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O SISTEMA POLITICO ANGOLANO 10 F

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O SISTEMA POL TICO DE ANGOLA DE 1992 A 2012 ONOFRE DOS SANTOS ORIGENS DO SISTEMA POL TICO ANGOLANO a progressiva personaliza o do poder na I Rep blica A Rep blica de Angola nascida em 1975 Rep blica Popular de Angola com um sistema socialista e monopartid rio conheceu ao longo dos seus quase quarenta anos de idade uma dram tica evolu o formal modelando o seu texto fundamental submetido a sucessivas revis es at aprova o da actual Constitui o em 2010 O Acordo pelo qual o Estado Portugu s reafirmou solenemente o reconhecimento do direito independ ncia do povo angolano a proclamar a 11 de Novembro de 1975 foi firmado com os tr s Movimentos de Liberta o considerados ent o como nicos e leg timos representantes do povo angolano Esta representa o popular solid ria cuja proporcionalidade s poderia ser deslindada por via de elei es gerais previstas para antes da data marcada para a proclama o da Independ ncia ficou por via de factos historicamente conhecidos concentrada no Movimento Popular de Liberta o de Angola MPLA que pela Lei Constitucional de 11 de Novembro de 1975 assumiu a direc o pol tica econ mica e social da Na o 1 Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional de Angola 1 Artigo 2 da Lei Constitucional de 11 de Novembro de 1975 1

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Nos termos desta Lei Constitucional o Presidente da Rep blica Popular de Angola era por iner ncia o Presidente do MPLA o qual como Chefe do Estado representava a Na o Angolana2 Ainda nos termos dessa Lei Constitucional o Conselho da Revolu o foi transitoriamente erigido em rg o supremo do poder do Estado 3 a quem al m da fun o legislativa cabia a nomea o do Governo do primeiro ministro e dos ministros sob a indica o do MPLA N o havendo verdadeiramente separa o de poderes o Estado definido na Lei Constitucional como democr tico pois que se inscrevia no paradigma corrente na poca de uma democracia popular estabelecia por m uma separa o entre a chefia do Estado e a chefia do Governo N o obstante o Presidente da Rep blica acumular a presid ncia do Conselho da Revolu o e da Assembleia do Povo o Presidente da Rep blica n o presidia sequer ao Conselho de Ministros Esta aparente separa o entre o Presidente e o Primeiro Ministro foi mitigada pela primeira revis o da Lei Constitucional de 1976 que reclamando mais poderes para o Presidente da Rep blica lhe atribuiu tamb m a presid ncia do Conselho de Ministros e do Governo A personaliza o do poder executivo acentuou se um ano depois com a revis o de 1977 em que o Presidente da Rep blica passou a ter o poder de ele pr prio nomear dar posse e exonerar o Primeiro Ministro e os outros membros do Governo Pode dizer se que este processo de progressiva personaliza o e concentra o do poder presidencial se consumou por via da Lei 1 79 que extinguiu os cargos de Primeiro Ministro e VicePrimeiro Ministro esta Lei Constitucional de 1975 com todas as suas revis es que vem por fim a integrar as altera es de 1991 e 1992 que deram origem chamada II Rep blica Assim como a actual Constitui o representa o culminar do processo de transi o constitucional iniciado em 1991 com a aprova o pela Assembleia do Povo da Lei n 12 91 que consagrou a democracia multipartid ria as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidad os e o sistema econ mico de mercado mudan as aprofundadas 2 3 Artigo 31 da Lei Constitucional de 11 de Novembro de 1975 Artigo 35 da Lei Constitucional de 1975 2

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mais tarde pela Lei de Revis o Constitucional n 23 92 4 Ainda hoje por m o Presidente da Rep blica o Presidente do MPLA embora j n o por virtude da lei fundamental do Estado angolano mas por for a dos votos das elei es gerais de 2012 a descri o do percurso entre esses dois marcos constitucionais de 1992 e 2010 que permitir sinalizar o destino desta an lise a defini o do sistema pol tico angolano SISTEMA POL TICO E CONSTITUI O do semipresidencialismo da Lei Constitucional de 1992 ao presidencialismo de facto e de direito at aos dias de hoje Sistema pol tico de um Estado a forma de governo estabelecido na sua lei fundamental ou Constitui o isto o conjunto dos rg os constitucionais que estruturam o Estado em termos de exerc cio do poder Importa assim para qualificar o sistema pol tico angolano observar os princ pios que enformam a Lei Constitucional de 1992 e a Constitui o de 2010 procurando discernir a forma de governo que vigorou luz da Lei Constitucional de 1992 e a que vigora agora luz da Constitui o de 2010 Tem sido comum a qualifica o do sistema pol tico da II Rep blica como semipresidencialista assim como se tem vindo a referir o sistema adoptado em 2010 como parlamentar presidencialista designa o de que se reclamava o Projecto constitucional que veio a ser aprovado Como adiante se ver mais importante que os r tulos o conte do constitucional que interessa analisar entendendo por conte do n o apenas as normas constitucionais como a pr tica constitucional desde 1992 at aos dias de hoje 2014 Tamb m laia de r tulos tem sido frequente qualificar cada um dos per odos dominados 4 Pre mbulo da Constitui o da Rep blica de Angola 3

