso um dom? O que eu queria mesmo dizer é que quando se tem um dom esse dom pode e deve ser desenvolvido... tem de ser exercitado... mas é uma coisa muito solitária, compreende? Por vezes até a mim me assusta. Olhem, já vos disse que há uma porta por onde passo para a minha quinta dimensão... um dia tive medo de ficar lá dentro.. medo de não poder sair mais... perder-me, com tantos espelhos tive medo da embriaguez da profundidade... é uma coisa parecida, quando tirei o meu curso de mergulho, aprendi a ter muito cuidado para respeitar rigorosamente as regras dos patamares de profundidade no regresso à superfície, para fazer a descompressão, sob pena de o nitrogénio não estabilizar no meu organismo e, como um excesso de álcool no sangue eu poder perder a noção da realidade....o sentido das coisas, ficarmos maravilhados com tudo... rimos... deixamos escapar o bucal... começamos a fazer aquelas bolinhas na água ... e podemos,
101 literalmente, morrer a rir. Felizes mesmo... mas quem quer morrer? Feliz ou infeliz, eu não! Tenho ainda tanto para escrever, deixa-me ver, quantas semanas igual ao número de contos... bom tenho mesmo de viver muito tempo ainda... se quero escrever tudo o que me recorda já ter escrito do lado de lá, na minha quinta dimensão. Os velhos não podem namorar (-) mas podem escrever e se escrevem na quinta dimensão o efeito é o mesmo... cada folha que se enche de palavras soa como uma verdadeira carta de amor... e ouvem-se os violinos ao fundo, e eu vestido com a mais bem engomada casaca vou buscar para dançar a mulher mais linda do mundo... Mas, voltando ao fio da meada...com medo de perder a razão e não voltar a encontrar a saída da quinta dimensão... marquei subtil e matreiramente um X com tinta da china, no local exacto da porta... se eu não aparecesse durante muito tempo alguém daria por aquele sinal na parede, meteria a picareta nela e sempre me poderia encontrar. Nunca foi preciso, mas também não seria possível. Quando saí e olhei para o sítio onde tinha pintado o X nada existia... Comecei a pensar que não estava muito bem da minha saúde mental. Não contei a ninguém e muito menos fui consultar o médico de família porque a primeira coisa que ele faria, mantendo comigo uma conversa sorridente e aparentemente despreocupada, era carregar no botão vermelho debaixo da secretária e de um momento para o outro enfermeiros suficientemente corpulentos para me dominarem e reduzir a um trapo metiam-me numa cadeira de rodas em direcção a um qualquer hospital psiquiátrico! Isso me dava um verdadeiro pavor porque lá, no hospital não sei como poderia encontrar outra porta para a minha quinta dimensão.
102 Portanto, meus amigos e amigas, este dom é uma coisa extraordinária, mas por vezes me deixa com a sensação de que à medida que o vou desenvolvendo ele se torna demasiado poderoso, e isso me assusta porque eu sinto cada vez mais que já não sou eu que actuo mas ele que actua em mim e por mim. Por isso tenho feito um enorme esforço para o esquecer e há já várias noites que olho a porta para a quinta dimensão e conseguido fazer apelo a um resto de força de vontade para resistir a transpô-la. A noite passada, não conseguia dormir mas resisti ainda com todas as minhas forças a ignorar aquela porta convidativa e secreta. Vim até à minha janela para respirar um pouco de ar fresco... Vi passar na rua uma menina com os cabelos cor de cobre fulvo, muito esguia, seguindo um cão que mantinha pela trela. Eu tinha a certeza de que já a tinha visto... não sei onde... mas com toda a probabilidade... claro que sim, que só podia ter sido na minha quinta dimensão! Uma mulher assim não era deste mundo! Àquela hora tardia da noite fez-me espécie... corri pelas escadas abaixo, vim para a rua e comecei a seguir a rapariga e o cão.. Quando finalmente a alcancei estendi a mão para lhe tocar no ombro para ter a certeza de que não estava a sonhar... ela voltou-se e era uma velha, muito velha, velha como a morte, e o cão virou para mim as suas fauces de fera, mostrando os dentes, mas o pior foram os seus olhos amarelos que começaram a discar e a ficar vermelhos como duas brasas em fogo. Pensei que ia morrer... mas foi nesse momento que eu vi como tinha um dom e o meu dom era poderoso. Olhei o cão sem medo, os seus olhos foram amarelando e resmungando uns ganidos sentou-se
103 tranquilamente á minha frente sobre as patas traseiras como uma fera amansada. Voltei-me para a mulher e lá estava a menina linda e resplandecente que só me disse: tenho sentido a sua falta.... Dito isto continuou o seu caminho com o cão, e eu vi as suas costas arquearem pouco a pouco e o seu andar vacilante seguindo com dificuldade aquele cão infernal. Ainda me disse com a cara de lado para não me voltar a assustar com a sua aterradora velhice: este é o cão que guarda a nossa porta...
104