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por um diferente texto constitucional como sucessivas Rep blicas a I correspondente ao per odo da democracia socialista de partido nico a II ao per odo da democracia multipartid ria e at uma III inaugurada com a aprova o da primeira Constitui o com esse nome e a primeira elei o democr tica do Presidente da Rep blica em 20125 Vimos j como o sistema pol tico sujeito a revis o profunda em 1991 e 1992 n o obstante o car cter de sistema de partido nico de inspira o marxista leninista se caracterizou por uma progressiva personaliza o do poder na pessoa do Presidente do Partido e do Estado Embora a Lei Constitucional de 1975 declarasse Angola como um Estado soberano e democr tico era para o conceito de democracia popular baseada no poder popular que o texto fundamental remetia ainda que neste contexto o poder colectivo do partido no poder desde muito cedo se foi despojando e investido na pessoa do Presidente do Partido e do Estado Veremos como n o obstante a revolu o constitucional operada em 1991 1992 o eixo central de toda a vida pol tica continuou assente na figura do Presidente da Rep blica embora esta centralidade conhecesse momentos de acentua o sincopada ao longo dos 17 anos de vig ncia da Lei Constitucional de 1992 Sendo certo que o grande salto qualitativo dado em 1991 se traduziu no essencial ades o do texto constitucional democracia representativa atribuindo se na mesma e como antes o poder soberano ao povo mas estabelecendo que a partir da o povo angolano exerce o poder pol tico atrav s do sufr gio universal peri dico para a escolha dos seus representantes 6 o facto que o Presidente da Rep blica continuou a retirar a sua legitimidade do exerc cio das fun es que vinha exercendo no per odo anterior Com efeito n o tendo podido concluir se a elei o presidencial por raz es n o imput veis ao titular do cargo e candidato eleitoral o Presidente da Rep blica manteve se no cargo ao abrigo do artigo 5 da Lei n 23 92 que aprovou a Lei Constitucional de 1992 que no seu n 1 estabelecia que o mandato do Presidente da Rep blica vigente data da publica o da presente lei considera se v lido e prorrogado at tomada de posse do Presidente da Rep blica eleito nas elei es presidenciais de 29 e 30 de Setembro de 5 Assim Rui Ferreira Presidente do Tribunal Constitucional na cerim nia oficial de promulga o da Constitui o em 2010 6 N 2 do artigo 3 da Lei Constitucional de 1992 4

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1992 o que nunca veio a acontecer Contudo as profundas modifica es desta Lei na Lei Constitucional de 1975 foram extraordin rias e representaram ent o efectivamente uma verdadeira mudan a de regime que pode justificar com efeito que se possa falar de uma II Rep blica a partir da Como consta do Pre mbulo da Lei 23 92 relativamente aos rg os do Estado introduzem se altera es de fundo que levaram reformula o de toda a anterior redac o O sentido da altera o o da defini o de Angola como um Estado democr tico de direito assente num modelo de organiza o do Estado baseado na separa o de fun es e interdepend ncia dos rg os de soberania e num sistema pol tico semipresidencialista que reserva ao Presidente da Rep blica um papel activo e actuante Esta ideia de sistema pol tico semipresidencialista traduzia se naturalmente na perspectivada coexist ncia de um Presidente da Rep blica governante que compartilharia a fun o executiva com um Primeiro Ministro7 Com efeito a Lei Constitucional de 1992 restaurou a figura do Primeiro Ministro aparentemente reintroduzindo a ef mera configura o pol tica de 1975 mas tal como aconteceu na I Rep blica a din mica pol tico constitucional iria encarregar se de repor a prefer ncia por um sistema presidencialista recusando em momentos sucessivos os tra os do semi presidencialismo que durante algum tempo se insistiu em apelidar o sistema pol tico angolano n o s pelas suas reminisc ncias do sistema de inspira o gaullista como pela pr pria designa o inclu da no pre mbulo da Lei n 23 92 Esta op o semipresidencialista tendo impl cita a ideia de um contrabalan o do poder do Presidente da Rep blica n o pode desenquadrar se da circunst ncia pr eleitoral em cujo contexto aquela revis o constitucional teve lugar e a sua reconhecida transitoriedade espera da Assembleia Constituinte a formar de acordo com os resultados eleitorais de 1992 A bicefalia do poder executivo aparecia com efeito contra a corrente da hist ria constitucional dos primeiros 17 anos mas permitia a perspectiva de uma acomoda o do poder depois das elei es as primeiras elei es multipartid rias s quais iriam concorrer 17 partidos pol ticos e uma coliga o de partidos pol ticos e ainda 11 candidatos 7 Ara jo Raul Carlos Vasques O Presidente da Rep blica no Sistema Pol tico de Angola Casa das Ideias 2009 p 274 5

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presidenciais com especial preval ncia para a UNITA e Jonas Savimbi signat rios dos Acordos de Paz assinados em Bicesse em Maio de 1991 nos termos dos quais o processo de reconcilia o por via eleitoral foi previamente estabelecido Ningu m poderia antecipar por m que a aprova o de uma Constitui o por uma Assembleia Constituinte iria ter que esperar outros 17 anos tantos quantos havia durado da I Rep blica Ainda assim apesar de destinada a satisfazer objectivos transit rios na expectativa da breve concretiza o do poder constituinte da Assembleia eleita em 1992 a sua transitoriedade n o diminuiu a extens o das modifica es mais simb licas introduzidas no sistema de que a nova denomina o da Rep blica de Angola que deixou de ser Popular um amplo cat logo de direitos fundamentais a cria o do Tribunal Constitucional a institui o do Provedor de Justi a e o estabelecimento do Conselho Superior de Magistratura Judicial s o alguns dos exemplos mais relevantes As raz es e os factos determinantes deste longo e hist rico compasso de espera s o bem conhecidos respons veis pelo reacender da guerra civil que s viria a terminar pelo Memorando de Entendimento de 2002 uma repercuss o debilitada dos Acordos de Paz assinados uma d cada atr s Nos dez anos que se seguiriam s elei es que s permitiram o apuramento das elei es legislativas e n o das presidenciais o Presidente da Rep blica embora n o eleito passou a exercer todos os poderes e compet ncias que lhe foram atribu dos pela Lei Constitucional desde logo procedendo nomea o de um PrimeiroMinistro V rios factores concorriam todavia para a persistente voca o presidencialista do sistema semipresidencial delineado na Lei Constitucional de 1992 Na realidade o aparente semi presidencialismo institu do em 1992 baseava se na reparti o dos poderes entre o Presidente da Rep blica e o Governo Ao Presidente da Rep blica competiria definir a orienta o pol tica do pa s assegurar o funcionamento regular dos rg os do Estado e garantir a independ ncia nacional e integridade do pa s8 Ao Governo caberia conduzir a pol tica geral do pa s e ser o rg o superior da administra o p blica9 Contudo era clara a posi o dominante do Presidente da Rep blica sobre o Governo n o 8 9 Cfr n 2 do artigo 56 da LC 1992 Cfr n 1 do artigo 105 da LC 1992 6

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s atrav s do seu poder de nomear o Primeiro Ministro e de o demitir10 como pelo poder que lhe era atribu do de presidir ao Conselho de Ministros11 o que inclu a o poder de convocar fixar a agenda de trabalhos dirigir e orientar as reuni es e sess es do Conselho de Ministros Neste intrincado quadro jur dico constitucional podia academicamente discutir se se havia alguma separa o entre a chefia do Estado e a chefia do outro rg o executivo de soberania o Governo A d vida poderia insinuar se na medida em que a Lei Constitucional estabelecia que o Governo era simultaneamente respons vel politicamente perante o Presidente da Rep blica e a Assembleia Nacional 12 resultando logicamente desta dupla responsabilidade do Governo a possibilidade do Governo cair por uma delibera o do Parlamento que constitu sse uma mo o de censura13 ou a n o aprova o de um voto de confian a14 Como ficaria realmente o Presidente na sua qualidade de chefe do Governo perante uma vota o no Parlamento que pusesse em causa o executivo colectivo A posi o dominante do Presidente da Rep blica n o se esgotava no entanto apenas sobre o Governo mas sobre o pr prio poder legislativo na medida em que a Lei Constitucional igualmente lhe atribu a o poder de dissolu o do Parlamento15 Foi o Tribunal Supremo na sua veste de Tribunal Constitucional com que actuou at 2008 que pelo seu Ac rd o de 21 de Dezembro de 1998 declarou que as compet ncias do Presidente da Rep blica estabelecidas na Lei Constitucional lhe atribuem a preemin ncia na cadeia de comando do poder executivo o poder de direc o e chefia do Governo Apoiado no entendimento deste aresto constitucional ou n o o Presidente da Rep blica fez uso dos seus poderes excepcionais durante esse per odo face ao acentuar dos efeitos 10 Cfr al neas a e c do artigo 66 da LC 1992 Cfr al nea d do artigo 66 n 1 do artigo 68 e artigo 108 da LC 1992 12 Cfr n 2 do artigo 105 da LC 1992 13 Cfr al nea f do artigo 118 da LC 1992 14 Cfr al nea g do artigo 118 da LC 1992 15 Cfr al nea e do artigo 66 da LC 1992 11 7

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da guerra o Presidente da Rep blica veio mesmo a prescindir em Janeiro de 1999 do cargo de Primeiro Ministro Reputados constitucionalistas como os Professores Doutores Raul Ara jo e Carlos Feij consideraram o primeiro que a mencionada suspens o de um rg o previsto na lei fundamental seria claramente inconstitucional16 transformando a partir da o sistema semipresidencialista em presidencialista enquanto o segundo assevera que a decis o do Tribunal Constitucional operou uma reviravolta na f rmula semipresidencialista declarada originando uma concentra o do poder porventura n o prevista pelo legislador constituinte na figura do Presidente da Rep blica17 Paradoxalmente tendo em vista a op o semipresidencialista uma concentra o bem maior por via da n o nomea o de um Primeiro Ministro do que aquela que teria resultado da eventual adop o no texto constitucional de um sistema presidencialista de raiz 18 Ainda segundo Carlos Feij a decis o do Tribunal Constitucional transformou a bicefalia executiva caracter stica dos sistemas semipresidenciais num presidencialismo particular e anormalmente forte porque desprovido de um sistema adequado de checks and balances Nenhum destes autores sustenta no entanto o regresso ao sistema semipresidencialista quando o Presidente da Rep blica em 2003 depois do Memorando de Entendimento que p s termo guerra civil voltou a nomear o Primeiro Ministro cargo que esteve provido at aprova o da Constitui o de 2010 Do que fica exposto e abstraindo das diversas opini es em contr rio no sentido de que todas as vers es da Constitui o angolana promulgadas desde a Independ ncia consagraram clara e explicitamente o semipresidencialismo o que resulta que a pr tica constitucional ou a din mica da Constitui o angolana sempre esteve teimosamente e determinadamente orientada no sentido da presidencializa o de facto do poder no sentido da personaliza o do poder e da prefer ncia pela chefia unipessoal do 16 Ara jo Raul C 2001 A problem tica do Chefe de Governo em Angola in Revista da Faculdade de Direito Agostinho Neto n 2 Luanda p 75 17 Guedes Armando Marques e Feij Carlos Pluralismo e Legitima o A Edifica o Jur dica P sColonial de Angola Almedina 2003 18 Ibidem 8

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poder executivo tal como a Constitui o de 2010 viria lapidarmente a consagrar19 Na realidade n o obstante as significativas altera es operadas pela Assembleia Constituinte em 2010 ao aprovar a Constitui o da Rep blica de Angola a consagra o do Presidente da Rep blica como Chefe do Estado e titular do Poder Executivo20 o Presidente da Rep blica n o s assume na letra da Constitui o os mesmos poderes que vinha exercendo desde 1992 se n o desde 1976 aderindo o texto constitucional a um presidencialismo de raiz como sugeria o Prof Carlos Feij como na verdade e ainda tamb m de acordo com a conjectura de Carlos Feij neste novo quadro jur dicoconstitucional o Presidente da Rep blica ter menos poderes do que tinha na Lei Constitucional de 1992 vis a vis da Assembleia Nacional sobre a qual n o tem mais o poder de dissolu o A CONSOLIDA O DO SISTEMA PRESIDENCIALISTA Assim como o r tulo semipresidencialista n o prevaleceu sobre as condi es hist ricas da realiza o da Lei Constitucional de 1992 tamb m o r tulo amb guo de sistema presidencialista parlamentar de um dos tr s Projectos que foram apresentados durante a discuss o na Comiss o Constitucional poder ir contra a realidade porque l diz o ditado o que tem de ser tem muita for a A Constitui o de 2010 teve a coer ncia de p r na letra da Constitui o o que foi n o apenas uma prefer ncia de forma de governo como uma pr tica que se foi sedimentando ao longo de quase quarenta anos de vida pol tica angolana e com dois diferentes Presidentes da Rep blica Uma pr tica ali s que diversos autores entroncam numa 19 Alexandrino Jos Melo Natureza Estrutura e Fun o da Constitui o O Caso Angolano confer ncia 2012 p 9 texto agora publicado em Estudos de homenagem ao Prof Doutor Jorge Miranda vol II Direito Constitucional e Justi a Constitucional Lisboa Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 2012 pp 317 340 e tamb m em O Novo Constitucionalismo Angolano Instituto de Ci ncias Jur dico Pol ticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 2013 e book acess vel em www icjp pt 20 Cfr n 1 do artigo 108 da CRA 9

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heran a colonial e tamb m africana21 O Prof Doutor Raul Ara jo na sua tese de doutoramento O Presidente da Rep blica no Sistema Pol tico Angolano refere a certa altura que fizera a demonstra o ao longo da sua monografia do car cter e ess ncia do sistema de governo angolano com a ressalva de que as explica es dadas n o detalhavam as raz es da progressiva personaliza o do poder presidencial em Angola mesmo depois de terminada a guerra civil em 2002 22 Na mesma monografia Raul Ara jo adianta que Wladimir de Brito23 e Carlos Feij 24 defendem que em frica e particularmente em Angola devemos ter em conta aquilo que eles denominam de constante idiossincr tica a colectiva representa o e aceita o de um modelo tipo de qualquer organiza o de uma dada sociedade fundada na legitimidade do tipo tradicional modelo cuja configura o formal e funcional determinada por um pequeno n mero de elementos da sua estrutura nuclear e cuja pr pria subsist ncia depende desses elementos Raul Ara jo prossegue dizendo que Carlos Feij vai mais longe na sua fundamenta o e defende que na sociedade angolana os elementos que hoje formam a constante idiossincr tica devem ser recolhidos na hist ria e na sociologia e um deles a chefia unipessoal e o Conselho Consultivo E explicita este um elemento na constante idiossincr tica angolana da organiza o pol tica uma vez que quer no per odo pr colonial como no colonial a organiza o pol tica e econ mica da sociedade era estruturada na chefia unipessoal controlada por um conselho de not veis Raul Ara jo ao mesmo tempo que manifesta o seu pleno acordo que estes elementos nucleares fundados no passado hist rico e social acabam por condicionar a organiza o pol tica dos pa ses africanos e n o s concordando ainda que tais elementos explicam igualmente a raz o de ser da aceita o t cita que se faz da concentra o de poderes nos Chefes de Estado africanos n o est decididamente de acordo em aceitar tais elementos como determinantes na fundamenta o do regime pol tico de qualquer sistema de governo ou regime pol tico E expressa que apesar da persist ncia desses elementos 21 Alexandrino Jos Melo Natureza Estrutura e Fun o da Constitui o O Caso Angolano p 9 Raul Ara jo O Presidente da Rep blica no Sistema Pol tico de Angola p 311 23 Brito Wladimir Proposta para Sistema de Governo para futura Constitui o Luanda Outubro de 2003 texto n o publicado 24 Feij Carlos O semi presidencialismo em Angola Dos casos teoriza o da Law in the Books e da Law in Action in Revista de Neg cios Estrangeiros 11 4 Especial Lisboa Setembro 2007 22 10

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culturais e hist ricos necess rio que cada vez mais os princ pios estruturantes do Estado democr tico de Direito sejam seguidos e materializados E acrescenta Desta forma necess rio que ao mesmo tempo que se respeitam os condicionantes culturais de cada povo se organize o poder pol tico na base do princ pio da separa o de poderes sob pena de se criarem d spotas e antidemocr ticos Todavia como o pr prio Doutor Raul Ara jo implicitamente admite a separa o de poderes s por si pode n o ser suficiente nos casos como os de Angola em que o Presidente da Rep blica ao mesmo tempo o l der do MPLA o partido que possui desde 1992 a maioria parlamentar que serviu de apoio ao Governo at s elei es gerais de 2012 e do Poder Executivo depois dessas mesmas elei es n o existindo no pa s uma oposi o constitucional para o exerc cio dos seus poderes25 Acontece que n o se pode clamar como frequentemente se ouve em frica que n o devem ser importados os sistemas democr ticos europeus ou americanos devendo procurar se encontrar um sistema que respeite as tradi es consuetudin rias africanas as quais notoriamente apontam como acima se reconheceu para uma vincada personaliza o do poder e depois clamar tamb m contra a concentra o de poderes do Chefe do Estado A simples separa o de poderes que ali s uma das marcas de gua da actual Constitui o angolana pode de facto n o ser o suficiente para assegurar os chamados pesos e contrapesos requeridos por um sistema democr tico perfeito pelo menos quando o Presidente da Rep blica eleito igualmente o chefe do partido que disp e de uma significativa maioria absoluta no Parlamento Como textualmente adianta o Prof Doutor Raul Ara jo em jeito de conclus o Esta concentra o de poderes dissonante com o princ pio te rico da separa o de poderes mas o resultado do jogo democr tico do regime pol tico e do sistema de governo adoptado Mas isto ainda assim como por fim Raul Ara jo recorda mesmo nos casos em que o sistema n o presidencialista seja ele semipresidencialista ou parlamentar desde que o partido governante disponha de maioria absoluta no respectivo rg o legislativo e se podem suscitar quest es sobre a democraticidade das denominadas ditaduras democr ticas 25 Ara jo Raul Carlos Vasques obra citada p 278 11

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Mais do que pretender ressaltar uma bicefalia do poder Executivo e Legislativo a original qualifica o do actual sistema pol tico angolano como presidencialistaparlamentar ficou a dever se peculiar especificidade da elei o do Presidente da Rep blica e dos Deputados da Assembleia Nacional ser realizada no contexto das elei es gerais para o Parlamento sendo eleito Presidente da Rep blica o cabe a de lista pelo ciclo nacional do partido ou coliga o de partidos mais votado nessas elei es Neste sistema o Presidente da Rep blica eleito por sufr gio universal e simultaneamente o Chefe do Estado e o titular do Poder Executivo o qual exercido auxiliado por um Vice Presidente Ministros de Estado e Ministros 26 numa vers o que traduz o que decidiu o Tribunal Supremo em finais de 1998 no contexto da Lei Constitucional de 1992 ao referir a preemin ncia da cadeia de comando do executivo e a considerar que as fun es de Primeiro Ministro eram as de mero coadjutor do Presidente da Rep blica sendo bvia a similitude de express o coadjutor e rg o auxiliar do Presidente da Rep blica utilizada na Constitui o certo que na actual Constitui o deixou de existir o Governo como rg o aut nomo de soberania Em seu lugar ficou como reminisc ncia constitucional o Conselho de Ministros27 cujo papel auxiliar a fun o governativa e administrativa do Presidente da Rep blica Hoje o Conselho de Ministros um rg o auxiliar do Presidente da Rep blica na formula o e execu o da pol tica geral do Pa s e da Administra o P blica 28 Enquanto na Lei Constitucional de 1992 o Governo era a autoridade superior da Administra o P blica hoje essa autoridade o Presidente da Rep blica que a exerce essencialmente auxiliado pelo Conselho de Ministros um rg o com relev ncia constitucional mas que lhe est inteiramente subordinado embora necess rio n o s para a referida formula o e execu o da pol tica geral do pa s e da administra o p blica bem como na prepara o dos actos normativos do Presidente da Rep blica Mas essa era j na pr tica a situa o no mbito da Lei Constitucional tal como a interpretava o Tribunal Supremo no seu citado Ac rd o de 21 de Dezembro de 1998 A Lei Constitucional distingue de uma certa maneira os poderes pr prios do Presidente da 26 Cfr n s 1 e 2 do artigo 108 da CRA Cfr artigo 134 da CRA 28 Cfr n 1 do artigo 134 da CRA 27 12

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Rep blica daqueles que ele exerce em comum com o Governo Os primeiros s o aqueles em que o Presidente da Rep blica exerce sem referenda ministerial quer dizer por decis o pessoal sem necessidade de consultar o Primeiro Ministro algumas al neas do artigo 66 e eventualmente os ministros interessados Os segundos s o aqueles para os quais necess rio a referenda do Primeiro Ministro e eventualmente de outros Ministros artigo 110 al nea a naqueles casos em que recusando o acordo o Governo pode paralisar uma decis o presidencial Esta distin o jur dica n o corresponde exacta realidade Na pr tica sendo o Presidente da Rep blica a presidir s sess es do Conselho de Ministros as suas decis es nunca s o vetadas por referenda ministerial porque tratadas naquele rg o E temos que h sempre acordo entre o Presidente da Rep blica e o Governo 29 No actual sistema o que era a pr tica passou a ter express o constitucional pois os Ministros de Estado e os demais Ministros passam a exercer os seus cargos no uso de poderes delegados pelo Presidente da Rep blica30 O Presidente da Rep blica disp e ainda de importantes poderes de nomea o e poderes normativos n o podendo ser destitu do por raz es pol ticas Na realidade s o os mesmos poderes j exercidos pelo Chefe do Estado no mbito da Lei Constitucional de 1992 o que por isso n o justifica o qualificativo de hiperpresidencialista do regime estabelecido pela Constitui o de 2010 ao contr rio do que referem J natas Machado Paulo Nogueira da Costa Esteves e Carlos Hil rio na sua obra Direito Constitucional Angolano 31 A Constitui o passa a definir apenas tr s rg os de soberania o Presidente da Rep blica a Assembleia Nacional e os Tribunais32 A Assembleia Nacional o rg o legislativo por excel ncia dispondo de compet ncia para legislar em todas as mat rias salvo as reservadas por lei ao Presidente da Rep blica Enquanto relativamente ao Poder Executivo e o Poder Legislativo se pode referir que 29 Ac rd o de 21 de Dezembro de 1998 do Tribunal Supremo in Jurisprud ncia Constitucional Colect nea de Ac rd os do Tribunal Supremo na veste de Tribunal Constitucional 1996 2008 Volume 0 Edijuris 2009 pp 33 e ss 30 Cfr artigo 137 da CRA 31 Machado J natas E M e Esteves Paulo Nogueira da Costa e Hil rio Carlos Direito Constitucional Angolano Coimbra Editora 2 edi o 2013 32 Cfr n 1 do artigo 105 da CRA 13

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dada a disciplina partid ria reinante no Partido maiorit rio cuja hegemonia remonta ao in cio da I Rep blica e sendo o seu Presidente igualmente o Presidente da Rep blica possam n o funcionar no contexto da actual maioria os mecanismos de pesos e contrapesos pois dificilmente o Presidente da Rep blica veria as suas propostas recusadas ou postas em causa na Assembleia Nacional cabe ao Poder Judicial exercer aquela fun o de checks and balances visto este poder escapar efectivamente ao poder partid rio No caso de Angola encontram se especialmente refor ados os mecanismos jurisdicionais de garantia da Constitui o particularmente desde a institui o de um Tribunal Constitucional a quem cabe n o apenas a fiscaliza o abstracta da Constitui o como em concreto decidir esgotados os recursos na jurisdi o comum todas as quest es jur dico constitucionais suscitadas em qualquer tribunal comum incluindo a invalidade de actos do Estado dos rg os do poder local e dos ente p blicos em geral quando julgados n o conformes com a Constitui o33 Acresce que deve ser referido nesta mat ria de contrabalan o do poder o papel dos partidos pol ticos e dos pr prios cidad os no sistema pol tico vigente A inclusividade que se procurou alcan ar na aprova o consensual da Constitui o votada sem nenhum voto contra por 186 votos a favor e duas absten es num total de 220 Deputados deixou vis vel a prefer ncia da oposi o quanto a um poder partilhado entre o Presidente da Rep blica e um Chefe de Governo bem como a prefer ncia da oposi o quanto separa o das elei es presidencial e legislativas Trata se de duas posi es que se digladiam em surdina como se o destino de Angola e do seu povo estivesse dependente do mesmo dilema do Pr ncipe Hamlet no reino da Dinamarca Ser ou n o ser presidencialista ser ou n o ser semi presidencialista como se na resposta a esta quest o t o dramatizada nas discuss es pr constitucionais estivesse a solu o dos problemas sociais econ micos e pol ticos que desafiam o Pa s Sem entrar nesta discuss o que n o se enquadra na an lise do sistema pol tico vigente revela se evidente que apenas o redimensionamento dos partidos pol ticos de oposi o pode alterar ou influir numa forma de governo dominada naturalmente pelo partido no poder desde a Independ ncia Nacional pela express o dos seus resultados em 2008 e 33 Cfr artigos 6 e 226 da CRA 14

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ainda que menos expressivos em 2012 assegurando em qualquer dos casos uma maioria absoluta significativa no Parlamento De partido nico na I Rep blica a partido hegem nico na II Rep blica evoluindo provavelmente para uma posi o de partido dominante o partido pol tico no poder n o tem posto em causa a inclusividade do sistema pol tico angolano A experi ncia passada de um governo de unidade nacional e at a atribui o por via legal do cargo de Vice Presidente da Rep blica ao l der do maior partido da oposi o se tiveram a virtude de apaziguar tens es pol ticas graves puseram em relevo que o problema n o est na forma de governo ou no sistema pol tico adoptado mas no peso eleitoral dos partidos pol ticos cuja capacidade de exercer o contradit rio ideol gico tem de passar pelos resultados eleitorais A inclusividade jamais pode levar equival ncia da maioria e da minoria no sistema pol tico porque isso seria desde logo antidemocr tico 34 Isto n o quer dizer que os partidos minorit rios se consideram exclu dos do sistema pol tico ou que apenas se limitem a esperar que a eros o do poder a impaci ncia e a frustra o dos eleitores at aqui fi is ao MPLA lhes venha a conceder a oportunidade de passarem a minoria O sistema pol tico da II Rep blica teve na sua base esse consenso fundamental de que todos os partidos pol ticos e n o apenas os hist ricos nicos e leg timos representantes do povo angolano possam nas urnas com base nas suas propostas contribuir para a organiza o e forma o da vontade dos cidad os35 A participa o dos cidad os na vida pol tica adquiriu alguns contornos que igualmente importa real ar em tempos em que tanto se fala de democracia participativa Se tend ncia para o crescente monop lio dos partidos pol ticos no exerc cio do poder a Constitui o de 2010 vem afastar a concorr ncia de cidad os independentes elei o para a presid ncia da rep blica por outro lado aquela tend ncia contrabalan ada pelo incentivo participa o democr tica dos cidad os e da sociedade civil na resolu o dos problemas nacionais como uma das tarefas do Estado al nea l do artigo 21 e artigos 52 participa o na vida p blica e 167 iniciativa legislativa Isto significa que o sistema de governo angolano deve ser compreendido luz do seu relevo do ponto de vista dos princ pios republicano democr tico e do Estado de Direito 34 35 Gouveia Jorge Bacelar em parecer n o publicado Cfr artigo 17 da CRA 15

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bem como luz do seu relevo na protec o e promo o dos direitos fundamentais 36 Do mesmo modo o sistema de governo deve ser investigado luz da conex o sist mica que estabelece com o sistema de fontes de direito e com os mecanismos jurisdicionais de garantia da Constitui o A inversa tamb m verdadeira Todos estes elementos do texto constitucional angolano devem ser interpretados tendo como ponto de refer ncia o sistema de governo e a sua l gica estrutural funcional Este aspecto reveste se do maior relevo pr tico 37 BIBLIOGRAFIA ALEXANDRINO JOS MELO Natureza Estrutura e Fun o da Constitui o O Caso Angolano in Estudos de homenagem ao Prof Doutor Jorge Miranda vol II Direito Constitucional e Justi a Constitucional Lisboa 2012 pp 317 340 ALEXANDRINO JOS MELO O Novo Constitucionalismo Angolano Instituto de Ci ncias Jur dico Pol ticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 2013 ebook acess vel em www icjp pt ARA JO RAUL CARLOS VASQUES O Presidente da Rep blica no Sistema Pol tico Angolano CASA DAS IDEIAS Luanda 2009 ARA JO RAUL CARLOS VASQUES A Problem tica do Chefe de Governo em Angola in Revista da Faculdade de Direito Agostinho Neto n 2 Luanda 2001 GUEDES ARMANDO MARQUES e FEIJ CARLOS Pluralismo e Legitima o A Edifica o Jur dica P s Colonial Almedina 2003 FEIJ CARLOS O semi presidencialismo em Angola Dos casos teoriza o da Law in the Books e da Law in Action in Revista de Neg cios Estrangeiros 11 4 Especial Lisboa Setembro 2007 MACHADO J NATAS E M et al Direito Constitucional Angolano 2 edi o Coimbra Editora 2013 COLECT NEA DE AC RD OS DO TRIBUNAL SUPREMO NA VESTE DE TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ANGOLA 1996 2008 EDIJURIS 36 Machado J natas E M e Esteves Paulo Nogueira da Costa e Hil rio Carlos Direito Constitucional Angolano Coimbra Editora 2 edi o 2013 37 Ibidem 16